terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Fantasias sobre "A Linha Fantasma" (The Phantom Thread)


De tudo o que tenho lido, ouvido e visto, parece-me este o filme mais interessante dos que concorrem aos prémios americanos este ano. Não por acaso, é inglês; a imbecilidade de Hollywood nunca andou tão à solta como agora.

'The Phanthom Thread' não é nenhuma obra prima; mas é um filme muito pessoal, com marca de autor bem pronunciada, uma produção cuidada e com bom gosto, que encena um pequeno drama clássico na época e no tema: encontros e desencontros entre duas pessoas que se atraem mas têm carácter muito diferente. Neste caso, Reynolds Woodcock, um costureiro de sucesso, que trabalha para a elite inglesa nos anos pós-guerra (ca. 1950), com uma vida familiar e afectiva nula, é finalmente tocado por uma modesta - mas bonita e alegre - empregada de mesa (Alma) que, ao tropeçar à sua frente, lhe envia um sorriso atrapalhado e irresistível. Podia ser um simples 'engate' de um ricaço já maduro, um divertimento com uma qualquer jovenzita sem recursos; mas não: a ligação entre eles vai-se tornando cada vez mais forte, um cada vez mais indispensável e mais tentador ('tentação do estranho') para o outro. A persistência de Alma é surpreendente.

Enquadramentos cuidados ao milímetro, luz coada, focagem ténue.

As peripécias pouco interessam - encomendas de vestidos, dia a dia das costureiras - porque o essencial desenha-se nos pequenos almoços à mesa com a irmã do alfaiate, uma solteirona que se assume dona da casa. Aí se jogam os mal entendidos, as recriminações e as desculpas, os amuos e os cortes, mas também a reconciliação e os mimos.


Era tudo algo fútil não fosse a filmagem inteligente e sensível, o ritmo devidamente vagaroso da montagem, e as prestações dos actores. Sem dúvida que Daniel Day Lewis tem o papel da sua vida, construindo a personagem do costureiro com a sobriedade e a inteligência adequadas a um personagem instável, inseguro, com excessiva auto-estima, que se julga no direito de se fazer obedecer. Contradição que o filme espelha com mestria, deixando adivinhar que é a ternura que vai vencer.

A escadaria é muito usada como enquadramento de relações de poder.

A Linha Fantasma do título refere-se afinal à "fraqueza" afectiva - que se transforma em força. Na entretela das roupas que confeccionava, Reynolds costumava inserir um farrapo de tecido com uma mensagem secreta. O portador não sabia da sua existência. Tudo começara quando ele próprio inseriu no seu casaco o que de mais querido tinha na sua vida - a memória da mãe. A revelação desta "fraqueza" torna-o mais humano e frágil aos olhos daquela que viria a ser sua esposa.

Não é tema que entusiasme ? Pois não. Não há filmes de fôlego, de grandes horizontes e paixões que arrastam montanhas, visionários. Não há já Jivago, Out of Africa,  Solaris, Titanic, Dolce Vita, The Searchers, Esplendor na Relva, Once upon in America, Apocalipse Now, Blade Runner. Estamos na onda dos temazitos fracturantes, dos tacanhos afectos diários, da causa efémera, da denúncia social de bairro. Hélas.

Vale-nos por isso o filmezinho de época, cumpridor e bem acabadinho, à boa maneira inglesa ou matizado com a cinematografia de Hicthcock, como neste caso.

Como apêndice, a minha cena favorita: o menu de pequeno almoço de Reynolds no hotel onde conhece Alma. Encomenda ele, com a sua pausada fleuma e um sorriso matreiro:

A Welsh rabbit*. With a poached egg on top. Not too runny. Bacon. Scones. Butter… cream… jam... not strawberry.”  No. Raspberry. Anything else? Coffee? Tea? “You have Lapsang? A pot of Lapsang Souchong, please.” Good choice. (pause). "And some sausages."


Depois deste pedido, Alma esta rendida. Até eu.

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Ler mais, no New Yorker
Atenção ao artigo de Pedro Mexia no Expreeso deste sábado, 17

*'Welsh rarebit', uma tosta coberta de molho de cheddar

2 comentários:

Virginia disse...



Gostei do filme e até fiz uma crítica no FB e no meu diário pessoal. Já não me dou ao trabalho de escrever no blogue, ninguém responde. A sua crítica está de acordo com a minha opinião, souberam-me bem aquelas duas horas na companhia dum dos meus actores favoritos e duma actriz talentosa e fresca, que enche o filme de luminosidade. Lembrou-me os espaços e silêncios de The Remains of the Day, um belo filme que nunca esquecerei. Mas o grande papel de DD Lewis , para mim, é o seu em MY Left Foot, que lhe grangeou um óscar nos anos 90. Não quero dizer que não mereça outro por este papel :).
Bom fim de semana!

Mário R. Gonçalves disse...

Olá, Virgínia, obrigado por comentar. Não sou fã de Lewis, e os aspectos mais positivos do filme quanto a mim cabem ao realizador, que criou uma narrativa muito pessoal quer na estética cinematográfica, quer no modo de abordar e entrelaçar os personagens, conseguindo envolver-nos numa história que à partida parecia um caso perdido. Mas o assunto em si não me envolveu por aí além, é um assunto-zinho.