Mapa da expedição de Robert Peary ao Pólo Norte , em 1909
Matthew Henson foi um dos primeiros homens a chegar ao Pólo Norte, ou pelo menos a chegar perto, algumas dezenas de quilómetros, em 1909. A expedição que tentou esse feito foi a terceira do grande explorador
Robert Peary, um americano megalómano, que contou com a ajuda de quatro esquimós (
Ooqueah, Ootah, Egingwah e Seegloocom) nas cargas de trenó e nos acidentes de trajecto, e do navegador
Matthew Henson que se descrevia como "de raça negra", com orgulho. No pequeno vapor '
S.S. Roosevelt' seguiam ainda 246 cães ! Que equipa mais estranha.
A familia esquimó no convés do Roosevelt. Duas mulheres também estavam na equipa de apoio.Robert Peary, comandante do 'S.S. Roosevelt' e da expedição
Mas quem me surpreendeu foi Matthew Henson, ainda mais quando soube que era de pele escura. Nasceu já livre, coisa rara na época (1866), e iniciou a carreira como grumete; mas era empregado de armazém quando conheceu Peary. Foi com ele que começou a navegar e aprendeu o modo de vida Inuit. Iriam ser companheiros durante 18 anos em várias expedições.
O que vou transcrever é a tradução de um belo excerto do diário de Henson na viagem de 1909, mas antes disso quero dar alguns detalhes.
O acesso ao mar gelado do Ártico polar fez-se a partir da ilha de
Ellesmere, um território imenso e quase deserto onde só há uma povoação
inuit,
Grise Fiord, no Sul. A equipa de Peary, num total de 22 incluindo homens de apoio, estabeleceu-se no extremo Norte, em
Cape Sheridan, para a quarentena de Inverno a bordo do vapor
Roosevelt.
A chegada ao Cabo Sheridan foi a 5 de Setembro de 1908, após uma viagem difícil a romper gelo ao longo do Canal de Robeson, que separa a ilha da Gronelândia.
O Roosevelt chega ao Cabo Sheridan.
O
Roosevelt ancorou numa brecha da maré de gelo, encostado a uma crista de pressão. O navio fora encomendado por Peary expressamente para a expedição, e foi mais um factor de sucesso. Tinha a quilha de madeira com 70 cm de espessura, reforçada com um sistema de traves flexíveis contra a pressão do gelo, e o revestimento do casco em espessa folha de ferro.
Durante quinze dias procedeu-se à descarga de trenós, mantimentos e outras provisões, instrumentos e cães, que ficaram em terra abrigados em caixas cobertas pelas velas do navio. A tripulação manteve-se a bordo, com as caldeiras e o motor a trabalhar durante seis meses, fazendo manutenção, jogos, leituras e planeamento, e revezando-se em vai-véns para provisões. O lugar deste acampamento fica próximo da actual Estação Polar Alert.
Só em Fevereiro do ano seguinte, 1909, quando a primeira luz se vislumbrou depois da noite invernal, uma primeira equipa arrancou com os trenós para o Cabo Columbia. Seguiram-se outras, mas apenas seis homens e cinco trenós iriam fazer a última marcha para o Pólo através do mar Ártico, duas semanas depois, a 1 de Março.
Os picos de Cape Columbia
O Cabo Columbia, a 83°07′ N, fora escolhido como ponto de partida da última etapa sobre a placa do Ártico porque é o ponto mais setentrional do Canadá ( e o segundo do planeta), oferecendo assim uma distância mínima até ao Pólo, 769 km (478 mi). A placa oceânica tem uma espessura à volta de 2 metros de gelo, mas o seu movimentos cria cristas de pressão que a alteram constantemente.
É esse percurso desde o Roosevelt até ao Cabo Columbia que Henson descreve neste excerto: "uma região de soturna magnificência".
" Penhascos ressaltados que se projectam sobranceiros à trilha; promontórios selvagens e escuros, que somos obrigados a contornar, que se arremedam sobre as águas cobertas de gelo do Oceano, vastas extensões de planície gelada varrida pelo vento, e tudo isso em sucessão nas noventa e três milhas entre os dois cabos; foram precisas três étapas para as percorrer."
" Fevereiro, 23: Forte nevão mas praticamente sem vento esta manhã pelas 7 h.(...)
Há um irresistível fascínio nas regiões do extremo Norte da Terra de Grant que me é impossível descrever. Não tenho espírito poético e fui endurecido por muitos anos de experiência nesta terra inóspita, as palavras adequadas para dar uma ideia da sua beleza única não me ocorrem. Imagine-se uma desolação admirável, um espantoso descampado branco. Nunca parece ser dia, dia amplo e claro, mesmo a meio de Junho, e o céu tem diferentes aspectos que variam ao longo das horas de crepúsculo matinal, do crepúsculo do entardecer, do primeiro ao último vislumbre de luz."
O regresso do Sol.
" Nos princípios de Fevereiro, ao meio dia, uma estreita faixa de luz aparece no horizonte na direcção do Sul, anunciando a vinda do Sol, e dia após dia a duração do crepúsculo aumenta, até que nos primeiros dias de Março o Sol é um disco flamejante de vermelho-púrpura que se eleva, com uma imagem distorcida, um pouco acima do horizonte. Esta forma distorcida deve-se à miragem causada pelo frio, tal como ondas de calor sobre os carris de ferro de uma linha de combóio distorcem a forma dos objectos que estão mais para além."
"As encostas voltadas a Sul dos picos mais elevados já reflectiam há muitos dias a glória do Sol vindouro, e não é preciso um artista para disfrutar estas esplendorosas vistas sem igual."
" As neves que cobrem os picos mostram todas as cores, variações e tonalidades de uma palette, e mais. Já vieram conosco artistas ao Ártico e ouvi-os em delírio com as fantásticas beleza do cenário, e vi-os trabalhar a tentar reproduzi-lo parcialmente com bons resultados mas nada que se compare ao original. Como disse Mr. Stokes, 'it is color run riot' (é um tumulto de cores)."
" Mas em direcção a Norte é tudo ainda escuro, e as estrelas mais brilhantes do céu sáo visíveis, mesmo que enfraquecendo aos poucos conforme a luz aumenta.
Quando finalmente o Sol sobe acima do horizonte e percorre a sua curva diária, os efeitos de cor são cada vez menos, mas então crescem os efeitos de céu e núvens, e as sombras nas montanhas e nas fendas e agulhas do gelo exibem outra beleza - azuis glaciais e cinzentos; as manchas descobertas de terra, tons tons de castanho; e a ofuscante brancura da neve deslumbra."
"Ao meio dia, a sensação óptica da nossa sombra é a das nove horas da manhã, devido à baixa elevação do Sol, sempre causando sombras alongadas."
" Sobre nós, o céu é azul brilhante, mais azul que o do Mediterrâneo, e as núvens, desde as caudas sedosas dos Cirros até aos fantásticos e carregados Cúmulos, são sempre belas. Isto é a descrição do bom tempo."
(...)
" Quase todos os sítios servem para se conseguir um boa selecção de vistas; no Cabo Sheridan, o nosso posto de comando, estávamos rodeados de lugares marcantes que se tornaram históricos: para Norte o Cabo Hecla, ponto de partida da expedição de 1906; para Oeste. o Cabo Joseph Henry, e mais adiante, os dois picos do Cabo Columbia de costas voltadas ao Oceano.
Do Cabo Columbia a expedição ia agora deixar terra firme e seguir em trenós sobre as placas de gelo que cobrem o Oceano durante quatrocentas e treze milhas para Norte — até ao Pólo!"
Matthew Henson, 2009
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A expedição atingiria o Pólo Norte, ou as suas proximidades mais quilómetro menos quilómetro, em 6 de Abril de 1909. O mais certo é que Peary, perante a extrema exaustão de homens e cães, percebeu que era melhor parar e regressar, uma vez que tinham o objectivo à vista. A comunidade Geográfica pôs em causa o feito de Peary, tal como pusera em causa o feito do seu grande rival Scott no ano anterior. O único e incontestado explorador que comprovou ter chegado aos 90º N foi o inglês Wally Herbert, já em 1969, sessenta anos depois de Peary.
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Fontes documentais
https://www.gutenberg.org/files/67973/67973-h/67973-h.htm
O texto de Matthew Henson foi lido no livro "Nature Tales for Winter Nights", uma compilação editada por Nancy Campbell.