segunda-feira, 27 de maio de 2019

David Fray e o seu Bach aquático, fim da temporada CdM


Terminou a temporada Primavera/Verão da Casa da Música com um concerto de David Fray, pianista francês que trouxe Bach (o seu eleito) e Mozart. Digo 'terminou' porque o resto que lá vem é para mim ruído ('the rest is noise') par não dizer pior - obras menores, desagradáveis ou dispensáveis.

O BWV 1055 que Fray toca no piano é o seu cartão de visita, e saiu uma perfeição deslumbrante.



A maneira de tocar Bach de Fray lembra-me Glenn Gould, pela fluência e sensibilidade, como se fossem os dedos a cantar espontaneamente sobre as teclas, é um rio de música que corre em meandros mas sem o mínimo dramatismo. Sabe bem ouvir esta música na Primavera.

Já Mozart saiu menos bem sobretudo da parte da orquestra; Fray não é um experimentado nem prestigiado director, e Mozart já precisa de outra habilidade na criação de tensões e dinâmicas na orquestra. Ainda assim foi mais que mediano, e as ovações foram premiadas com um encore de Bach.

A acompanhar Fray não esteve a Orquestra Barroca, mas uma secção reduzida da orquestra da CdM, possivelmente uma formação pouco frequentemente utilizada que me pareceu apenas mediana; mas pode ter sido pela falta de um bom maestro.


Acabou assim um ciclo realmente excelente na Casa da Música, depois do Stabat Mater de Pergolesi com Rowan Pierce,  do clarinete de Mozart por Widman, de Sokolov e da 5ª de Mahler de Elihabu Inbal.  Já não espero nada deste nível do resto da temporada depois do Verão.


sexta-feira, 24 de maio de 2019

Com Matt Gaw, a remar e nadar no rio Granta ( Cam ) - 2ª parte


Tem sido mesmo uma das melhores leituras dos últimos tempos, "The Pull of the River" de Matt Gaw. Quase fiquei a conhecer o 'carácter' desses  rios que Matt e James percorrem na Pipe, a canoa em kit-pack. A côr da água, variando de todos os tons de azul e verde até aos castanhos e ao negro; as cortinas que os salgueiros-chorões atravessam sobre o leito, os meandros, os moínhos e açudes, as rampas, as encostas de relva e trevo; os pequenos lagos naturais ou de represa, onde se pode mergulhar e nadar; a passarada diurna e nocturna - garças, guarda-rios, piscos, pilritos, melros, galinha-de-água, cotovias, corujas; os ciclistas e os corredores de jogging matinais pelos trilhos ao longo da margem; tudo isso a decorrer como cinema nas páginas de The Pull of the River, é uma permanente e animada viagenzita vista numa perspectiva nova, da água para a terra. Um rio é um pequeno cosmos.

E está tão bem escrito. Gaw tem um vocabulário rico, variado, uma grande fluência narrativa, sentido de humor, inventa neologismos, cria expectativas e vai ao céu com pequenos-grandes sucessos, às vezes apenas escassos momentos. Resultado: voltei atrás e reli vários trechos. Saltando os rios Thames e Colne, foram sobretudo o Granta (Cam), o Severn e o Caledonian que mais me seduziram, e deles deixarei alguns trechos traduzidos.  Hoje vamos pelo Granta, conhecido por Cam desde que se avizinha de Cambridge, de onde tirou o nome (ao contrário do que é costume) pois a cidade chamava-se 'Grantebrycge'.

Quando estive em Cambridge, ainda este blog não existia; falta portanto no Livro de Areia o rio Cam urbano, pelas traseiras da Universidade, punting. Mas a canoa Pipe só está à vontade "in the wild", como dizem Matt e James, os canoístas.


Um meandro apertado e a seguir entramos num bosque, permitindo descansar do sol alto da primavera que faísca sobre a água. O rio aqui tem um cheiro doce, talvez da relva e das árvores, da lenta decomposição vegetal ou simplesmente da própria água. Inclino-me deitado para trás e deixo os dedos trilhar ao longo da superfície da água, vendo-os mudar de cor conforme os mergulho mais ou menos fundo. Tinha sentido a água espessa e lenta contra a pá do remo, mas contra a pele sinto-a leve e sedosa; um suave e fresco bálsamo. A luz, filtrada pela lente verde dos ramos de árvores e arbustos, dá uma sensação de feérico crepúsculo, mesmo que ainda nem seja meio-dia. Deslizamos e sussuramos, embalados quase para dormir, mas logo somos de novo aturdidos pelo clarão do sol na água, ou pelo grito meio coaxado de uma galinha de água.

As nossas gargalhadas, as chapinadas e brincadeiras, ecoam nas margens levantando grunhidos e protestos dos melros.
(...)


Byron's Pool

É um alargamento do rio Cam, como uma lagoa ou barrinha sem muro *, recatada, onde a boémia estudantil da época vitoriana costumava banhar-se, sendo particularmente apreciado mergulhar nu quando a água era iluminada pela lua cheia. Virgínia Wolf com Rupert Brooke foi um dos casos mais celebrados. O nome 'piscina de Byron' deriva do grande romântico inglês mas nunca se encontrou documento comprovativo de que ele lá tenha mergulhado. Fica um pouco antes de o rio entrar na área urbana, numa zona que agora é Reserva Natural.


Voltando a Matt Gaw:

Há gente a ver-nos agora, desconfiados destes estranhos que agem como catraios. Contamos até três e saltamos, braços enrolados a volta dos joelhos dobrados contra o peito, uma bomba-criança - dificilmente uma ideia aproveitável por um poeta romântico.

O ponto de imersão é sempre o momento em que o tempo se suspende. Primeiro o splash, a sensação de lodo sob os pés, depois o frio galopante. Suga-me o fôlego, os terminais nervosos aos gritos enquanto a pele se contrai. Ambos rasgamos a superfície ofegantes, inspirando ar e rindo. A tentação é saltar para fora, mas em vez disso vou atrás do James que bate braços em direcção ao açude, a minha pele reluzindo sob o barro translúcido da água. De início atabalhoado, nadando à cão, passo a braçadas vigorosas, com pontapés de rã em direcção aos juncos na margem direita, e depois rodando para o salgueiro chorão. Como um pinguim, salto para fora desajeitado, sentindo a macieza da água através dos arrepios.

Enquanto me movimento, sinto o peito aquecer, um foco de calor nascido da adrenalina e da intensa euforia.
(...)


Não devo ficar por aqui. Este livro é uma viagem preciosa, não tenho adormecido sem (re)ler uma páginas. A seguir, o Wye e o Severn.


Ah, Cambridge!

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* recentemente fizeram um muro de barragem e uma plataforma de madeira. Parece que estragaram tudo. Agora a água é choca.


domingo, 19 de maio de 2019

O Museu onde ia já a correr: a Galleria Borghese


Devo ter visitado uma centena de museus/ exposições imprescindíveis, onde existe o melhor da Arte desde a pré-história europeia. Alguns emocionam fortemente, sobretudo os Gregos. Mas onde voltaria já já sem hesitar? Fiz-me a questão, olhei para uma lista e pronto: Roma, Galeria Borghese.

A localização é fenomenal: haverá outros, como o Louisiana (a norte de Copenhaga, num relvado em rampa para o mar), o de Delphi alcandorado numa montanha a norte de Atenas, o precioso Guggenheim de Veneza, ou o nosso Museu do Côa, que deslumbram pelo panorama e pelo entorno paisagístico: mas a Borghese é inultrapassável, sobre uma alta colina de Roma e rodeada de um jardim lindíssimo, com vistas que marcam para sempre, não fosse a cidade eterna.

O Pincio (Monte Pinciano)

Não é uma das sete colinas (está fora dos limites da Roma antiga) mas uma pequena elevação a norte da cidade, com terraço sobre a Piazza del Popolo.


Vista do topo do jardim sobre a Via Pinciana.

Entrando por aqui, será preciso percorrer uma longa caminhada pelo jardim, passando nas fontes. Há uma entrada pela Porta Pinciana, mais cómoda, e uma entrada pedonal alternativa pela Via Uccelliera, mais à frente da Via Pinciana. É a mais recomendável para poupar os pés, deixando os jardins para depois.

Tal como noutros casos, o edifício é um palacete renascentista, da autoria de Flaminio Ponzio, de 1615, renovado e adaptado a galeria de arte no séc. XVIII. Mas lá dentro é a luz, a luz e as sombras, o venerável recheio, a sensação mais de templo que de museu.



Sítios assim fazem uma vida. Não me venham dizer mal dos museus, que são lugares fúnebres, de arte em conserva, catálogos do passado. Estes que acima hoje referi são magníficos de vida, respiram saúde e fremente beleza. Bem hajam.

Depois do Pórtico (P), entra-se pelo Salone di Mariano Rossi (S):

Esta entrada não vale pelo recheio, mas pela decoração - sobretudo o tecto de Mariano Rossi, de 1779:

Já se entrou noutro universo, a repiração pausa...

Além de bustos dos 12 Césares, há várias esculturas da antiguidade romana.

Ainda é só o início. O fresco representa o herói fundador de Roma Marcus Camillus a derrotar o exército gaulês.

Passamos à Sala Canova (1) com Paolina Borghese em vestes de Vénus Vitoriosa. Uma das obras primas de António Canova, está mesmo ao centro de outra sala ricamente decorada. Paolina era a mulher de Camillo Borghese, e irmã do imperador Bonaparte.



Em mármore de Carrara, deve ter sido executada no final da primeira década do séc. XIX, pouco antes da morte de Canova.


Na sala 2, "Sala do Sol", começa Gian Lorenzo Bernini. O fenomenal 'David' (1623-1624) ocupa o centro. Atenção, é mesmo central !



Impressionante de ímpeto e concentração belicosa. Bernini já para lá da Renascença.


Chama-se Sala do Sol por causa de um medalhão central no tecto, representando a Caduta de Fetonte (A Queda de Faetonte), de Caccianigga.


          Faetonte (Phaeton = esplendor) era um jovem semideus que conduzia uma
          carruagem de cavalos faíscando chamas, numa viagem diária durante o
          tempo da luz solar. Seria ele próprio um deus, filho de Helios, o divino Sol ?
          Faetonte quis provar que sim, e para isso insistiu em conduzir a carruagem
          solar de indomáveis cavalos alados do próprio pai Helios. Sem permissão,
          tomou-lhes as rédeas e avançou corajosamente; mas Zeus não admitiu esse
          assalto aos céus divinos, lançou raios e trovões contra Faetonte, e a carruagem
          destruída despenhou-se em chamas como uma estrela cadente, mergulhando
          no rio Pó.
          E lá deixaram um epitáfio:

"Hic situs est Phaethon, currus auriga paterni, quem si non tenuit, magnim tamen excidit ausis" 
"Aqui jaz Fetonte, auriga do carro de seu pai; e embora não fosse capaz de o conduzir, ainda assim caiu ousando a grandiosa tarefa."


Segue-se a Sala Bernini (3), com o seu Apolo e Dafne. É nada menos que um lugar de culto.


Já todos deram voltas e voltas e fotografaram de todos de todos os ângulos.



Um bailado de corpos de mármore, possivelmente nunca a escultura tinha transmitido tanta cinética, tanta vida.




E tudo o resto esquece.

Sala dos Imperadores (4). Menos, muito menos que o Amor, os imperadores, afinal, merecem um salão grande mas pesadão.





Mas a sala 4 vale pelo Rapto de Proserpina de Bernini, ocupando o centro do vasto espaço, uma obra prima para a História da Arte Europeia. Giovanni fez o Rapto num só ano, entre 1621 e 1622, portanto já uma obra do barroco!

           O pérfido e mulherengo Plutão. deus dos Infernos, não resiste mais à beleza
           certamente divinal de Proserpina, conforme narra Ovídio. Foi no lago de Pergusa,
           um lago ovalado no centro da Sicília, que a raptou quando ela colhia flores e
           a levou com ele para o Hades. O melhor que os deuses conseguiram foi conceder
           a Proserpina seis meses por ano de vida junto aos seus, após o que regressava ao
           reino dos mortos. Ora a narrativa mitológica justifica assim o Outono e o Inverno:
           nos seis meses em que Proserpina deixava a vida humana, também a Terra deixava
           de produzir. O regresso de Proserpina era a festa da Primavera !
           Bem mais bonito do que a inclinação do eixo terreste.

A força bruta de Plutão... a resistência tenaz de Proserpina...

as mãos apertando a carne da jovem aflita... não há nada, nada que se pareça na arte clássica.

Espanta este conhecimento tão físico do movimento,  dos músculos e do corpo humano! Não me custa nada admitir que é a melhor escultura de todos os tempos.

Nas restantes salas do rés-do-chão, mais Bernini e pinturas de Caravaggio; se subirmos a escadaria, veremos o espólio original com que Scipione Borghese inciou a colecção: Ticiano, Rafael, Caravaggio. Mas desta vez não vou lá acima; contudo deixo este Ticiano: Amor Sacro e Amor Profano, que já toda a gente conhece mas sabe sempre bem rever:



A Uccelliera e os Jardins Secretos

Saindo e voltando à direita, em direcção ao Aviário (Uccelliera), passamos por um belo ajardinado geométrico; enquanto o resto dos jardins são à Inglesa, este é uma amostra de jardim francês: sáo os Giardini Segredi.

Mas o melhor dos jardins está para vir: as fontes, os pavilhões... pinheiros, plátanos seculares, carvalhos, ciprestes e abetos dos jardins originais de Flaminio Ponzio, que foram renovados no princípio do século XIX.

Os lindísimos pinheiros "ombrello" ou "a pinoli" de Roma.

A famosa Fonte dos Cavalos Marinhos, terminada em 1791.

É outro marco imperdível.

Fonte de Venera (cópia da Vénus de' Medici)

Durante o século XVIII foi grande a influência inglesa; William Kent, arquitecto paisagista, esteve em Roma entre 1710 e 1719. Esta influência nota-se por exemplo na edificação do "Templo de Esculápio" de Antonio Asprucci, uma edificação apenas decorativa com o seu lago artificial.
Uma "eccentricità", disseram os romanos.

Requintadamente neoclássico, o conjunto foi a mais importante adição aos jardins, sucessivamente remodelados pelos próprios Borghese (1823) e no século XX depois da aquisição pelo Estado.

Outra pseudo-ruína é esta montagem com peças retiradas do Fórum, em que só a estátua de Faustina é totalmente genuína:


Annia Faustina foi imperatriz por casamento com Heliogabalo (221 DC)

Também é ideia inglesa o Templo de Diana, à saída pela Porta Pinciana:

A Diana em causa, que devia estar no pedestal, está... no Louvre!

Como se vê, muito pastiche e anacronismo, mas até nisso os jardins têm a sua época e a sua graça.

Saída pela Viale Antonello Trombadori, porta 68 da Via Pinciana. Ou outra qualquer, conforme as pernas.


quarta-feira, 15 de maio de 2019

Symbister, Whalsay, Shetland: o mais remoto dos postos da liga Hanseática


Que lugar fantástico! Só de ferry se chega à pequena ilha de Whalsay, uma das mais isoladas das Shetland, à latitude de Bergen no meio do Mar do Norte.


Porto de Symbister; assinalado, o posto da Liga Hanseática.

Porque raio alguém no século XV iria interessar-se por este minúsculo porto tão distante? Baleias, é a primeira razão. ´Whalsay´ = Whales Island, e todo o negócio com a Hansa germânica, sobretudo Bremen e Lübeck, tinha a ver com produtos do mar. O posto Hanseático de Symbister, uma pequena cabina e pouco mais, era o balcão e escritório de um grande negócio.

 

A casota agora chamada ´The Pier House´ era Da Böd, centro de exportação de peixe seco e salgado na rede da Liga de guildas que estabeleceu monopólio na Europa do Norte entre os séculos XIII e XVIII. Começou por fazer trocas comerciais com o 'Kontor' da Liga em Bergen, passando mais tarde a tratar directamente com Hamburgo e Bremen.


Os navios da Liga viajavam até Symbister levando ferramentas e instrumentos, sementes, sal, tecidos e alguns artigos de luxo - jóias por exemplo, para regatear contra peixe seco e salgado (sobretudo bacalhau). Era uma necessidade vital quando ainda não havia frigoríficos - era uma das poucas conservas que se mantinham durante meses ou anos. Esta casota foi usada pelos germânicos durante cerca de cinco séculos até 1707, qundo tiveram de desistir devido a um "enorme aumento de impostos" decretado pela Escócia. Cinco séculos, será que conseguimos imaginar, cinco séculos disto, desta forma de vida à volta de peixe seco ?

Entretanto, a Sul, Veneza, Génova, Sevilha e Lisboa viviam uma relativa vida de luxo, com as especiarias, as sedas e os lacados, com as frutas do Novo Mundo e os escravos.


O posto de Symbister deve ter começado a funcionar à volta de 1563. Foi agora reconvertido em modesto museu, com painéis que relatam como os navios chegavam todos os Verões de Hamburgo, Bremen e Lübeck, o que traziam e levavam. O primeiro relato escrito data de 1557, já os europeus navegavam pelas ilhas do Pacífico.

A rampa (brae) de acesso à Böd ainda mantém a designação ´Bremer Strasse´ !

Bremer Strasse, Whalsay.


Mapas e documentos de transacção, pouco mais.




Symbister, Whalsay Island, Shetland
Coordenadas: 60° 20′ N, 01° 01′ W
População (ilha): ~1000


As povoações - Symbister, Isbister, Marrister, Brough - estão dispersas ao longo da estrada, sem limites precisos. Numa ilhota a que se acede por um tômbolo - um arco de areia, reforçado para sustentar um troço de estrada - existe a única igreja, Kirk Ness:


É um cabo dos trabalhos para lá chegar.

Kame of Isbistar, um dos trechos mais dramáticos da costa.

A pesca continua a ser a razão de ser da população local; e a frota de traineiras é impressionante ! Isto sim, é valorizar os recursos marinhos.


A frota pelágica no porto de Symbister.

O ´Serene´, chegado a Whalsay no fim de 2018, a ser recebido pela população da ilha. Um novo arrastão pelágico longamente esperado.


Ora bem, é isto que chamo progresso. Desde que a pesca seja regulada e científica, claro. Nunca antes os pescadores de Whalsay sonharam sequer com coisa tão bonita. Foi o homem que fez e não a Natureza. Estávamos bem arranjados, se nos deixássemos na dependência da Natureza.