domingo, 19 de maio de 2019

O Museu onde ia já a correr: a Galleria Borghese


Devo ter visitado uma centena de museus/ exposições imprescindíveis, onde existe o melhor da Arte desde a pré-história europeia. Alguns emocionam fortemente, sobretudo os Gregos. Mas onde voltaria já já sem hesitar? Fiz-me a questão, olhei para uma lista e pronto: Roma, Galeria Borghese.

A localização é fenomenal: haverá outros, como o Louisiana (a norte de Copenhaga, num relvado em rampa para o mar), o de Delphi alcandorado numa montanha a norte de Atenas, o precioso Guggenheim de Veneza, ou o nosso Museu do Côa, que deslumbram pelo panorama e pelo entorno paisagístico: mas a Borghese é inultrapassável, sobre uma alta colina de Roma e rodeada de um jardim lindíssimo, com vistas que marcam para sempre, não fosse a cidade eterna.

O Pincio (Monte Pinciano)

Não é uma das sete colinas (está fora dos limites da Roma antiga) mas uma pequena elevação a norte da cidade, com terraço sobre a Piazza del Popolo.


Vista do topo do jardim sobre a Via Pinciana.

Entrando por aqui, será preciso percorrer uma longa caminhada pelo jardim, passando nas fontes. Há uma entrada pela Porta Pinciana, mais cómoda, e uma entrada pedonal alternativa pela Via Uccelliera, mais à frente da Via Pinciana. É a mais recomendável para poupar os pés, deixando os jardins para depois.

Tal como noutros casos, o edifício é um palacete renascentista, da autoria de Flaminio Ponzio, de 1615, renovado e adaptado a galeria de arte no séc. XVIII. Mas lá dentro é a luz, a luz e as sombras, o venerável recheio, a sensação mais de templo que de museu.



Sítios assim fazem uma vida. Não me venham dizer mal dos museus, que são lugares fúnebres, de arte em conserva, catálogos do passado. Estes que acima hoje referi são magníficos de vida, respiram saúde e fremente beleza. Bem hajam.

Depois do Pórtico (P), entra-se pelo Salone di Mariano Rossi (S):

Esta entrada não vale pelo recheio, mas pela decoração - sobretudo o tecto de Mariano Rossi, de 1779:

Já se entrou noutro universo, a repiração pausa...

Além de bustos dos 12 Césares, há várias esculturas da antiguidade romana.

Ainda é só o início. O fresco representa o herói fundador de Roma Marcus Camillus a derrotar o exército gaulês.

Passamos à Sala Canova (1) com Paolina Borghese em vestes de Vénus Vitoriosa. Uma das obras primas de António Canova, está mesmo ao centro de outra sala ricamente decorada. Paolina era a mulher de Camillo Borghese, e irmã do imperador Bonaparte.



Em mármore de Carrara, deve ter sido executada no final da primeira década do séc. XIX, pouco antes da morte de Canova.


Na sala 2, "Sala do Sol", começa Gian Lorenzo Bernini. O fenomenal 'David' (1623-1624) ocupa o centro. Atenção, é mesmo central !



Impressionante de ímpeto e concentração belicosa. Bernini já para lá da Renascença.


Chama-se Sala do Sol por causa de um medalhão central no tecto, representando a Caduta de Fetonte (A Queda de Faetonte), de Caccianigga.


          Faetonte (Phaeton = esplendor) era um jovem semideus que conduzia uma
          carruagem de cavalos faíscando chamas, numa viagem diária durante o
          tempo da luz solar. Seria ele próprio um deus, filho de Helios, o divino Sol ?
          Faetonte quis provar que sim, e para isso insistiu em conduzir a carruagem
          solar de indomáveis cavalos alados do próprio pai Helios. Sem permissão,
          tomou-lhes as rédeas e avançou corajosamente; mas Zeus não admitiu esse
          assalto aos céus divinos, lançou raios e trovões contra Faetonte, e a carruagem
          destruída despenhou-se em chamas como uma estrela cadente, mergulhando
          no rio Pó.
          E lá deixaram um epitáfio:

"Hic situs est Phaethon, currus auriga paterni, quem si non tenuit, magnim tamen excidit ausis" 
"Aqui jaz Fetonte, auriga do carro de seu pai; e embora não fosse capaz de o conduzir, ainda assim caiu ousando a grandiosa tarefa."


Segue-se a Sala Bernini (3), com o seu Apolo e Dafne. É nada menos que um lugar de culto.


Já todos deram voltas e voltas e fotografaram de todos de todos os ângulos.



Um bailado de corpos de mármore, possivelmente nunca a escultura tinha transmitido tanta cinética, tanta vida.




E tudo o resto esquece.

Sala dos Imperadores (4). Menos, muito menos que o Amor, os imperadores, afinal, merecem um salão grande mas pesadão.





Mas a sala 4 vale pelo Rapto de Proserpina de Bernini, ocupando o centro do vasto espaço, uma obra prima para a História da Arte Europeia. Giovanni fez o Rapto num só ano, entre 1621 e 1622, portanto já uma obra do barroco!

           O pérfido e mulherengo Plutão. deus dos Infernos, não resiste mais à beleza
           certamente divinal de Proserpina, conforme narra Ovídio. Foi no lago de Pergusa,
           um lago ovalado no centro da Sicília, que a raptou quando ela colhia flores e
           a levou com ele para o Hades. O melhor que os deuses conseguiram foi conceder
           a Proserpina seis meses por ano de vida junto aos seus, após o que regressava ao
           reino dos mortos. Ora a narrativa mitológica justifica assim o Outono e o Inverno:
           nos seis meses em que Proserpina deixava a vida humana, também a Terra deixava
           de produzir. O regresso de Proserpina era a festa da Primavera !
           Bem mais bonito do que a inclinação do eixo terreste.

A força bruta de Plutão... a resistência tenaz de Proserpina...

as mãos apertando a carne da jovem aflita... não há nada, nada que se pareça na arte clássica.

Espanta este conhecimento tão físico do movimento,  dos músculos e do corpo humano! Não me custa nada admitir que é a melhor escultura de todos os tempos.

Nas restantes salas do rés-do-chão, mais Bernini e pinturas de Caravaggio; se subirmos a escadaria, veremos o espólio original com que Scipione Borghese inciou a colecção: Ticiano, Rafael, Caravaggio. Mas desta vez não vou lá acima; contudo deixo este Ticiano: Amor Sacro e Amor Profano, que já toda a gente conhece mas sabe sempre bem rever:



A Uccelliera e os Jardins Secretos

Saindo e voltando à direita, em direcção ao Aviário (Uccelliera), passamos por um belo ajardinado geométrico; enquanto o resto dos jardins são à Inglesa, este é uma amostra de jardim francês: sáo os Giardini Segredi.

Mas o melhor dos jardins está para vir: as fontes, os pavilhões... pinheiros, plátanos seculares, carvalhos, ciprestes e abetos dos jardins originais de Flaminio Ponzio, que foram renovados no princípio do século XIX.

Os lindísimos pinheiros "ombrello" ou "a pinoli" de Roma.

A famosa Fonte dos Cavalos Marinhos, terminada em 1791.

É outro marco imperdível.

Fonte de Venera (cópia da Vénus de' Medici)

Durante o século XVIII foi grande a influência inglesa; William Kent, arquitecto paisagista, esteve em Roma entre 1710 e 1719. Esta influência nota-se por exemplo na edificação do "Templo de Esculápio" de Antonio Asprucci, uma edificação apenas decorativa com o seu lago artificial.
Uma "eccentricità", disseram os romanos.

Requintadamente neoclássico, o conjunto foi a mais importante adição aos jardins, sucessivamente remodelados pelos próprios Borghese (1823) e no século XX depois da aquisição pelo Estado.

Outra pseudo-ruína é esta montagem com peças retiradas do Fórum, em que só a estátua de Faustina é totalmente genuína:


Annia Faustina foi imperatriz por casamento com Heliogabalo (221 DC)

Também é ideia inglesa o Templo de Diana, à saída pela Porta Pinciana:

A Diana em causa, que devia estar no pedestal, está... no Louvre!

Como se vê, muito pastiche e anacronismo, mas até nisso os jardins têm a sua época e a sua graça.

Saída pela Viale Antonello Trombadori, porta 68 da Via Pinciana. Ou outra qualquer, conforme as pernas.


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