domingo, 26 de dezembro de 2021

Um quadro, um poema, uma jornada


"Port maritime avec l'embarquement de la Reine de Saba" - Claude Lorrain, 1646


Embarques, de Peter Bland

Alguém está de partida: em cada cena
alguém desce degraus para o mar.

A História fica para trás – o sonho
de uma Idade de Ouro, ruínas pastorais.

É uma viagem que só farão uma vez, 
por isso viajam leves - a partida apenas notada

pelos animais nos campos
cujo olhar, sem nunca se alterar,

nos comove tanto como esta evasão
para lá do amor humano – ou para dentro dele,

qual seja o que os espera. Vão sós
ao longo do trilho do sol, sem olhar para trás

mas sofrendo pela chegada a esse país longínquo
que está em parte nenhuma e em toda a parte - o verdadeiro lar

cujo clarão brilha nos seus membros e rostos.

Peter Bland, 1980
                                                                            [tradução minha]


Peter Bland é um poeta neozelandês nascido em Scarborough, tem portanto a 'partida' e a 'viagem' inscritas na sua história de vida, desde os 20 anos. Quando viu este quadro magnífico na década de 1950, ficou marcado pela maneira como Claude Lorrain representa a “tremenda paixão de um destino e uma partida”, que lhe inspirou este poema 'Embarkations' .

domingo, 19 de dezembro de 2021

O Museu Arqueológico de Braga, enriquecido com a colecção Bühler-Brockhaus

- prenda de Natal do Livro de Areia

Nesta 'rentrée' da pandemia, uma das exposições mais ricas a que temos direito sem grande viagem: pertinho, barata e cómoda. Estou 'em pulgas' para lá ir, ao Museu D. Diogo em Braga.

Começo pela colecção permanente. A peça mais bela e sofisticada é talvez esta taça romana encontrada no sítio arqueológico de Bracara Augusta:


É quase uma miniatura, com talvez 9 cm de diâmetro.



Jarros (ou "galhetas") em vidro soprado incolor esverdeado, datados dos séculos II a III depois de Cristo, integravam o espólio funerário de uma sepultura da Necrópole.

Diatreta (gaiola de vidro) do século IV, restaurada a partir dos pedaços de vidro encontrados em Bracara Augusta. Servia para suspender uma candeia de óleo ou lucerna romana. 

É um objecto bastante raro.

E logo à entrada:
Malceino, guerreiro Galaico de S Julião

Os povos que compunham os Galaicos eram de origem celta, viviam nos “castros”, as aldeias de pedra pré-romanas. Malceino é identificado no escudo com uma inscrição em latim.



Há muito mais, mas o que agora aconteceu de notável foi a doação da colecção de peças da Antiguidade Clássica do casal Bühler-Brockhaus.


Estátua romana de Cibele sentada.


Busto em mármore de Augusto, primeiro Imperador Romano e fundador de Bracara Augusta.


Mosaico do séc. III-IV: mito de Pélope e Hipodamia (Pelos, Ippodamia). Pélope empunha a palma da vitória na corrida de quadrigas que lhe garantiu o casamento e o governo da província que tomaria o nome de Peloponeso. Um Erote (=cupido) conduz o carro vitorioso.

Detalhe

Capacete Apulo-Coríntio romano em bronze.



Cista etrusca, penso eu. 

E vasos gregos:

Vaso ático (lekithos) datado entre 525 e 475 AC; dois guerreiros com capacetes coríntios seguram lança e escudo em posição de ataque.


Termino com o cálice etrusco que será único no mundo e é ao que dizem a peça mais valiosa. Que é invulgar, é.


São peças como estas que moldaram a nossa maneira de ver e fazer. Outras culturas terão outros modelos, eu sinto-me bem com a herança mediterrânica e o processo que formou o meu gosto estético. Pertenço a isto. Não a uma etnia, cidade, país nem sequer uma União de países - pertenço a um património cultural.

Um bom Natal, caros visitantes !


sábado, 18 de dezembro de 2021

Iiih que prenda mais pindérica, Casa da Música 2022


A Casa da Música consegue ultrapassar o que parecia inultrapassável, apresenta para 2022 um programa paroquial de terceira ordem que sem dúvida é o pior desde a sua fundação. Pandemia e falta de financiamento explicam apenas a falta de solistas e maestros convidados de alto nível, o resto são as escolhas dos programadores que deixam muito a desejar.

Salvam-se concertos da Orquestra Barroca, dirigida por Laurence Cummings, e mais alguns, nem sequer uma mão cheia, nem sequer nada de extraordinário.

Sendo assim, a minha selecção:

                        15 de Janeiro
                        Ode a Santa Cecília de Handel, com Rowan Pierce e a O.B.


                        28 de Maio
                        Andreas Staier,  Haydn: conc. para piano nº11 


                        18 de Setembro
                        Vivaldi, Telemann, J.C. Bach, O.B.


                        2 de Outubro
                        Beatrice Rana, pn 
                        a anunciar

                        16 de Outubro
                        Vésperas, de Rachmaninoff


                        12 de Novembro
                        Missa K427 de Mozart,  OSP e Côro


                        20, 21 de Dezembro
                        Haydn: Missa de Stª Cecília 


Para arriscar (de)mais, há outra vez um Requiem de Verdi e uma Eroica de Beethoven.

Deixo aqui ficar a linda voz da soprano Rowan Pierce com a A.A.M.
Handel - 'Let The Bright Seraphim'



Programa completo aqui.



domingo, 12 de dezembro de 2021

Para este Natal, música através dos séculos


O clássico dos clássicos para o Natal é a Oratória BWV 248 que Bach escreveu para a quadra festiva de 1734; aqui vai um dos meus trechos favoritos, para a festa da Epifania com os Reis Magos, na inultrapassável interpretação de Gardiner e os Solistas Barrocos Ingleses:

J.S. Bach: Christmas Oratorio, BWV 248 / Part S


Descobri entretanto outra obra que tenho continuado a ouvir , o Adventlied de Schumann, de 1848, passado portanto um século e pouco mais - não é já um texto bíblico mas uma poema do romantismo puro e duro. Carolyn Sampson adiciona um extra de beleza vocal à parte orquestral já excelente. Gravação de 2018.

Schumann, Adventlied, Op. 71: II


E termino com Arvo Part, Bogoróditse Djévo de 1990, canção coral composta para o King's College de Cambridge.

Bogoróditse Djévo - Arvo Pärt.

Sem desprimor para Arvo Pärt, é triste constatar quanto a música de hoje é mais pobre que a de dois séculos atrás. Aí está uma área em que, em vez de progresso, houve retrocesso.

Um Natal feliz, pacífico e aconchegado para todos.


domingo, 5 de dezembro de 2021

O melhor de 2021 - música, leituras e um filme


Estas são as melhores coisas que li, vi e ouvi em 2021; mas podem ter sido publicadas em anos anteriores.

Música - CDs

Haydn 2032, Vol. 10
Já foi referido aqui. Giovanni Antonini mantém em 2021, no décimo disco da integral de sinfonias de Haydn, o nível a que nos habituou na colecção, salientando-se uma Sinfonia nº 6 ´Le Matin' de referência.

Mozart Momentum 1785
Leif Ove Andsnes (pn), Mahler Chamber Orchestra.



Concertos para piano de Brahms
András Schiff (pn), Orchestra of the Age of Enlightenment.

Fenomenal gravação !  O mérito de András Schiff não se fica pelo piano - existem melhores interpretações - mas vale sobretudo pelo estudo musicológico que reavaliou o desempenho orquestral; diga-se que a O.A.E. deu o seu melhor: nunca antes uma execução dos concertos teve tanta limpidez, transparência, equilíbrio,  precisão. Um pasmo.

Historical Fiction (2021)
Grace Davidson & Christian Forshaw.

Um disco planante, a voz cristalina da soprano Grace Davidson e o saxofonista Christian Forshaw a pairar em ambientes celestiais com reinterpretações de alguns clássicos como Ombra mai fu de Handel ou Fairest Isle de Purcell.

- Merece referência ainda a obra de Max Richter "Little Requiems", do álbum Voices. Canta mais uma vez Grace Davidson.
Ouvir:  https://www.hungama.com/song/richter:-little-requiems/67888666/

Música - Concerto

O meu melhor concerto do ano foi na casa da Música, a 18 de Junho.
Arvo Volmer dirigiu a orquestra CDM com a solista Viviane Hagner em violino, para um programa dedicado a Sibelius: Concerto para violino e orquestra, e Sinfonia n.º 5. Foi quase perfeito.

Mesmo em pandemia, um excelente concerto.

Livros

Klara et le Soleil, de Kazuo Ishiguro
 (li a tradução francesa da Gallimard)

"Klara e o Sol" é um título magnífico, e a ideia é brilhante, colocar a humanidade debaixo da perspectiva de um robot de IA avançada e dependente da radiação solar. A Klara é uma AA, "Amiga Artifical", em exposição na vitrina de uma loja, que vê o mundo humano a desfilar na rua, nos passeios em frente, e um Sol de curta duração entre os prédios; ela sente a sua luz e calor como um intenso reconforto, o que será mais tarde confirmado já com Klara a servir em casa da menina Josie, doente e acamada. 
Narra Klara:

Ela [Josie] estava deitada de lado como de costume, o rosto escondido pelo cabelo que se espalhava sobre ele. Nada de inesperado quanto a Josie, mas o quarto era surpreendente. O Sol projectava motivos de luz sobre diferentes secções da parede, do chão e do tecto com uma intensidade invulgar  - un triângulo laranja carregado sobre a cómoda, uma curva luminosa atravessando o canapé Bouton, barras brilhantes no tapete. Mas Josie, na cama, estava na semi-sombra, como outras zonas do quarto. Depois, as sombras começaram a deslocar-se e eu compreendi - ajustando a visão - que era a Empregada Melania quem as criava, manejando o estore e as cortinas.
(... )
Eu tinha-me afastado da janela, não sem anter ter notado que o vento soprava mais forte que antes, abanando as árvores, e que múltiplos remoínhos em funil ou em pirâmide - pareciam rabiscados com lápis afiado - sopravam rápidos no céu. Mas o Sol furou entre as nuvens negras, e de repente - como se cada um de nós recebesse uma mensagem secreta - voltámo-nos todos para Josie.
O Sol iluminava-a, e a toda a cama, com um violento semi-círculo alaranjado. (...) Nos momentos seguintes, todos ficámos estáticos enquanto o Sol, cada vez mais brilhante, se focava sobre Josie. Esperámos, e mesmo quando a certa altura o semi-círculo laranja vivo pareceu prestes a pegar fogo, nenhum de nós se mexeu. Então Josie estremeceu e, de olhos semicerrados, levantou um braço.
- Ei, que luz é esta afinal?

                                                                                             [tradução minha, do original inglês]
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BD: Le Tambour de la Moskova
Uma linguagem gráfica diferente, criativa, belos desenhos esfumados, numa história à volta da campanha napoleónica pela Rússia até Moscovo. Pena o desenho da expressão facial, muito tosco.


Filme

Adam de Maryam Touzani, de 2019
Prémio de Veneza, um filme marroquino de uma beleza formal que muitas vezes lembra quadros de Vermeer. Lindo de verdade. E até custa a acreditar que o cinema de Marrocos tenha estas actrizes fabulosas. A ver e rever.





- Também marcante foi "As Noites Brancas do Carteiro" de Andrei Konchalovsly, este de 2014, que finalmente consegui ver em DVD. Mais um grande filme russo, bem longe do modelo de Hollywood. Voltarei a ele.

domingo, 28 de novembro de 2021

Um Museu diferente nas Orkney: o Pier Arts Centre de Stromness


O 'Centro Artístico do Cais de Stromness' parece-me um dos museus mais surpreendentes da Europa. Descobri-o nas minhas navegações pela rede quando me interessei pelas Ilhas Orkney.

Frente marítima de Stromness.


O Pier Arts Centre está instalado em duas casas de pedra do século XVIII, de empena voltada para o porto, interligados por um edifício moderno com a mesma forma exterior mas usando superfícies vidradas e paredes de zinco.


Stromness foi um porto fulcral da Hudson's Bay Company; no Verão, a partida dos navios da Companhia para o Canadá era um acontecimento social. Numa destas casas, a da família Clouston, davam-se antes do embarque grandes festas no salão, recheado de livros e com um pianoforte. Na outra casa havia escritórios e armazéns da HBC.


Stromness é a segunda maior povoação das Orkney, uma vila, pouco mais que aldeia, situada a a 58º 57' N . Tem apenas 2 200 habitantes (como Castro Marim ou Porto de Mós) e está 'de costas' para a capital Kirkwall, de que dista apenas 22 km. 


O "Pier Arts Centre" foi criado em 1979 para alojar uma colecção de arte britânica doada pela autora, a filantropa Margaret Gardiner, ao povo das Orkney. 


Antigos escritórios da Hudson's Bay Co., com uma escultura de Barbara Hepworth no pátio.

42 anos passados, a Galeria continua a ser estimada e frequentada em múltiplas exposições e palestras, tendo conquistado um âmbito muito para além do arquipélago das Orkney na promoção de arte britânica; de facto ganhou estatuto internacional com artistas como Barbara Hepworth, Ben Nicholson e Sylvia Wishart. A geração vanguardista de St. Ives está largamente representada.

Barbara Hepworth, Curved Form (Trevalgan)


Ao hall de entrada segue-se uma galeria envidraçada que deixa entrar a luz do mar.


Janelões abertos ao horizonte marítimo.

A luminosa galeria está na berma do porto, permitindo avistar a passagem de barcos e gaivotas de vários ângulos.


Um dos pintores mais representados é Ben Nicholson

Ben Nicholson, 1939.

Ben Nicholson, Still Life

Ben Nicholson, Three Circles.


Eva Rothschild, Little Cloud.

David Ward, Analemma

Espaços cuidadosamente arquitectados.

Barbara Hepworth, Group III (evocation).

Barbara Hepworth, Orpheus (maquette I), de 1956.


Callum Innes  - Exposed Painting, Deep Violet, Charcoal Black (2005)

John Spencer Wells, Landscape and Flight Form.

Mais: Collection — Pier Arts Centre






Stromness deve valer bem uma visita prolongada, juntamente com Kirkwall. E depois, aproveita-se para comprar belas malhas lambswool de Fair Isle :)