Não é tanto por 'moda', mas por irritação em ver escolhas de 10 ou 1000 melhores filmes completamente viciadas de preconceitos de modernidade, relativismo e integracionismo. A minha lista tem os meus preconceitos, claro, que são evidentemente muito melhores :D
São tudo filmes "larger than life", maiores que a vida, onde passa um sopro épico, trágico, heróico, místico, onde os actores se elevam ao nível de deuses, filmes rodeados de uma aura de universalidade que os torna lendários. Obtiveram esse status graças a uma inspiração única mas sobretudo a uma realização cinematográfica excepcional, com fôlego de génio, muitas vezes conjugada com uma banda sonora inesquecível. Nada de woke ou coisas comezinhas, portanto.
Os 20 filmes que mais preencheram a minha vida:
1. 2001 - Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick
2. Stalker, de Andrei Tarkovsky
3. E La Nave Va, de Frederico Fellini
4. Lawrence of Arabia, de David Lean
5. Solaris, de Andrei Tarkovsky
6. Vertigo, de Alfred Hitchcock
7. The Searchers, de John Ford
8. Blade Runner, de Ridley Scott
9. West Side Story, de Robert Wise
10. Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola
11. Morte em Veneza, de Luchino Visconti
12. Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock
13. Leviathan, de Andrey Zvyagintsev
14. Tree of Life, de Terrence Malick
15. Asas do Desejo, de Wim Wenders
16. Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman
17. Esplendor na Relva, de Elia Kazan
18. Era uma vez na América, de Sergio Leone
19. Titanic, de James Cameron
20. The Thing, de John Carpenter
Um factor que intensifica a magia e o envolvimento é a música: a dança das naves espaciais de 2001 ao som do Danúbio Azul, a Força do Destino a acompanhar o barco dos namorados sérvios em fuga, a música inspirada de Morricone quando Noodles espreita a dança de Deborah, a deambulação moribunda pela noite de Veneza ao som de Mahler...
Devo confessar que a cinematografia asiática - japonesa, chinesa e coreana - só está ausente porque não fui capaz de escolher de memória e sem hesitar, o que torna a lista demasiado ocidental. Noutra altura poderei rever esta questão. Mas três são russos, e geniais, o que desfaz qualquer suspeita de ocidentalismo.
Tenho de fazer justiça a alguns actores, pois vários dos 20 filmes são também filmes de actor.
Peter O'Toole em Lawrence; Kim Novak em Vertigo; John Wayne em A Desparecida; Marlon Brando em Apocalipse Now; Natalie Wood e Warren Beaty em Esplendor na Relva; Robert de Niro em Era uma vez na América; Kate Winslet em figura de proa no Titanic.
Andrei Tarkovsky, cineasta russo genial que produziu uma mão cheia de obras primas, sofria por não receber na Rússia o reconhecimento e apoio que julgava, justamente, merecer. Os seus filmes eram cortados, rejeitados, sabotados, e finalmente decidiu sair da Rússia para filmar livremente na Itália e na Suécia.
Tarkovsky 'escreveu' no seu Offret (Sacrifício), de 1986, que passamos toda a vida à espera, à espera de qualquer coisa diferente... e se nada vier, seremos nós a atear fogo a tudo o que a nossa vida foi, e ficarmos a ver. Mas ele afinal nutria outra opção, como diz nesta carta ao seu amigo também cineasta Sergei Parajanov: teve sempre a 'Nostalgia' (!) de trabalhar na terra, cultivar e construir uma vida no meio rural.
No campo estive ocupado com a construção de um celeiro novo. Consegui realizar um celeiro magnífico, uns 40 metros quadrados, com uma saliência do telhado em ardósia. Infelizmente não tenho fotografias para te enviar. Passámos uma boa temporada por lá, e comecei a sentir que provavelmente podia viver sem a desgraçada e abandonada arte do cinema. Vivendo desta forma toda a minha vida, na margem do rio, e escrevendo um longo e infindável livro que o meu filho continuaria a escrever depois de eu morrer, e depois o filho dele, e assim sucessivamente... E vivendo com o nosso próprio trabalho. Tivemos um terreno plantado de 1500 metros quadrados, e um pequeno jardim. Aqui já não aguento mais: a persuadir inutilmente toda a gente de quão importante é a arte do cinema. De facto sinto que estou cada vez mais perto de realizar esta ideia. O que me está a contrariar é a vaidade e o pesar pela meu desprezado talento; ambos sentimentos mesquinhos e insignificantes.
Andrei Tarkovsky
Algumas imagens da filmografia de Tarkovsky que mostram esse talento, agora consagrado, e nos marcam para sempre: os olhares perdidos.
Estas são as melhores coisas que li, vi e ouvi em 2021; mas podem ter sido publicadas em anos anteriores.
Música - CDs
- Haydn 2032, Vol. 10
Já foi referido aqui. Giovanni Antonini mantém em 2021, no décimo disco da integral de sinfonias de Haydn, o nível a que nos habituou na colecção, salientando-se uma Sinfonia nº 6 ´Le Matin' de referência.
- Mozart Momentum 1785
Leif Ove Andsnes (pn), Mahler Chamber Orchestra.
- Concertos para piano de Brahms
András Schiff (pn), Orchestra of the Age of Enlightenment.
Fenomenal gravação ! O mérito de András Schiff não se fica pelo piano - existem melhores interpretações - mas vale sobretudo pelo estudo musicológico que reavaliou o desempenho orquestral; diga-se que a O.A.E. deu o seu melhor: nunca antes uma execução dos concertos teve tanta limpidez, transparência, equilíbrio, precisão. Um pasmo.
- Historical Fiction (2021)
Grace Davidson & Christian Forshaw.
Um disco planante, a voz cristalina da soprano Grace Davidson e o saxofonista Christian Forshaw a pairar em ambientes celestiais com reinterpretações de alguns clássicos como Ombra mai fu de Handel ou Fairest Isle de Purcell.
- Merece referência ainda a obra de Max Richter "Little Requiems", do álbum Voices. Canta mais uma vez Grace Davidson.
O meu melhor concerto do ano foi na casa da Música, a 18 de Junho.
Arvo Volmer dirigiu a orquestra CDM com a solista Viviane Hagner em violino, para um programa dedicado a Sibelius: Concerto para violino e orquestra, e Sinfonia n.º 5. Foi quase perfeito.
Mesmo em pandemia, um excelente concerto.
Livros
- Klara et le Soleil, de Kazuo Ishiguro
(li a tradução francesa da Gallimard)
"Klara e o Sol" é um título magnífico, e a ideia é brilhante, colocar a humanidade debaixo da perspectiva de um robot de IA avançada e dependente da radiação solar. A Klara é uma AA, "Amiga Artifical", em exposição na vitrina de uma loja, que vê o mundo humano a desfilar na rua, nos passeios em frente, e um Sol de curta duração entre os prédios; ela sente a sua luz e calor como um intenso reconforto, o que será mais tarde confirmado já com Klara a servir em casa da menina Josie, doente e acamada.
Narra Klara:
Ela [Josie] estava deitada de lado como de costume, o rosto escondido pelo cabelo que se espalhava sobre ele. Nada de inesperado quanto a Josie, mas o quarto era surpreendente. O Sol projectava motivos de luz sobre diferentes secções da parede, do chão e do tecto com uma intensidade invulgar - un triângulo laranja carregado sobre a cómoda, uma curva luminosa atravessando o canapé Bouton, barras brilhantes no tapete. Mas Josie, na cama, estava na semi-sombra, como outras zonas do quarto. Depois, as sombras começaram a deslocar-se e eu compreendi - ajustando a visão - que era a Empregada Melania quem as criava, manejando o estore e as cortinas. (... ) Eu tinha-me afastado da janela, não sem anter ter notado que o vento soprava mais forte que antes, abanando as árvores, e que múltiplos remoínhos em funil ou em pirâmide - pareciam rabiscados com lápis afiado - sopravam rápidos no céu. Mas o Sol furou entre as nuvens negras, e de repente - como se cada um de nós recebesse uma mensagem secreta - voltámo-nos todos para Josie. O Sol iluminava-a, e a toda a cama, com um violento semi-círculo alaranjado. (...) Nos momentos seguintes, todos ficámos estáticos enquanto o Sol, cada vez mais brilhante, se focava sobre Josie. Esperámos, e mesmo quando a certa altura o semi-círculo laranja vivo pareceu prestes a pegar fogo, nenhum de nós se mexeu. Então Josie estremeceu e, de olhos semicerrados, levantou um braço. - Ei, que luz é esta afinal? [tradução minha, do original inglês] ---------------------------------------------------
- BD: Le Tambour de la Moskova
Uma linguagem gráfica diferente, criativa, belos desenhos esfumados, numa história à volta da campanha napoleónica pela Rússia até Moscovo. Pena o desenho da expressão facial, muito tosco.
Filme
- Adam de Maryam Touzani, de 2019
Prémio de Veneza, um filme marroquino de uma beleza formal que muitas vezes lembra quadros de Vermeer. Lindo de verdade. E até custa a acreditar que o cinema de Marrocos tenha estas actrizes fabulosas. A ver e rever.
- Também marcante foi "As Noites Brancas do Carteiro" de Andrei Konchalovsly, este de 2014, que finalmente consegui ver em DVD. Mais um grande filme russo, bem longe do modelo de Hollywood. Voltarei a ele.
' Summerland ' é um filme bonito, evocativo, sensível, bem narrado; infelizmente terá vida curta, pois não segue o padrão main stream socio-catastrófico-belicista.
Comovente e mágico, Summerland transmite o melhor da vida, o que nos faz falta nestes tempos de angustiada desesperança. Uma nuance de romantismo quando regressa ao passado da relação afectiva entre as protagonistas, um realismo lúcido no presente, que é o dos ataques aéreos alemães contra Londres nos anos 40.
Alice e Frank fascinados pela Fata Morgana, a "ilha no céu" da teosofia.
A história decorre principalmente numa aldeia da costa em Kent, perto das falésias brancas das Seven Sisters; Alice Lamb mora numa casinha sobre as dunas, a escrever ensaios sobre o folclore medieval e o fenómeno de Fata Morgana que essa tradição referia avistar-se do topo da falésia na forma de uma "ilha no céu", como uma formação fantástica a encimar as nuvens,
pairando acima do mar. Um escape à realidade da guerra, mas Alice orienta-se pela perspectiva científica, quer descobrir a explicação racional para os factos.
Embrenhada na investigação e na escrita, Alice enxota todos os que a importunam, mesmo as crianças numa campanha de apoio às vítimas. Por isso suspeitam dela, fechada e antipática, como sendo espia alemã, ou mesmo ... bruxa.
Até que lhe bate à porta Frank, um rapaz adolescente que foi evacuado de Londres e precisa de uma 'família' de acolhimento, que calhou ser ela, Alice. Depois das resistências iniciais, Frank acaba por ficar. Com o tempo, nasce uma cumplicidade em torno da investigação sobre o "castelo no céu" e os mitos da vida depois da morte. E para não estragar mais a quem for ver, fico por aqui.
A relação afectiva entre Alice e Vera é tratada com contenção e elegância exemplares.
Filmado em cores suaves, que reforçam o lado mágico, Summerland consegue conciliar o devaneio com a realidade num mundo de melancolia em que milagres podem acontecer e vir iluminar vidas sombrias e solitárias.
Uma história bem contada, bom gosto na realização plástica, ah, e é, sim, um filme muito britânico.
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Porquê 'Summerland' ? Escrito e realizado por Jessica Swale, o filme vai buscar o título ao mito pagão e teosofista de um lugar nos céus onde habitam os antepassados, que manipulam as nuvens para comunicar com os vivos - a tal Fata Morgana do castelo numa ilha de nuvem.
[Textos vários do Guardian, Variety, LA Times ...]
Nem perto estive de ver o Aleph, mas vi muito mundo. Afinal, a cave é escura e com o esquecimento (que Borges agradecia como benção) perduram no tempo apenas sombras e sfumatos.
" Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de quase
intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; logo compreendi que esse
movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O
diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem redução de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas,
porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora
e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto rompido (era em Londres), vi intermináveis olhos próximos
perscrutando-se em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me
reflectiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajes que, há trinta anos, vi no vestíbulo de
uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água,
vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma
mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito,
vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma quinta de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, num só tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava admirar-me de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no
decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que
parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto de dormir sem ninguém, vi num
gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam
infinitamente, vi cavalos de crina em turbilhão, numa praia do mar Cáspio ao amanhecer, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando
cartões postais, vi numa montra em Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas
de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marés de tempestade e
exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta
da escrivaninha (e a letra fez-me estremecer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que
Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a
relíquia atroz do que deliciosamente tinha sido Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, desde todos os
pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto
esse objecto secreto e conjectural, cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem observou: o inconcebível universo. ÃSenti infinita veneração, infinita lástima."
J. L. Borges, O Aleph
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Nas suas últimas palavras, o replicant Roy de Blade Runner também descreveu cenas do seu Aleph único - talvez o autor dessas frases se tenha inspirado em Borges: Ã ' Vi Feixes de Raios-C cintilando na escuridão junto ao Portal de Tanhauser' (...)
Porque será que estas coisas descritas em palavras têm mais poder imagético que uma cena observada ? Tantas vezes a descrição lida de um lugar supera o que mais tarde olharemos numa visita há muito ansiada. Nunca imagem nenhuma, foto ou vídeo, atingirá o poder sugestivo e evocativo da palavra escrita.
Tanto quanto tenho lido, está em curso uma redescoberta e revalorização de Bruegel como grande iniciador da pintura paisagista humanista profana, numa soberana e 'abençoada' indiferença pelos santinhos e deuses de diversas crenças. Desde a década de 1550, a obra de Pieter Bruegel distanciou-se dos italianos e os seus milhares de Madonnas con Bambino, de cenas bíblicas ou cenas da anterior mitologia greco-romana, muitas delas obra-primas bem entendido. Não admira que Bruegel estivesse farto, ufa, mas admira a coragem dele em desafiar costumes e normas.
Casamento de camponeses, 1568 Kunsthistorisches Museum, Viena
Casamento pobre: cerveja, pão, milho, Nada de carnes.
Falo de Pieter Bruegel o Velho (?1525 – 1569), pintor do Brabante, à época um ducado que hoje é mais ou menos a Bélgica central (Lovaina, Namur, Antuérpia) estendendo-se a norte até ao Reno. Era então parte do Sacro Império.
Nos meados do século XVI a Renascença italiana tinha chegado aos países baixos, dando origem à renomada Renascença Flamenga. Bruegel era citadino e culto, frequentava meios educados em Arte, não era nenhum campónio. Mas o humanismo secular a que aderiu, depois de visitar França e Itália, distanciou-se do humanismo católico do sul da Europa.
O pai da noiva, o padre e um nobre rico.
Bruegel regressou dessa viagem em 1555, casou e foi viver para Bruxelas. As suas melhores obras datam dessas duas décadas de 50 a 70 do século XVI. São sobretudo retratos da vida rural - caça, cultivo, animais, pândegas, danças e jogos. Por outro lado, tinha apetência por temas visionários, como na Torre de Babel. Fez poucos retratos; na verdade não era grande retratista, em especial do rosto humano - nenhum Dürer -, pelo que preferiu cenas sociais, vistas de conjunto. É uma perspectiva totalmente diferente da de Rafael, Michelangelo ou Da Vinci; Bruegel não valorizava o indivíduo mas o grupo, a classe, a aldeia. Nisso está próximo dos adeptos do "social" contra o "individual". A sua arte é admirável por essa sua diferença radical.
O Regresso dos Caçadores Jagers in de Sneeuw, 1565 Kunsthistorisches Museum, Viena
Bruegel pintou muitos quadros de neve e gelo (*), paisagens brancas onde uns estão deprimidos e outros se divertem. Ora foi por esta altura que começou a Pequena Idade de Gelo, surpreendendo os empobrecidos europeus da época com a progessão dos glaciares nas montanhas, o congelamentpo dos rios e o frio intenso. O ano de 1565 teve o mais frio Inverno de que havia memória - os pássaros gelavam nas árvores.
"Estamos aterrorizados com os glaciares (...) que avançam constantemente e já soterraram duas aldeias e destruiram outra." (habitantes de Chamonix)
Este quadro que observei em Viena é talvez a obra em que Bruegel vai mais longe na paisagem gelada de Inverno. Há imensos pormenores interessantes que têm dado para longas análises, algumas especulativas. Uma coisa óbvia é a utilização de diagonais que conduzem o olhar; algumas convergem para um ponto de fuga onde não há (quase) nada que ver, coisa impensável na pintura italiana. As linhas verticais (árvores, torres de Igreja) também criam tensão, organizam e dialogam, de forma tal que os caçadores não são de modo algum o tema principal; este parece mais ser o anónimo terreno lá em baixo onde decorrem cenas de alegre patinagem, sobrevoadas pela 'famosa' ave que também cria um cruzamento de diagonais.
Diagonais secundárias, em sentido inverso, parecem convergir abaixo da tabuleta da estalagem.
Curiosamente, a tabuleta pende por um só gancho, mostrando decadência. Talvez para reforçar o insucesso dos caçadores e seus cães, cabisbaixos, vítimas da vaga de frio que dizimou a caça ?
Dit is Guden Hert , "Este é o Cervo Sagrado" - está morto?
Logo por baixo, aldeões acendem uma fogueira para se aquecer.
Tantos "quadros dentro do quadro" !
Está também muito presente essa 'surpresa' do manto branco inusitado. Bruegel tinha atravessado os Alpes no regresso de Itália, mas esta (e outras dele) paisagem branca não é alpina. A Pequena Idade do Gelo estendeu-se de fins do século XVI até ao século XIX - dizem alguns que foi a industrialização que começou, com uma espécie de "aquecimento climático", a fazer recuar o avanço dos frios. Coisa boa, portanto, a industrialização - um arrefecimeto global do planeta seria muito mais trágico. As alterações climáticas não são todas iguais.
Quem diria: neste sentido, esta obra de Bruegel é mesmo uma bela lição, bem actual ! Face à adversidade climática, uns vergam-se conformados; mas há muitos outros que se adaptam e divertem, que aprendem a viver com o frio. Aprendamos nós agora.
Ah, mais uma nota, imperdivel: este Bruegel surge projectado numa parede no filme Solaris de Tarkovsky ! Será por retratar gelidamente um mundo humano nas suas duas escalas, grande e pequena ? Com música de Bach, cosmológica:
A 'Pequena Idade do Gelo' em Londres:
Feira sobre o Tamisa gelado, 1683/84
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(*) Ver aqui ou aqui , por exemplo.
De tudo o que tenho lido, ouvido e visto, parece-me este o filme mais interessante dos que concorrem aos prémios americanos este ano. Não por acaso, é inglês; a imbecilidade de Hollywood nunca andou tão à solta como agora.
'The Phanthom Thread' não é nenhuma obra prima; mas é um filme muito pessoal, com marca de autor bem pronunciada, uma produção cuidada e com bom gosto, que encena um pequeno drama clássico na época e no tema: encontros e desencontros entre duas pessoas que se atraem mas têm carácter muito diferente. Neste caso, Reynolds Woodcock, um costureiro de sucesso, que trabalha para a elite inglesa nos anos pós-guerra (ca. 1950), com uma vida familiar e afectiva nula, é finalmente tocado por uma modesta - mas bonita e alegre - empregada de mesa (Alma) que, ao tropeçar à sua frente, lhe envia um sorriso atrapalhado e irresistível. Podia ser um simples 'engate' de um ricaço já maduro, um divertimento com uma qualquer jovenzita sem recursos; mas não: a ligação entre eles vai-se tornando cada vez mais forte, um cada vez mais indispensável e mais tentador ('tentação do estranho') para o outro. A persistência de Alma é surpreendente.
Enquadramentos cuidados ao milímetro, luz coada, focagem ténue.
As peripécias pouco interessam - encomendas de vestidos, dia a dia das costureiras - porque o essencial desenha-se nos pequenos almoços à mesa com a irmã do alfaiate, uma solteirona que se assume dona da casa. Aí se jogam os mal entendidos, as recriminações e as desculpas, os amuos e os cortes, mas também a reconciliação e os mimos.
Era tudo algo fútil não fosse a filmagem inteligente e sensível, o ritmo devidamente vagaroso da montagem, e as prestações dos actores. Sem dúvida que Daniel Day Lewis tem o papel da sua vida, construindo a personagem do costureiro com a sobriedade e a inteligência adequadas a um personagem instável, inseguro, com excessiva auto-estima, que se julga no direito de se fazer obedecer. Contradição que o filme espelha com mestria, deixando adivinhar que é a ternura que vai vencer.
A escadaria é muito usada como enquadramento de relações de poder.
A Linha Fantasma do título refere-se afinal à "fraqueza" afectiva - que se transforma em força. Na entretela das roupas que confeccionava, Reynolds costumava inserir um farrapo de tecido com uma mensagem secreta. O portador não sabia da sua existência. Tudo começara quando ele próprio inseriu no seu casaco o que de mais querido tinha na sua vida - a memória da mãe. A revelação desta "fraqueza" torna-o mais humano e frágil aos olhos daquela que viria a ser sua esposa.
Não é tema que entusiasme ? Pois não. Não há filmes de fôlego, de grandes horizontes e paixões que arrastam montanhas, visionários. Não há já Jivago, Out of Africa, Solaris, Titanic, Dolce Vita, The Searchers, Esplendor na Relva, Once upon in America, Apocalipse Now, Blade Runner. Estamos na onda dos temazitos fracturantes, dos tacanhos afectos diários, da causa efémera, da denúncia social de bairro. Hélas.
Vale-nos por isso o filmezinho de época, cumpridor e bem acabadinho, à boa maneira inglesa ou matizado com a cinematografia de Hicthcock, como neste caso.
Como apêndice, a minha cena favorita: o menu de pequeno almoço de Reynolds no hotel onde conhece Alma. Encomenda ele, com a sua pausada fleuma e um sorriso matreiro:
“A Welsh rabbit*. With a poached egg on top. Not too runny. Bacon.
Scones. Butter… cream… jam... not strawberry.” No. Raspberry. Anything else? Coffee?
Tea? “You have Lapsang? A pot of Lapsang Souchong, please.” Good choice.
(pause). "And some sausages."
Depois deste pedido, Alma esta rendida. Até eu.
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Ler mais, no New Yorker
Atenção ao artigo de Pedro Mexia no Expreeso deste sábado, 17
*'Welsh rarebit', uma tosta coberta de molho de cheddar
Para já é o melhor filme que vi este ano; Paterson, de Jim Jarmusch.
O motorista-poeta de Paterson.
É preciso ter coragem e personalidade para se fazer um filme assim, hoje: delicado e gentil, focado na rotina diária, louvando a meiguice em vez da brusquidão, a poesia em vez da brutalidade, a solidão em vez do ruído social, a voz baixa e suave em vez da gritaria. Paterson é um hino ao melhor que a vida pode dar a quem nasceu modestamente e tem dois dedos de sabedoria e a cultura escolar do secundário: o bem estar que se satisfaz com pouco, sonhando sempre com o muito mais, conseguindo passo a passo transformar uma envolvente feia e agressiva num nicho de humanidade quase feliz. Quase, porque uma nota permanente, qual leit motiv que soa em fundo ao longo do filme, é a profunda solidão de cada um, na sua incomunicável intimidade.
O espaço feio de ruínas industriais, a solidão, um emprego mediocre, não conseguem tornar Paterson infeliz ou frustrado.
Os heróis do filme são gente da classe "média baixa", que se esfalfa a melhorar as coisas à sua volta com arte, poesia e humor em vez de raiva e alarme e ódio, aproveitam o que aprenderam para se valorizarem, lêem e vão ao cinema, pintam e escrevem, cozinham gulodices, observam e amam. Golshifteh Farahani, uma actriz francesa de família iraniana, é uma revelação na sua frescura interpretativa toda graça e sedução; Adam Driver ('driver' é um dos muitos jogos de palavras do filme), no papel de motorista de autocarro que escreve poemas, surpreende por uma sobriedade espartana que valoriza a vida interior e os afectos contidos. Um casal improvável que resulta em carinhosa amizade.
Poesia, design, culinária, música também, em harmonia feliz. Dois actores em estado de graça.
Claro que Paterson é muito mais que isso - o próprio filme é uma espécie de poema à normalidade, ritmado pelos dias da semana, inspirado pelo acaso de uma imagem ou algo trivial que acontece. Desenrola-se, o filme e o poema, na banalidade diária, pontuada de pequenos episódios nunca muito trágicos ou chocantes, antes moderadamente cómicos, no máximo incómodos, que são como uma "rima" a colocar música no dia-a-dia. Estive quase sempre com um sorriso durante o filme. Se a poesia nasce daqui - e não das terríveis ameaças letais e dos desesperos lancinantes - então todos podemos ser poetas, tomar nota no nosso livrinho do que nos vem à mente, os primeiros versos ou as imagens seminais, que vamos lentamente trabalhando, enriquecendo, no dia a dia das coisas rotineiras, monótonas e tranquilamente belas.
Uma visão diferente, oposta à que reina no cinema (e não só) que é a espectacularidade dramática e violenta, a narrativa do excesso na acção, no palavreado, na imagem e nos efeitos especiais.
Um jorro de água fresca, portanto. Ou uma "doce utopia", como escrevia JLR no Expresso.
The Line
There’s an old song my grandfather used to sing that has the question, “Or would you rather be a fish?” In the same song is the same question but with a mule and a pig, but the one I hear sometimes in my head is the fish one. Just that one line. Would you rather be a fish? As if the rest of the song didn’t have to be there.
Ron Padgett,
autor de três dos poemas do filme.
Este vídeo faz a montagem desses três poemas com imagens do filme:
---------------------------- Curiosamente, o que menos me agradou no filme foi o detestável e anti-poético cão, que por mim levava um pontapé para fora do filme não fosse determinante no enredo; pois foi a única coisa que o festival de Cannes achou por bem premiar. Assim andam os festivais.
Tudo quanto é jornal e revista elege os seus melhores do ano, mais estrelas menos estrelas, listas para compra e oferta "segura", como se tal houvesse.
Desalinhado com o gosto padrão dos "críticos", aqui fica o meu gosto - muito parcial e enviesado, claro - em escolhas aos pares, muitas delas já aqui referidas ao longo do ano.
Uma espécie de prenda de Natal.
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Filmes do Ano :
'Leviatã'
de Andrey Zvyagintsev
O autor de O Regresso, The Banishment e Elena é talvez o maior cineasta do nosso tempo - dizer "génio" parece-me adequado. Mais aqui.
O Regresso a Casa
Zhang Yimou
Serena melancolia também na China, filmada por um esteta da elegância e do colorido. Mais aqui.
- menção especial para o melhor filme de animação, O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata, emocionante e épico.
Discos (CD) do ano :
Haydn, sinfonias nº 31, 70, 101
Robert Ticciati com a Scottish Chamber Orchestra
Leif Ove Andsnes Beethoven, concertos nº 2 e 4 para piano
É o 3º volume da "Beethoven Journey" de Leif Ove Andsnes - e mantém a mestria de piano e de orquestra que fazem destes 3 CDs uma primeira escolha. À Mahler Chamber Orchestra cabe parte do mérito.
- uma menção especial para a 9ª de Bruckner de Claudio Abbado com a Lucerne Festival Orchestra, formidável e arrebatadora.
Livros do Ano :
A obra que mais gosto me deu ler este ano foi "A Noite dos Tempos" de René Barjazel, publicado em 1968. Quanto a livros publicados em 2015, deixaram marca estes :
Windows of the World
50 autores, The Paris Review
com desenhos de Matteo Pericoli
Belíssimos textos, ilustrados com cuidado e inspiração, ou vice-versa.
O Meteorologista
Olivier Rolin
Fundamental para perceber "aquilo tudo" que lá se passou. Triunfo dos Porcos, 1984, Gulag, um imensurável crime que é costume menorizar. Para mais, escrito com elegância e (relativa) contenção.
Aconselho o original em francês, porque esta tradução é em mau acordês.
BD
Não passei a vista por nada que se compare a
La Lune est Blanche
François e Emanuel Lepage Aqui escrevi sobre ele.