quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Os Bruegel de Viena: humanismo, paisagens, clima, Tarkovsky e Bach.


Tanto quanto tenho lido, está em curso uma redescoberta e revalorização de Bruegel como grande iniciador da pintura paisagista humanista profana, numa soberana e 'abençoada' indiferença pelos santinhos e deuses de diversas crenças. Desde a década de 1550, a obra de Pieter Bruegel distanciou-se dos italianos e os seus milhares de Madonnas con Bambino, de cenas bíblicas ou cenas da anterior mitologia greco-romana, muitas delas obra-primas bem entendido. Não admira que Bruegel estivesse farto, ufa, mas admira a coragem dele em desafiar costumes e normas.

Casamento de camponeses, 1568
Kunsthistorisches Museum, Viena

Casamento pobre: cerveja, pão, milho, Nada de carnes.

Falo de Pieter Bruegel o Velho (?1525 – 1569), pintor do Brabante, à época um ducado  que hoje é mais ou menos a Bélgica central (Lovaina, Namur, Antuérpia) estendendo-se a norte até ao Reno. Era então parte do Sacro Império.

Nos meados do século XVI a Renascença italiana tinha chegado aos países baixos, dando origem à renomada Renascença Flamenga. Bruegel era citadino e culto, frequentava meios educados em Arte, não era nenhum campónio. Mas o humanismo secular a que aderiu, depois de visitar França e Itália, distanciou-se do humanismo católico do sul da Europa.

O pai da noiva, o padre e um nobre rico.

Bruegel regressou dessa viagem em 1555, casou e foi viver para Bruxelas. As suas melhores obras datam dessas duas décadas de 50 a 70 do século XVI. São sobretudo retratos da vida rural - caça, cultivo, animais, pândegas, danças e jogos. Por outro lado, tinha apetência por temas visionários, como na Torre de Babel. Fez poucos retratos; na verdade não era grande retratista, em especial do rosto humano -  nenhum Dürer -, pelo que preferiu cenas sociais, vistas de conjunto. É uma perspectiva totalmente diferente da de Rafael, Michelangelo ou Da Vinci; Bruegel não valorizava o indivíduo mas o grupo, a classe, a aldeia. Nisso está próximo dos adeptos do "social" contra o "individual". A sua arte é admirável por essa sua diferença radical.

O Regresso dos Caçadores
Jagers in de Sneeuw, 1565
Kunsthistorisches Museum, Viena

Bruegel pintou muitos quadros de neve e gelo (*), paisagens brancas onde uns estão deprimidos e outros se divertem. Ora foi por esta altura que começou a Pequena Idade de Gelo, surpreendendo os empobrecidos europeus da época com a progessão dos glaciares nas montanhas, o congelamentpo dos rios e o frio intenso. O ano de 1565 teve o mais frio Inverno de que havia memória - os pássaros gelavam nas árvores.

"Estamos aterrorizados com os glaciares (...) que avançam constantemente e já soterraram duas aldeias e destruiram outra."
(habitantes de Chamonix)


Este quadro que observei em Viena é talvez a obra em que Bruegel vai mais longe na paisagem gelada de Inverno. Há imensos pormenores interessantes que têm dado para longas análises, algumas especulativas. Uma coisa óbvia é a utilização de diagonais que conduzem o olhar; algumas convergem para um ponto de fuga onde não há (quase) nada que ver, coisa impensável na pintura italiana. As linhas verticais (árvores, torres de Igreja) também criam tensão, organizam e dialogam, de forma tal que os caçadores não são de modo algum o tema principal; este parece mais ser o anónimo terreno lá em baixo onde decorrem cenas de alegre patinagem, sobrevoadas pela 'famosa' ave que também cria um cruzamento de diagonais.



Diagonais secundárias, em sentido inverso, parecem convergir abaixo da tabuleta da estalagem.


Curiosamente, a tabuleta pende por um só gancho, mostrando decadência. Talvez para reforçar o insucesso dos caçadores e seus cães, cabisbaixos, vítimas da vaga de frio que dizimou a caça ?

Dit is Guden Hert , "Este é o Cervo Sagrado" - está morto?

Logo por baixo, aldeões acendem uma fogueira para se aquecer.

Tantos "quadros dentro do quadro" !

Está também muito presente essa 'surpresa' do manto branco inusitado. Bruegel tinha atravessado os Alpes no regresso de Itália, mas esta (e outras dele) paisagem branca não é alpina. A Pequena Idade do Gelo estendeu-se de fins do século XVI até ao século XIX - dizem alguns que foi a industrialização que começou, com uma espécie de "aquecimento climático", a fazer recuar o avanço dos frios. Coisa boa, portanto, a industrialização - um arrefecimeto global do planeta seria muito mais trágico. As alterações climáticas não são todas iguais.

Quem diria: neste sentido, esta obra de Bruegel é mesmo uma bela lição, bem actual ! Face à adversidade climática, uns vergam-se conformados; mas há muitos outros que se adaptam e divertem, que aprendem a viver com o frio. Aprendamos nós agora.

Ah, mais uma nota, imperdivel: este Bruegel surge projectado numa parede no filme Solaris de Tarkovsky ! Será por retratar gelidamente um mundo humano nas suas duas escalas, grande e pequena ? Com música de Bach, cosmológica:




A 'Pequena Idade do Gelo' em Londres:

Feira sobre o Tamisa gelado, 1683/84


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(*) Ver aqui ou aqui , por exemplo.


2 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado por mais este "post". Irei a Viena dentro de poucas semanas e não vou perder!

Gi disse...

Gostei muitíssimo desta análise de Bruegel e dos “Caçadores na Neve”. Obrigada, Mário.