quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Purcell ovacionado numa leitura única de Teodor Currentzis


O desconchavo que eu podia temer tendo em conta o Indian Queen de Peter Sellars em Madrid não aconteceu. Pelo contrário. O Dido e Eneias na Gulbenkian foi superlativo.

Concertos assim são raros. Para começar, uma entrega total, uma intensa festa de música, desde as alegres danças (os violinos soavam a pub inglês ! ) até aos coros de perfeição quase irreal, e o pungente Lamento de Dido tocado e cantado como nunca ouvi - valorizando as pausas, o silêncio e os pianissimi, comovente até dizer basta.

Depois, o estilo interpretativo barroco levado às últimas - a música descrevendo sucessivos "arcos" em cascata de escalas, precisos e enfáticos, em fidelidade à época. Os contrastes dinâmicos surpreendiam e ajudavam a construir uma narrativa dramática que dispensou por completo a encenação (embora com algum efeito de luz, sóbrio e ajustado); o coro que termina a ópera depois do Lamento foi disso um exemplo definitivo - ora suavíssimo, quase inaudível, ora ribombando com as forças possíveis. A disposição no palco, em arco, de pé atrás da orquestra, ajudou ao efeito espacial. Acabada a ópera, as luzes quedaram apagadas num minuto de silêncio antes do aplauso. Bonito.

A empatia de Currentzis com os músicos é total, "vê-se" que aquela orquestra foi criada por/para ele. As indicações gestuais (e ele até salta e bate o ritmo no estrado) são precisas, detalhadas e muito expressivas - as mãos de Currentzis não param, são por si só um bailado. No final, escorria água por todos os poros.

Soube depois que este concerto encerrava a tournée europeia - e notou-se bem nos rostos o júbilo de todos com as prolongadas ovações que "obrigaram" a dois encores, um em homenagem a Handel - aniversário na véspera - e outro a Sellars, um trecho da Indian Queen de Madrid, felizmente não encenado :) .


Não há hipótese de traduzir em gravação esta vivacidade e esta contenção, em aparente paradoxo, nem o momento único que se vive num concerto com tal entrega. Ainda não ouvi o CD com  Dido e Eneias pela  MusicaAeterna, mas certamente que soará a excesso aquilo que em palco foi autêntico e coerente. O que fica principalmente deste concerto é

- a marca de autor de Teodor Currentzis: este é o Purcell que ele soube recriar com invulgar garra.
- a música de Purcell, desfrutada com alegria e comoção partilhadas num momento único entre músicos e ouvintes.


MusicaEterna, de Perm, nos confins da Europa.


[estiveram bem as vozes solistas, a destacar uma seria a de Daria Telyatnikova ].

domingo, 23 de fevereiro de 2014

MusicaEterna, de Perm para a Gulbenkian


Ora então, Perm estabelece a fronteira leste da Europa.

Perm State Opera and Ballet Theatre: http://permopera.ru/en/

Graças à globalização e aos voos lowcost, uma orquestra, com coro e solistas, pode deslocar-se dos Urais a Lisboa a um preço acessível, muito menos que qualquer ensemble semelhante francês, alemão ou italiano.

A MusicaEterna de Teodor Currentzis é um fenómeno recente e um caso à parte do movimento de renovação da interpretação musical. A abordagem é radical, de uma secura instrumental espartana que pode chocar, um ritmo fortemente marcado e acelerado, que procura por um lado a vivacidade, por outro lado uma apreciação mais 'espiritual' - é este lado que Currentzis quer fazer sobressair na interpretação. Não agrada a todos, pode soar a esterilidade siberiana mesclada com extremismo barroco.

Anyway, lá vou eu de 'TGV ' para a capital. Expectativa de uma interessante soirée lírica. Anna  Prohaska pode ser uma Dido 'diferente', assim evite os habituais descontroles de voz e exageros de sensualidade.

24 de Fevereiro, Grande Auditório da FCG
MusicaEterna, orquestra e côro
Teodor Currentzis (direcção)
Anna Prohaska, Tobias Berndt, Maria Forsström, Fanie Antonelou (...)

Georg Friedrich Händel
Dixit Dominus, HWV 232 (excertos)

Henry Purcell
Dido e Eneias


tour europeu de Currentzis no site da Orquestra/Teatro de Estado de Perm:
http://permopera.ru/en/playbills/touring/2014/show/4586

- Ah, e conto aproveitar para visitar o Museu do Azulejo e os 'Prados' no MAA. Os Czares do Oriente ficam para melhor oportunidade.

Aqui fica Anna Prohaska a cantar Purcell:

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Nancy Campbell, um alfabeto do Ártico


De Nancy Campbell já vi uma exposição em Brighton, e recebi agora um exemplar do seu 'livro' How To Say ‘I Love You’ in Greenlandic: An Arctic Alphabet. Esta edição é uma miniatura em postais, alternando texto e/ou imagem, numa apresentação muito cuidada.

Fica aqui um extracto de um ensaio escrito por Nancy para o blog da editora MIEL a propósito desta edição.


[Tradução minha]

« Há uma ilha ao largo da costa da Gronelândia, chamada Upernavik, ou 'sítio da primavera'. Tem o museu mais setentrional do mundo, e no inverno é um dos lugares mais escuros da terra.

Eu tinha acabado de escrever uma série de poemas sobre a luz — uma colaboração com um fotógrafo, considerando a maneira como a luz se move através do espaço, como ela é usada pela câmara para congelar momentos no tempo — quando chegou um convite para ser escritora residente no Museu de Upernavik. Eu tinha apetite para a escuridão e estava curiosa para ver que tipo de trabalho poderia fazer nestas condições.

O pequeno avião em que fiz a minha viagem ao norte lutou esforçadamente para aterrar na pequena pista de Upernavik no meio de uma tempestade de neve. Mesmo depois de os ventos terem acalmado, o céu continuava de um denso violeta, só quebrado pelas estrelas e pelas luzes de lamparinas que brilhavam nas casas espalhadas entre a colina e o porto. Mas a neve e o gelo têm uma qualidade luminescente e muitos objectos — distorcidos e escondidos sob encostas de neve — brilhavam na escuridão. Lembrei-me do mito Inuit que descreve como o antigo povo do Ártico via à luz de velas feitas de gelo antes da criação do Sol.

Cada manhã, obediente ao meu despertador, levantava-me e fazia uma xícara de café forte, em seguida sentava-me com as luzes apagadas, olhando do meu quarto escuro em direcção à escuridão do mar. Assistia ao brilho suave dos icebergs no horizonte e observava o seu progresso para sul. Em silhueta, as formas variadas — cúpulas e pináculos e alguns grandes icebergs tabulares — pareciam uma nova tipografia, uma lenta comunicação que se desenrolava desde o Pólo. Senti que eu poderia entender a mensagem, se olhasse por tempo suficiente.

Os ilhéus certamente compreendem o gelo. As suas vidas dependem disso. O vocabulário para uma variedade de diferentes formas de gelo na língua gronelandesa mostra como têm consciência das suas nuances: anarluk — pedaço preto de gelo de glaciar; imuneq — gelo com mossas; kassuk — pedaços de gelo à deriva no mar; mitillivoq — gelo que impede uma porta de se fechar; nutarneq — gelo novo; sarrippoq — gelo escorregadio; e siku — gelo sobre a água, levando a sikuaq — camada fina de gelo.

Comecei a aprender a língua, copiando várias vezes as mesmas palavras. Os volteios e ascendentes das letras ecoavam os padrões do gelo na beira-mar.


O ambiente mudava constantemente, como se para ilustrar as minhas lições. Conforme os dias se tornavam mais luminosos, o fosso de gelo em redor de Upernavik começou a fragmentar-se. Mais icebergs passavam à deriva, desprendidos dos glaciares mais a norte.
(...)

À medida que de Janeiro passava para Fevereiro, o céu que se estendia entre as montanhas cobertas de neve e o mar coberto de gelo começou a ficar mais luminoso. O sol apareceu pela primeira vez no dia dos namorados. Uma linha dourada nasceu sobre os picos nevados, descansou ali por um momento e depois desapareceu. Uma vez que o sol tinha regressado, os dias alongaram-se com desconcertante rapidez. No início de Março a longa escuridão era apenas uma memória. »

Traduzido do blog da editora MIEL

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ave Maria de Bruch, triste como os tempos que correm


[dedicado a uma Ucrânia livre e em paz]

Parece música a gotejar, ou a escoregar lentamente pelo vidro da janela.
Um especialista do violoncelo lacrimoso, Max Bruch. Faz chover dentro quando chove fora.

Obra de 1892, esta Ave Maria para violoncelo é sem palavras. Com muita sabedoria, Bruch constrói um crescendo em ciclos e contraciclos, até o climax - aos 6:58 - retomado depois em conclusão.



Max Bruch - Ave Maria para Violoncelo e Orquestra op. 61 
Julius Berger - violoncelo
Orquestra N.R.S da Polónia
dir. Antoni Wit

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Perm, a última europeia antes dos Urais.


Já aqui tenho referido cidades dos extremos da Europa, a norte, a nordeste - agora é a vez do leste: antes dos Urais e da Sibéria, Perm é a última cidade da Rússia europeia.

Perm fica nas margens do rio Kama, próximo dos Montes Urais, no lado europeu.


A razão porque escrevo sobre Perm é simples: situar a orquestra MusicaEterna de Teodor Currentzis, que vem proximamente à Gulbenkian,  num contexto menos obscuro, desvendando um pouco o local onde estão sediados. Mais uma viagem virtual aqui no Livro ...

Perm é uma das grandes cidades russas, uma entre dez com cerca de um milhão de habitantes. Tem pouca história - foi fundada no séc. XVIII , cresceu como centro de indústria (tabaqueira, construção naval) e comércio, e teve fatalmente o seu Gulag - o Perm 36 - donde procura renascer com um boom de renovação urbana e modernidade, coisa aliás comum em muitas cidades russas.


Perm não é especialmente bonita. Várias fases de mau urbanismo, a moda dos enormes caixotes concentrando o máximo de famílias por metro quadrado, foram descaracterizando os vestígios do núcleo habitacional antigo em madeira e algumas obras do modernismo. Sobra a arquitectura religiosa com as suas cúpulas em cebola dourada, um ou outro edifício mais conseguido de fins do séc XIX ou início do XX, e jardins pela encosta à beira rio. Depois, há museus e teatros com fartura. Agora surgem os inevitáveis  e espaventosos centros comerciais e de negócios, mais uns arranha-céus ousados, o habitual.

Fica aqui o que me parece melhor.

No mercado de Perm

Igrejas:

A Catedral de S. Pedro e S. Paulo, a mais antiga, de 1764 :


A Catedral da Ascensão, de 1903, que marca o perfil urbano com a sua torre e cúpulas.


A Catedral da Santa Trindade, 1857:




Museus :

A Galeria de Arte do Estado de Perm, aberta desde 1922, contém uma enorme e variada colecção de arte russa e europeia, mas também do antigo Egipto, Tibete, Japão, India e China :

Conhecida como o "Hermitage dos Urais", está instalada na notável igreja ortodoxa da Transfiguração, do séc XIX, ao fundo da Komsomolsky Prospekt, numa praça aberta ao rio Kama.


Ver mais:
http://rt.com/art-and-culture/museum-church-conflict-perm-615/

O Museu Regional de Etnologia e História :

Casa de comerciante rico, 1842


Na Rússia, não há cidade sem o seu Museu Regional. Este está instalado numa das casas mais bonitas da cidade, de frente para o rio, que se pode disfrutar dos terraços. Lá dentro, 'tudo' sobre os Urais.

O PERMM, único Museu de Arte Moderna em toda a Rússia !

http://www.permm.org/

O PERMM foi inaugurado em Março de 2009, na antiga estação fluvial, e foi um dos grandes investimentos culturais da cidade, a pensar no séc. XXI. Desde 2008 que Perm aposta em grande na cultura - design, música, teatro, ballet, galerias - e se vem transformando num atractivo pólo cultural.

A Perm mais antiga :

Um exemplar restaurado da arquitectura original de Perm, ca. 1858

Casa-museu da arquitectura em madeira

A 'Komsomolsky Prospekt '

Em primeiro plano, a Catedral da Ascensão.

Via central e eixo organizador, esta longa avenida mantém o nome de outros tempos - a Avenida da 'Liga da Juventude Comunista' - mas está a tornar-se chique, povoada de hotéis, joalharias e boutiques, e submetida a um plano de design urbano para renovação.

A larga e arborizada Komsomolsky a correr para o rio, e ao fundo à direita, num bosque, o Teatro de Ópera e Bailado Tchaikovsky.

Ao longo da Komsomolsky há prédios notáveis, como a casa do engenheiro Tupitsin, um dos obreiros da industrialização no séc. XIX:

A 'Kama Promenade'


Junto ao rio, uma praia e uma encosta verde percorridas por terraços e caminhos panorâmicos.




Cinemas

O IMAX:

Foi 'Cine-teatro Crystal' (1960) - um orgulho para a cidade.

Cine-Teatro Oktyabr ( Outubro):

De 1957, fica na Komsomolsky

O Teatro de Ópera e Bailado de Perm

Uma dos mais antigas e importantes casas de ópera da Rússia, construído em 1870,  é também conhecido como Teatro Tchaikovsky de Perm, fazendo questão de incluir obras desse compositor (10 óperas e 3 bailados) no programa anual.



É aqui que se instalou a MusicaEterna (orquestra e côro), nascida em Novosibirsk, e dedicada inicialmente à interpretação informada de música barroca; nos últimos anos a programação, renovada e intensa, inclui óperas e concertos de todo o reportório.



Perm benficia também de ser um importante hub no trans-siberiano Moscovo - Vladivostok - Pequim..


Ah, o trans-siberiano...


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A memória da História é que não pode ficar em branco; o Perm-36 foi um Gulag da era estalinista cujas imagens só podem arrepiar, testemunho do horror soviético do séc. XX de que por ora estamos livres; à União Europeia em boa parte o devemos.


Pode ter muitos defeitos a Rússia de hoje, mas é bem mais alegre, colorida, livre e aberta. Continuação.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

De Mendelssohn, também aguarelas


'Der Rheinfall bei Schaffhausen', aguarela sobre lápis, 1847

Quando da minha visita em 2010 a Stem-Am-Rhein, perto das cataratas do Reno em Schaffhausen, deparei com uma aguarela atribuída a Felix Mendelssohn, que nem era nada má e me deixou curioso. Fica aqui o resultado de uma trivial procura na net.


O jovem Felix era uma rapaz prendado e com pinta de artista, que praticava piano. desenho e pintura. Para mais em sua casa eram visitas habituais pessoas como Hegel, von Humboldt, Heinrich Heine, Carl Maria von Weber, Louis Spohr ou Paganini. Tinha tudo para vir a ser interessante.


E assim foi: dirigiu a Gewandhaus durante doze anos, fundou o Conservatório de Leipzig, interpretou obras de Bach e Mozart e sobretudo foi compondo as suas obras. Mas também pintou algumas bonitas aguarelas.

Luzern, 1836

'Bild aus Interlaken', 1847

Os quadros de Mendelssohn representam paisagens, edifícios, povoações, cenas mais ou menos bucólicas, e reflectem um nível apreciável de saber e jeito de mão.

'Obsthain mit Kastanie' [Souto de Castanheiros], 1844

É de salientar o sentido de visão estrutural e a expressão graciosa dos detalhes.

'Der klyne Groenmarkt' [o mercadito de verduras](Haia, c.1836)

Leipzig, 1838

Unterseen, Interlaken, 1840

Ao longo da vida produziu mais de 300 obras de arte. Treze destas, que estão guardadas na Biblioteca Estadual de Berlim, foram pintadas na Suíça durante a última viagem a esse país que adorava.

Florenz, 1830

Castelo de Chillon (?), lago de Geneva 

Mendelssohn faleceu em 1847, após uma estada em Interlaken; três das obras aqui ilustradas datam desse ano - foi pintor até morrer.

Interessante e nada mal, mas bem vistas as coisas, os desenhos dele que prefiro ainda são destes assim:


Saber mais: aqui ou aqui.

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Para acabar em beleza, o adagio do Quarteto de Cordas op. 80, de 1847, a derradeira e dolente obra de Felix Mendelssohn: