quinta-feira, 30 de julho de 2020

'Não há nada a recear', ou como encarar o Fim com ... bom humor.


"Nothing to be afraid of " é o livrinho de Julian Barnes que acabei de ler, adequadamente na pandemia viral em curso. Com muito humor e erudição, citando diversos testemunhos - na maioria literários - Barnes discorre sobre, digamos, os prós e os contras de termos vida finita, e sobre o aproximar do último momento.

São convocados por Barnes em apoio desta ou daquela (contrária) perspectiva, além do seu irmão 'filósofo´: Alphonse Daudet, Somerset Maugham, Flaubert, Goethe,  Montaigne, Voltaire, Shakespeare, Stendhal, Zola, Shostakovsky, Camus, e sobretudo Jules Renard. Relata episódios passados com os pais, como eles viveram o seu fim próximo.

Quanto ao próprio autor, é ateu não militante, e tem até pena do Deus perdido de Mozart ou Fra Angelico. Nem que fosse o deus dos Celtas. Nem que fosse um deus brincalhão a fazer de nós cobaias. Mas uma segunda vida depois da morte ? Nãããããã... Imortalidade ? Ainda pior. É muito mais saudável e reconfortante saber que vimos do nada, temos a nossa vida e para o nada voltamos; que assim como os anteriores se foram para deixar lugar vago para nós, faremos o mesmo abrindo vaga para quem aí vem. Como uma ave que do vazio negro da noite entrasse pela janela do salão iluminado de um palácio onde decorrem festins e festividades, e após percorrê-lo voltasse a sair pela janela do fundo para o negro vazio da noite.

Há o problema dos convertidos da última hora: sempre desdenharam da morte, encolhiam os ombros ou sacudiam a palavra como uma mosca no ombro; mas quando chega o momento tremem de pavor. Convém ter isso em consideração para não fazer figuras tristes :D , e lembrar, nessa hora, Jules Renard:
La mort est douce : elle nous délivre de la pensée de la mort .
Ou seja, morrer é um alívio, livra-nos do medo de morrer. Ah ah.

Lembrar também Flaubert, quando opinava que devemos morrer 'com estilo':
"O Paraíso não existe, mas mesmo assim devemos esforçar-nos para ser dignos dele".

De passagem, Barnes vai-nos contando pequenas histórias, como esta citada de Montaigne:

Um dos Césares de Roma foi abordado por um seu antigo soldado, decrépito. Tinha servido sob seu comando, e agora pedia permissão para se livrar de uma vida penosa. César olhou para ele de alto a baixo, e perguntou com a rude ironia típica dos generais: " E o que te leva a pensar que isso que tens é vida?"

ou esta 'roubada' a Maugham:

Um comerciante de Bagdad envia o criado a buscar provisões. No mercado, o homem é empurrado por uma mulher; volta-se, reconhece a Morte. Foge a correr para casa, pálido e tremendo do susto,  e suplica ao patrão que lhe empreste o cavalo; tem de ir de imediato para Samarra esconder-se onde não possa ser encontrado. O patrão acaba por ceder. Mas depois vai ele ao mercado, aborda a mulher e invectiva-a por ter ameaçado o criado. Oh, responde a Morte, é que fiquei surpreendida por o ver em Bagdad esta manhã, tenho encontro marcado com ele esta noite em Samarra.

ou versos de Shakespeare,

Golden lads and girls all must,
As chimney-sweepers, come to dust.


Barnes sublinha que de facto a morte não é algo exterior a nós, uma ameaça inimiga externa que invade e destrói o nosso corpo; não, ela está inscrita no nosso corpo, nas nossas células, nos nossos cromossomas. Começamos a morrer mal nascemos, a morte é o que trazemos dentro de nós durante toda a vida, em alguma peça defeituosa do material genético, em algum órgão disfuncional, na máquina com tempo limitado de que somos feitos.

Outro aliciante do livro são os vários episódios sobre a visita de Stendhal a Florença, divertidamente comentados; o que tem isto a ver com a morte? só lendo... mas atenção, não é um livrinho que traga alguma novidade sobre o assunto ! É só uma leitura culta e sábia, para desdramatizar. Depois de 'The Sense of an Ending', será o melhor que li de Julian Barnes - embora termine sem conclusões, e de forma desenxabida.

Mais vale, portanto, não chegar ao Fim !


domingo, 26 de julho de 2020

Verão (des)mascarado na beira-mar de Gaia


A hora melhor para ir à praia é quando os outros desertam. Nao sei se o corona fica na areia, ou nos rochedos, mas sem ninguém por perto já nem é preciso máscara. Por sorte, a maré vaza, o pôr do sol e o esvaziamento da praia têm coincidido agora um pouco antes das oito horas; é por essa altura que tenho saído a massajar os pés na areia e refrescar as pernas na espuma das ondinhas rasas. As cores ficam mais vivas e a temperatura anda pelos vinte, pouco mais, nada mal. Até que veio a nortada e parte do encantamento foi rudemente soprado.

Publico imagens e um poema de Emily Dickinson (um excerto, em tradução mais adiante): 


           A something in a summer's Day
           As slow her flambeaux burn away
           Which solemnizes me.



           A something in a summer's noon -
           A depth - an Azure - a perfume -
           Transcending ecstasy.



           And still within a summer's night
           A something so transporting bright
           I clap my hands to see -



           Then veil my too inspecting face
           Lets such a subtle - shimmering grace
           Flutter too far for me -


           ...



   Algo existe num dia de Verão
   Lento como os seus lumes se apagando
   Que causa em mim solenidade.

   Alguma coisa num entardecer de Verão,
   Um âmago - um azul claro - uma fragrância -
   Trascendente enlevo.

   E ainda numa noite de Verão
   Alguma coisa a brilhar tão cativante
   que bato palmas só para ver -

   Depois cubro o rosto, por excesso de inspecção
   Não se vá tão subtil - cintilante magia
   esvoaçar p´ra longe de mim -
...

quarta-feira, 22 de julho de 2020

As praias da minha vida - Baleal, Barcela, Pragueira, Anse du Croc, Ré, Kinghorn, Bamburgh e as outras


Não me vou lembrar de todas, e nada recordo do Algarve com os meus pais a não ser uma forte ventania; dessa época, as melhores recordações são da Foz do Arelho, junto à lagoa. Mais tarde, muito mais tarde, comecei a praia por minha conta no Baleal, a norte de Peniche.

A espectacular praia norte do Baleal, onde se entrava devagarinho mar adentro, sempre com pé - e que água aquela !

Foram anos seguidos de enlevo, mas o Baleal acabou estragado pela multidão. Perto dali, a alternativa mais simpática que deixou saudades foi S. Pedro de Moel, com uma bela praia de maré vaza a norte, e um excelente arroz de tamboril. Na zona de Sintra, fui pelo menos 3 anos para a Praia Grande, onde a gulodice eram as bolas de Berlim na praia: nunca mais comi tão boas. Quando descobri as praias das Rias Baixas galegas, foi uma revelação; a da Barcela, no Grove, foi a favorita; ao lado, a Area Grande para caminhar; também visitava a Lanzada, mas sobretudo a Pragueira, espantosa na maré vaza.

As águas transparentes e sossegadas, a areia pura e limpa da Barcela.


A Pragueira:

E quase esquecia as gloriosas praias da ilhas Cies e Ons !

Gostei muito de Tossa de Mar, detestei as praias de Barcelona e da Andaluzia; em Maiorca e Minorca ('Es Talaier'), estive em praias de visita por uma tarde. Mais longe, fui até à beira-mar rochosa em Hvar na Croácia (ainda era Jugoslávia) e Korčula; e até em Atenas dei um salto à praia em 1990...

Mas na 'estranja' o melhor foram duas temporadas na favorita Ilha de Ré, onde afinal se está sempre à beira mar, mesmo a passear pelas ruas.




Belíssimas são as praias da cintura dourada na Bretanha, na Côte de Granit Rose, desde Saint Malo, indo para poente. Foi em 2014, uma das passeatas que mais gosto me deram.

A requintada plage du Bon Secours, virada a norte para o Canal. Imperdível degustar uma taça de branco de Nantes :)


A cinematográfica Saint Lunaire de Rohmer, vazia:




Plage de La Fosse, vista do alto do caminho cénico costeiro.

Na estrada do Cap Fréhel sucedem-se praias maravilhosas, com um percurso panorâmico pelos topos, no meio da vegetação de mar. Numa delas, La Anse du Croc, talvez a mais linda onde já estive, passei a tarde com uma banhoca memorável.


O carro ficou na estrada, pertinho, e descemos a pé.


Lá em baixo na praia andava um grupo a cavalo ao longe, na orla do mar.



Uma tarde que valeu por muitas.

Agora praias do Norte; Brighton em 2013, de cadeirinhas no areal.


Para quem gosta, também se faz praia no famoso Pier.

Estive há pouco na Escócia, em Kinghorn:

Cenário mediterrânico a norte de Edimburgo.

É diferente, é.

Subi à alta duna em Bergen aan Zee, no Báltico holandês, em 1991; estive uma tarde de calor em De Haan na Bélgica, onde saboreei uma 'Charles Quint', a melhor cerveja do mundo; também um caloraço me levou à praia de Bellevue em Klampenborg, a norte de Copenhaga; e finalmente no nordeste inglês, deambulei no areal de Bamburgh em 1995.


Uma caminhada inesquecível sob protecção do imponente Castelo.

https://englandsnortheast.co.uk/bamburgh/ 

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Agora fico por aqui, na Estrela do Mar.




sexta-feira, 17 de julho de 2020

Olonkinbyen, confinamento ártico em Jan Mayen


Com estes 38º C e mais, o Ártico apetece.

Jan Mayen e o vulcão Beerenberg, por William Scoresby

Confinada, essa sim, está a equipa permanente no aldeamento-base de Olonkinbyen, na ilha vulcânica norueguesa de Jan Mayen, a 71° N de latitude. Uma das últimas fronteiras da Europa, a ilha ergue-se inesperadamente do Atlântico Norte, 950 km a oeste da Noruega e 600 km a norte da Islândia. É o lugar mais remoto de todo o hemisfério norte, muito acima do Círculo Polar ártico e a dias de viagem de qualquer cidade europeia. Só em Svalbard, outra ilha norueguesa, existem europeus mais a Norte.


Olonkinbyen é um aldeamento pré-fabricado, que a Noruega foi instalando na ilha desde 1959 para observações científicas. Aloja o pessoal que opera a estação rádio-meteorológica, as infraestruturas da energia e da pista de aterragem, e a equipa rotativa de investigadores, ao todo uns 18 membros, número que pode ir até ao dobro nos dois meses de Verão. É a população total da ilha, e da sua 'capital'.



Os 'habitantes' de Olonkinbyen (= cidade de Olonkin) vivem quase todo o ano encerrados num labirinto climatizado de pavilhões, salas e corredores. As escassas saídas (sempre dependentes da meteorologia) são para trabalho no terreno. Estuda-se o clima, geologia e oceanografia, vulcanologia e geotermia.


O complexo é constituído por contentores bem isolados e resistentes interligados entre si. O interior foi decorado tanto quanto possível como um hotel, mas com muitos laboratórios e salas de trabalho. Há salas especiais multimedia, um museu, refeitório, posto de correio, biblioteca e... piscina !


Aquecimento, água, música: aqui o melhor sítio é em casa.


Museu


Sala de jogos

Dia de sol na 'Playa del Alge', piscina aquecida e tudo.

Na ilha existem, desde o início do século XX, outras cabanas dispersas que em tempos foram de abrigo de caçadores, e um aglomerado, Puppebu, que pode ser consideardo a segunda 'povoação', mas é de ocupação temporária. Fica no lado oposto da ilha, numa baía de lava, e está ligada a Olonkinbyen por uma estrada de lama vulcânica batida, a Mayenveien, que serve também o aeródromo.

Será o único 'monumento' da ilha este poste na Mayenveien, onde se acumularam ao longo dos anos direcções e distâncias de sítios da Noruega de onde vieram sucessivos ocupantes da base.


´Maratona' na estrada de lava de Puppebu.

É também a zona da ilha mais acostável por pequenas embarcações.


Gamlemetten, junto às águas da Nordlaguna, era uma estação meteorológica norueguesa. Duas das construções foram restauradas, uma das quais, Frydenlund, para alojamento.


Depois do trabalho, uma pausa reconfortante a mais de 500 km a norte do Círculo Polar.

Algumas visitas vai havendo: um veleiro que passa em cruzeiro de Verão, um ou outro urso polar. A equipa também recuperou e mantém habitáveis algumas cabinas de pescadores, para alojamento de emergência. O turismo não está permitido , excepto algum desembarque restrito a Puppebu. Passam todo o inverno na ilha umas 14 pessoas, incluindo pessoal militar norueguês que opera a base aérea e o radar, mecânicos, cozinheiros e enferemeiro(a).

Um Hércules C 130 da Força Aérea opera o transporte de pessoal, abastecimentos e correio, oito vezes por ano. O correio pode vir muito atrasado.




A Ilha de Jan Mayen e o vulcão Beerenberg

Jan Mayen é parte da cadeia dorsal meso-atlântica, elevando-se do fundo oceânico 3000 m abaixo do nível do mar.  Jan Mayen pertence à Europa; estando como a Islândia sobre a crista oceânica central, os Jan Mayenianos de Olonkinbyen são europeus.


Um vulcão activo, o Beerenberg (2277 m), domina a pequena  e alongada ilha. Teve a mais recente erupção em 1985.


O topo de Beerenberg (= Monte do Urso) está permanentemente coberto por uma capa de gelo, que envia línguas glaciares em várias direcções. O resto da ilha é de baixa altitude, estreita e coberta de sedimentos vulcânicos.

Beerenberg, altitude 2277 m


Do cimo do vulcão escorrem vários glaciares que tapam as correntes de lava anteriores, precipitando-se desde a cratera até ao mar.



No resto da ilha a antiga lava está coberta com tapetes de musgos, líquenes e plantas rasteiras.


Muito pouca gente alguma vez aqui pousou, esta é quase terra virgem.

Engelskbukta, praia negra.

Sob a erosão a lava solidificada apresenta formas estranhas.

Há duas lagoas na base do vulcão; são as zonas mais verdejantes, que florescem no Verão (morugem, dente-de-leão). Gamlemetten fica junto à bonita Nordlaguna:

Nordlaguna no Verão. É uma importante fonte de água potável.

Mergulhão do Norte, ou do Ártico: a fauna avícola é imensamente variada.


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História:

A Ilha de Jan Mayen foi descoberta em 1607 por Henry Hudson, embora haja indícios do seu conhecimento anterior pelos dos Vikings. Foi o navegador neerlandês Joris Carolus que lhe atribuiu o nome actual. Ainda no início do século XVII, os Holandeses estabeleceram na ilha várias estações baleeiras, que chegaram a ocupar um milhar de pessoas na produção de óleo de baleia; foram abandonadas por volta de 1640 por extinção de baleias na zona. Por mais de 200 anos, Jan Mayen permaneceria desocupada.

Só no século XIX, em 1882, uma expedição austro-húngara (!!) construiu uma estação meteorológica e mapeou a ilha. Os noruegueses só apareceram cerca de 1900, a explorar os recifes; ainda restam dessa época algumas cabanas de pescadores.


Os noruegueses instalaram uma estação meteorológica do Instituto Nacional e conseguiram a anexação de toda a ilha entre 1922 e 1926, com a soberania estabelecida em 1929 por decreto real. Entretanto tinha começado a caça à raposa. Pelo menos treze cabanas de caçadores existiram na ilha, até à extinção da espécie.

Do Beerenberg conhecem-se 7 erupções entre 1732 e 1985. As mais recentes foram em 1970 ( a mais forte) , 1973 e 1985

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E estejam gratos, dei-vos viagem a um sítio deste planeta onde nunca hão de ir. Muito trabalho me deu, pois. Espero que o guia tenha agradado e ajudado a refrescar :)