sábado, 11 de julho de 2020

Ulieta, ou Ulietea, a ilha do melro extinto


Editado em Portugal com o nome A Pintora de Plantas, o livro de Martin Davies The Conjuror's Bird é um dos mais engraçados que tenho lido ultimamente. É de certa maneira um livro de aventuras ficcionais entre Jules Verne e Dan Brown, onde há fartura de mistério, investigação, romance, personagens caricatos ou vítimas de cicunstâncias (embora sem densidade) e uma escrita desenvolta que raramente cansa. A narrativa alterna entre dois tempos, o presente - a investigação sobre o pássaro misterioso da ilha Ulieta, extinto desde 1774 - e o passado - a vida de Joseph Banks, botanista inglês da gloriosa era Georgiana que acompanhou Cook na viagem do HMS Endeavour pelo Pacífico Sul e teria sido proprietário do últmo espécime do pássaro. As duas histórias entrelaçam-se na pessoa de uma jovem de Revesby, Lincolnshire, que tem um jeito especial para desenhar e pintar plantas nos bosques em torno da aldeia. Com engenho, Martin Davies aproxima Joseph Banks da pintora Miss Burnett, de forma a que as duas narrativas convergentes venham a ajudar na procura da ave.

Li-o em confinamento durante Maio e Junho, mas talvez seja um livro indicado para o Verão: ligeiro mas divertido, apesar de algumas páginas dispensáveis que só fazem demorar o desenlace. Embora não siga felizmente o A. O., a tradução é bem fraca, mais vale tentar o original.

Joseph Banks foi um naturalista que se tornou famoso e respeitado nos meios científicos quando publicou um catálogo descritivo da flora e fauna da Terra Nova e Labrador. Foi convidado pelo capitão Cook para a sua primeira viagem ao Pacífico Sul entre 1768 e 1761; o objectivo era observar o raríssimo "trânsito de Vénus" sobre o Sol, visível naquela região em 1769.

De passagem pelo Brasil, Banks descobriu e descreveu a "buganvília" , hoje muito popular. Para a observação astronómica, aportaram no Tahiti. Joseph Banks aproveitou o tempo para explorar as ilhas e suas florestas. O artista Sidney Parkinson, que integrou a expedição, executaria desenhos e aguarelas da fauna e flora. Prosseguiram para a Austrália, onde exploraram e mapearam a costa, e pela primeira vez foi avistado um canguru, cuja descrição Banks registou no seu diário. Austrália e Nova Zelândia foram declaradas território do Reino.


Se o regresso foi triunfal, Joseph Banks acabaria por desistir de integrar a segunda viagem de Cook (1772-1775), descontente com o Almirantado. Voltou ao Lincolnshire, onde terá reestabelecido relações com a pintora de plantas, Miss Burnett. Planeou com ela viajarem até à Madeira, mas enquanto ela embarcou no pequeno 'Robin', ele foi obrigado a uma viagem profissional à Islândia.
Descrição curiosa da chegada da pintora Burnett à Madeira:

As the Robin drew nearer and she began to make out the details of trees and farms, an unfamiliar joy seized her. She knew as she looked that she was being touched by something so profound that she would never be the same again. For the last mile or so, the 'Robin' hugged the coast and she let the parade of shore and straggling houses roll past her, always with green, sloping mountains beyond them. On reaching port she expected to be overwhelmed with panic. Instead, she disembarked almost in a trance, the bustling crowds barely noticed as she looked beyond them to the places from where they had appeared.The town seemed to her brilliant and exhilarating, though the accounts she'd read had called it neither. The houses that clustered around the harbour were either bright white squares or haphazard compilations of weather-worn timber. The sounds of the town were completely new, and even familiar noises were accompanied by exhortations in tumbling, foreign tongues. She had read of the dirt and squalor of foreign ports but the smell that reached her as the harbour enclosed them seemed right for the place – tar and heat and humans mixed with the stench of mud and floating waste.She watched a fellow passenger put a handkerchief to his nose but she was happy to breathe in the smell, to catch it and record it in her memory. The hills above the town, still green and hazy, were a promise of freshness that made her smile again.

O livro explora a total falta de dados sobre o 'affair' de Banks e Burnett, ficcionando romanticamente os encontros dos dois a par dos diversos interesses concorrentes na procura do paradeiro da ave.

Mary Ann Burnett, Oak leaves - talvez seja uma descendente ? (*)

Proveniente de alguém que esteve na 2ª expedição de Cook, terá chegado às mãos de Banks por volta de 1775 um espécime da ave de Ulieta, entretanto desaparecido, mas do qual fora feita uma gravura ou aguarela. É a 'caça' a esse espécime perdido que alimenta a ficção de Davies.

A ilha de Ulieta

Ulieta, ou Ulietea (hoje Raiatea), é uma das ilhas da Polinésia francesa, a maior depois de Tahiti. Em grande parte montanhosa, coberta de floresta virgem, os 12 000 habitantes vivem na faixa litoral, onde há  empreendimentos turísticos; a povoação principal é Uturoa, uma rua com feias casas coloniais e um pequeno porto.


Ora aí está um sítio onde nunca hei de ir. Paradoxalmente, é hoje mais difícil lá chegar do que no século XVIII quando Cook lá passou no Endeavour a caminho da Austrália. Nessa altura, os barcos contratavam desde carpinteiros e cozinheiros a desenhadores e naturalistas, e todos partiam 'alegremente' à aventura durante meses. Cook voltou lá 4, quatro, vezes ! Já tratava tu-cá tu-lá com o rei dos nativos. Quem é que vai quatro vezes a uma ilha dos antípodas ? Agora só pagando fortunas por uma semana.

De interior montanhoso e luxuriante de vegetação, a ilha era bordada na faixa litoral por algumas povoações nativas.

A maior riqueza da ilha é a cobertura florestal; na ausência de praias tropicais como as que enchem de turistas as ilhas vizinhas, em Raiatea a presença humana é moderada, e a protecção da Natureza é prioritária.


Quanto ao pássaro misterioso de Ulieta, o tal extinto em 1774 e de que se conhece apenas um desenho (nunca foram encontrados na ilha ossos ou vestígios), começou por ser classificado como variedade de Tordo, mas afinal será mais exactamente uma variedade de ... Melro!
'Merula Ulietensis' ou 'Turdus Ulietensis' (desenho de 1879), a primeira ave a ser dada como extinta.

Aprendi também que Melro é uma aliteração portuguesa de Merula !

(*) M. A. Burnett Plantae Utilities

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