sexta-feira, 30 de julho de 2021

Leituras e DVDs para este Verão


Não tenho nenhuma leitura recém-publicada, é tudo livros com meses ou anos. Só exceptuo os dois que já li e de que aqui falei, Another Time, Another Place de Victoria Crowe e Encre Sympathique de Modiano. 

Contos. Farto de Tchekov, que está largamente sobrevalorizado, volto a um outro, subvalorizado, Alistair Maclean. The Lonely Sea junta alguns contos de marinheiros (marinha de guerra ou pescadores), sempre às voltas com os perigos do mar. 

Por exemplo, They Sweep the Seas, um dos melhores contos, é a descrição do processo de varrimento do mar à procura de minas (minesweeping), depois da 1ª Grande Guerra, no Mar do Norte ao largo da Escócia. Duas traineiras saíam do porto - talvez Tarbert ? - diariamente pela manhãzinha, fosse qual fosse o estado do mar, e chegando à zona destinada para esse dia lançavam um cabo de aço de uma para a outra, com pesos devidamente colocados para fazer arrastar o cabo abaixo da superfície das águas; todas estas operações exigiam uma mestria extrema na manobra das traineiras que só os melhores dominavam: uma precisão de centímetros, estivesse mar calmo ou agitado ! 

Havia acidentes fatais - se a mina explodia perto de uma das traineiras, se o cabo partia e no ressalto cortava algum tripulante - e sucessos festejados, se a mina era desactivada. Cada caso de sucesso ficava registado com uma marca na madeira, um V. MacLean conta estes detalhes da vida marítima no início do século XX com muita vivacidade e humor, num inglês que dá gosto ler.

Para relaxar, BD: mandei vir os dois volumes de Faut pas prendre les cons pour des gens, 'Não se pode tomar os parvos por pessoas', humor sarcástico francês numa edição de Fluide Glacial, a bater sobretudo nos novos códigos morais do inicio deste século.  

Um exemplo: a máquina self-servive para obter diplomas:

Nem por seres diplomado deixas de ser um parvo.

Quanto ao Anomalia, L'Anomalie, de Patrick Teller, ao contrário do que dizem o Expresso, o número de vendas e um prémio imerecido, é um livro completamente idiota, mal escrito, que pirateia ideias já muito repetidas e melhor exploradas da ficção científica numa prosa vulgar submetida aos códigos mais vulgares dos tempos que correm, tudo num pacote multiqualquercoisa e inclusivo, aborrecido. Não há um personagem que seja com consistência, tudo esboços de marionetes, não admira que se fale de duplos; e o enredo mesmo sendo básico está baralhado sem estilo nem coerência. Um flop.

Estou ainda à espera do novo Ishiguro, Klara e o Sol.

Filmes em DVD: uma escolha bastante óbvia é rever todo, ou quase, o Eric Rohmer, reeditado em HD; Genou de Claire, Pauline à la plage, L'amour l'après-midi (malandreco) e os quatro Contes, em particular o lindíssimo Conte d'été.  

São filmes de Verão por excelência, quentes, tolos (silly season ) e finalmente melancólicos, mas com personagens e diálogos de antologia. Que saudades dos tempos em que 'tudo' era permitido mas havia decência e contenção.


domingo, 25 de julho de 2021

Erté, Romain de Tirtoff, mestre da Art Déco, conhecem ?


Romain de Tirtoff (1892, S. Petersburgo - 1990) foi um artista francês, de origem russa, mais conhecido pelo pseudónimo Erté, das iniciais "R.T." em francês. Seguindo a corrente Art Déco, produziu obras de joalharia, estatuária, artes gráficas, moda, e também cenários para teatro, ballet e ópera. 

O seu grande sucesso deve-se a um contrato em Nova Iorque com a Harper's Bazaar, em 1915, que não só lhe deu fama como os meios para poder viver da actividade artística. 

Entre 1915 e 1937, Erté desenhou mais de 200 capas, e também colaborou com a Cosmopolitan e a Vogue, entre outras.

Quatre Émotions - L'amour, para a Vogue

Séries como "O Alfabeto" ou "Os Numerais" foram também muito populares em exposições.

 
O Quatro, Adão e Eva entrelaçados de folhas e bailando.

 
O Seis, de Erté

Prisoner of Love, bronze.

Mais tarde, já depois dos 70, Erté dedicou-se à escultura em bronze pintado a frio; criava peças únicas como oferta em troca de favores. É portanto o exemplo ideal do artista 'vendido', sem alma, sem rebeldia, que trabalha por encomenda, e por isso desprezado por muitos; como se a beleza em Arte tivesse de obedecer a critérios sociais.

Soleil, bronze.

 
The Flames of Love, bronze.

A Art Déco de Erté foi influenciada pela arte japonesa e por Beardsley, ilustrador inglês de temas ´decadentes´.

 
Tanagra, um dos bronzes mais requintados.
 
Mas é um facto que Erté se moveu sempre nos meios endinheirados e de prestígio social, entre Nova Iorque, Paris e S. Petersburgo. As exposições no MET e no Ermitage eram acontecimentos de sociedade. Era disso que ele gostava e cultivava.

Talvez a sua obra mais conhecida seja Symphony in Black, uma mulher alta e esguia, estilizada, envolvida em roupagens e adereços negros e acompanhada por um cão também negro. Um estilo que faria escola.

Dois anos antes de morrer, Erté criou várias edições limitadas de garrafas para a casa Courvoisier.


 Mais: https://biography.yourdictionary.com/erte

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E pronto, aqui têm um bom exemplo de Cancel Culture, a cultura de apagamento de personalidades de algum mérito só porque não correspondem aos cânones do Politicamente Correcto. Erté era artista da alta burguesia, que seja ignorado.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Tinta simpática, de Patrick Modiano

 É o nome da tinta invisível, que escurece com limão.

Noëlle Lefebvre, é desta vez o nome da mulher procurada, a mulher-mistério que um dia desapareceu sem notícia. Há a sensação de déjà lu, mas com a fluência de Patrick Modiano, a nostalgia de uma Paris perdida a surgir em cada esquina - memória indefinida, imersa em névoa mesmo em pleno Verão - é fácil deixar-me levar página após página a deambular, perdido também nas ruas de um livro, "perdu dans des zones oú s'enchevêtrent la mémoire et l'oubli ". Depois, há nomes que surgem, nomes quase mágicos que saltam do nada: Roger Behaviour (aliás, Béavioure), Gérard Mourade, George Brainos, Françoise Steur, Serge Servoz, café Khédive - este existe mesmo.

« Je marchais le long de l'avenue vers l'Étoile et je me sentais, ce soir-là, dans ce qu'on appelle curieusement un « état second ». Jamais Paris ne m'avait semblé aussi doux et aussi amical, jamais je n'étais allé si loin dans le coeur de l´été, cette saison qu'un philosophe dont j'ai oublié le nom qualifiait de saison métaphysique. Ainsi, Noëlle, la bergère des Alpes, avait habité quelque temps dans l'une des chambres du haut, à une centaine de mètres derrière moi... L' avenue était déserte, et pourtant je devinais à mes côtés une présence, l'air était plus vif que celui que je respirais d'habitude, le soir et l'été plus phosphorescents. »

 
Le Khédive

Gosto de ler sobre Paris, seja literatura ou relatos de viagem; mas não sei bem porquê nunca fiquei entusiasmado das vezes em que lá estive, sempre uma sensação de demasiado grande, demasiado caos, gente desagradável, tudo fica longe de mais e nada vale a pena do esforço desmedido. Ou quase. A Sainte Chapelle vale. Mas as pontes, os cais, Montmartre, os Arcos (velho e novo), é tudo ficção pacóvia do romantismo americano, há muito melhor noutras paragens, já para não falar de orquestras e concertos. O Louvre e infrequentável, a Torre feia, feia; nos cafés a demora não se aguenta, nem a sobranceria antipática. As minhas metrópoles são Roma e Londres, mas em geral prefiro cidades pequenas - Strasbourg, Saint-Malo, La Rochelle, Bordeaux, Annecy...

 
« Elle prenait ces cars, été comme hiver, aux mêmes heures. On y retrouvait les mêmes personnes. Elle y avait remarqué un garçon de son age. L'été, il montait dans le car de six heures du soir à Annecy et descendait a Veyrier-du-Lac, juste avant le tournant de la route qui menait a l'intérieur des terres.(...)

Ils étaient souvent assis sur une banquette du fond, côté à côté. Une fin d'après-midi  dans l'un de ces cars d'été, ils avaient engagé la conversation. Elle revenait de son travail. Mais quel était le travail de cet été-là ? Serveuse dans une pâtisserie sous les arcades ? (...)

L'hiver, dans le car de dimanche soir, il rentrait au pensionnat. Ces soirs-là, ils se tenaient debout, serrés l'un contre l'autre pendant tout le trajet. Ils se séparaient sur la place, devant la mairie. Plusieurs fois, elle l'avait accompagné le long de la petite route droite qui menait au pensionnat, et ils marchaient lentement tous les deux pour ne pas glisser sur la neige. »


Noëlle tinha fugido de Annecy para Paris. Mas afinal foi por pouco tempo, em Roma é que a vamos descobrir e desvendar o mistério, revelar a tinta simpática: "Elle lui expliquerait tout ". Mas nós, ficamos, sem explicação, a ler a frase final. Genial, Modiano. Ah, Roma de todos os encontros !

Gosto destas histórias de pessoas sem nação, que saltam fronteiras de cidade em cidade, para esquecer e renascer. E como diz o ditado, vai sempre dar a Roma.

 

domingo, 18 de julho de 2021

Lerwick, II - Câmara, Museu e Esplanada


Lerwick, Shetland - continuação
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Estávamos nas vielas de Lerwick. Subindo encosta acima, encontra-se o edifício da Câmara:
Lerwick Townhall


É uma vistosa construção neo-gótica de 1883, visível de quase toda a cidade acima da linha dos telhados. Parece uma requintada casa baronial escocesa.


No interior, a Sala do Conselho exibe uma grande riqueza de janelas de vitral, onde se narram episódios marcantes da História das Shetland, desde os Vikings do rei Harald que reinou desde 870, até James III, rei da Escócia em 1460.

Council Chamber
 

Nesta janela figuram Magnus Erlendsson, que reinou de 1106 a 1115; e Harald Sigurdsson, dito o último Viking, que invadiu o reino em 1066. Harald é celebrado por ter combatido na defesa de Constantinopla, com a Guarda Varangiana de Vikings.

Detalhe do vitral com Jaime III, luxuriante.

Há janelas dedicadas aos Holandeses, com quem houve laços mais estreitos de comércio marítimo.
A Janela de Amsterdam: relembrando a Liga Hanseática.

O porto de Lerwick também é mencionado nesta janela.

Na rosácea, a heráldica escocesa.


The Shetland Museum


O Museu fica situado num antigo cais a norte da cidade, o Hays Quay.


A colecção e arquivo incluem arqueologia (megalitos, pedras gravadas, instrumentos), têxteis, pescarias e barcos. Mas recebe também exposições temporárias.

Pedras megalíticas.
 
The Monk Stone, Pedra dos Monges

Uma laje do século VIII, inícios da primeira era Cristã (Idade de Ouro de Lindisfarne), encontrada em Papil; será uma pedra de altar Picta* representando os primeiros missionários Celtas na Escócia.

Pedra funerária Picta.

Outra pedra de 700-800 DC com cruz esculpida e figuras de monges, misturando temas célticos e nórdicos.

 
Peça rara é este Luder – trombeta de chamamento usada pelos marinheiros quando se afastavam de terra. 
 


O 'Shetland Gue, outro instrumento tosco tradicional

O Gue é um género de lira ou cítara já desaparecido, de duas cordas, originário das Shetland. Ainda era usado em 1809. É tocado com arco, e soa mais rude que uma rabeca.

O tesouro Viking da ilha-tômbolo de St. Ninian está disponível em réplicas - o original foi para Edimburgo:
 
Cópias quase perfeitas.

No bloco mais alto do edifício, expõem-se barcos e elementos de navegação tradicional.

Far Haaf (‘far off’) era o modo de pesca que obrigava a dois ou mais dias no mar, até umas 40 milhas da costa onde estão os pesqueiros. Para isso eram necessários barcos grandes, os chamados sixareen - 6 homens a remar, uma técnica herdada dos nórdicos da Noruega.


Está exposto em Unst (outra ilha mais a Norte) o último sixareen original – o Far Haaf, que esperou quase 50 anos de restauro no estaleiro de Hays Quay, com as técnicas antigas.
 

Em frente ao Museu, no Hays Quay, esta era a casota de estaleiro onde se construíam esses barcos tradicionais.




Quanto a exposições, ainda há pouco publiquei uma notícia aqui.
Nada mau, para museu de uma terra tão remota e pouco habitada.

The Esplanade


Esplanade é a via que segue a frente marítima de Lerwick, ao longo dos cais e estruturas portuárias. Com bom tempo, é também lugar de lazer, um passeio ou um café.
 

Antigamente, os lodberries prolongavam-se ocupando esta frente, mas a construção do porto obrigou à sua demolição.


O inevitável 'Fish and Chips' junto ao cais.
 
 
Tal como o Fish and Chips, o Peerie Café ainda tem ar de lodberrie.

The Peerie, café e loja.

No Verão, a esplanada exterior ganha um ambiente mediterrânico.

No porto de pesca, logo adiante, não falta animação, é um dos mais importantes do Reino Unido.
 

O Albert Building, de 1900, é agora sede da Autoridade Portuária.
 
 
Outro antigo armazém, o Stewart Building, é agora 'Seafood Centre'.

Armazém Stewart, ainda na Esplanade.

Telhados e chaminés 'Haa'
 
 
São fotogénicas, as chaminés sobre telhados e empenas escalonadas (em degraus). Grande parte destas casas são do século XVIII no estilo denominado Haa - paredes espessas, planta rectangular, empena estreita e alta que pode ser em degraus, muitas vezes com janelas de águas furtadas salientes.

Casa ao estilo Haa.



 Pequena Grande cidade.

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* Os Pictos foram uma população de língua Celta que ocupou a Escócia até ao início da Idade Média. Não tinham escrita, deles chegaram até hoje pedras gravadas, muita joalharia e restos de casas lacustres sobre estacas.