quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Arquipélago Sjuøyane, o mais setentrional território da Europa


Esta Europa ninguém visita, ninguém refere, ninguém defende ou ficciona. Não tem cafés, nem museus, nem castelos, nem europeus sequer, nem nada. Só pedras e gelo. Mas, atenção, é terreno europeu ! Infelizmente, a maioria dos mapas da Europa não inclui sequer o arquipélago norueguês de Svalbard. Mesmo neste que se segue, as ilhas Sjuøyane, mais a Norte, estão tapadas pela longitude 20, no topo...



Estão a ver ? A 80º 32' N, lá muito distante quem ruma ao Pólo, não interessa nada, essa Europa. Os tempos mudam, contudo, e se continua a aquecer ainda lá surgirão relvados, flores e joaninhas.

O arquipélago Sjuøyane, no extremo Norte de Svalbard, é visitado rarissimamente, mas por ali passaram desde o século XVII algumas expedições ao Pólo Norte, sobretudo holandesas e britânicas. A primeira referência parece ter sido de um capitão baleeiro da bela cidade portuária holandesa de Enkhuizen, seguida da repesentação num mapa do cartógrafo holandês Hendrick Doncker em 1663. Nem J.S. Bach tinha nascido ainda !

Museu de Enkhuizen, navios em garrafas.

Neste minúsculo arquipélago, a ilha mais minúscula é a mais setentrional:  a ilha de Ross, ou Rossøya, em homenagem a James Clark Ross, o explorador britânico que comandava o navio Hecla na expedição de Parry ao Pólo Norte em 1827. Assim que passou por Rossøya, a expedição foi forçada a desistir, bloqueada no mar gelado, mas estabeleceu o recorde de latitude Norte navegada até então.

A 80° 49′ 44.41 N, atinge-se o ponto mais setentrional da Europa, se pusermos de parte a Franz Josef Land (terra de Francisco José), em boa verdade pouco europeia, e sim Rússia Asiática.

Aqui está, a 80° 49′ 44.41 N, o rochedo Rossøya onde a Europa acaba quando se navega para Norte. Simbólico, de certa forma belíssimo.

Mas vejamos o arquipélago Sjuøyane. São sete ou oito ilhas: três maiores

Phippsøya , Martensøya , Parryøya

e quatro pequenas mais um rochedo:

Nelsonøya , Waldenøya , Tavleøya , Vesle Tavleøya e Rossøya

Phippsøya (Phipps Island) é a maior ilha. O navegador inglês John Phipps comandou uma expedição de dois navios coma intenção de chegar à Índia pelo Ártico. Aportaram nas ilhas Sjuøyane em 1773, e pouco adiante tiveram de desistir frente ao gelo compacto.


Durante a viagem, Phipps foi o primeiro europeu a descrever o Urso Polar e a bonita Gaivota-Marfim (Ivory Gull).


O mais inesperado na ilha é a cabine Merkoll, a 80° 42′ 43″ N 

Merckoll-hytte


Foi construída por Hans Merckoll in 1936. É uma entre várias casotas de emergência em Svalbard para dar abrigo em caso de necessidade, por exemplo a náufragos. Pertencem ao Estado, e esta Merckoll-hytte de Phippsøya é protegida como a construção humana mais a Norte na Europa.


Martensøya (Martens Island) 


Esta é a ilha mais oriental de Sjuøyane. O nome relembra o médico e naturalista alemão Friderich Martens, que por aqui andou em 1671 à boleia num barco baleeiro e fez a primeira observação e registo de fauna e flora. A ilha tem uma praia em crescente de areia fina, a 80° 32 N. 

Em todas as ilhas há acumulação de madeira que vem à deriva da Sibéria e do Canadá.

Parryøya (Parry island)

É a ilha mais a Sul, baptizada com o nome de Sir William Edward Parry,  que navegou até Spitsbergen em 1827. 
 

Nelsonøya ( Nelson Island) é uma pequena ilha sem interesse; Horatio Nelson tinha servido na expedição de Phipps em 1773.

Waldenøya ( Walden Island) é um rochedo árido, pedregoso, que recebe como as outras ilhas grande quantidade de madeira à deriva.


John Walden era também um marinheiro da expedição de Phipps em 1773. 

Rossøya e Vesle Tavleøya


Rossøya, a ilha de Ross, que já referi no início, tem o seu extremo Norte a 80° 49′ 44.41″ N, e fica 'só' a 1024.3 km do Pólo Norte. Nenhum outro local da Europa fica tão perto.


De acessibilidade difícil, é a ilha mais afectada pela Corrente do Golfo, o que explica porque há alguma verdura no solo - a Cochleraria groenlandica cresce fertilizada pelos muitos pássaros, como a torda anã (alle alle), o airo de Brünnich e o colorido puffin (papagaio-do-mar). 


O Finisterra do Norte !

Airo de Brünnich

Torda-anã

Puffins

Cochelaria groenlandica

Grande viagem. Nec plus ultra.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Dar livros este Natal, sim, mas sem AO


Sugestões de livros para prenda, devidamente traduzidos em bom português.

1. Histórias Bizarras, de Olga Tokarczuk

Da Prémio Nobel polaca, depois do famoso 'Viagens' (Bieguni ), foi agora -bem - traduzido um grande volume de contos onde há sempre algo estranho, contos póximos do realismo fantástico. 

2. O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury


De 1951, são 18 contos de ficção científica. Neles se encontram muitos dos temas actuais - racismo, viagens a Marte, fim do mundo, queima de livros ... Num dos contos, os autores falecidos de livros queimados têm uma segunda 'vida' espiritual em Marte. Só se todos os seus livros forem queimados é que um autor desaparece para sempre.

3. Lições, de Ian MacEwan 


Completamente amoral história de vida, percorrendo os mais importantes acontecimentos desde a crise dos mísseis em Cuba, Thatcher, a queda do Muro,  a SIDA, o 11 de Setembro e o Iraque, o Brexit ... o retrato que faz é um pouco o de nós todos nesta época insana.

4. Herbarium, de Emily Dickinson


Edição bilingue, com os poemas acompanhados de bonitas ilustrações do herbário de Dickinson.

5, A Matemática e a sua História, de John Stillwell


Uma explicação acessível, tanto quanto pode ser, dos vários ramos da Matemática e da sua evolução: Geometria e Números na Grécia,  o Infinito, Equações, Geometria Analítica, Cálculo, Séries, Teoria dos Números, a Mecânica, Números Complexos, Geometrias não Euclidianas, Teoria dos Grupos, Topologia, Lógica, Combinatória. Em vez de ficção científica, o romance da verdadeira ciência.

E, prenda mais requintada, sem tradução - é um livro visual:

6. Enfances, de Sempé


Um belo Álbum do genial desenhador francês, onde a nostagia de outros tempos é também um encantamento.






domingo, 18 de dezembro de 2022

Natal e Museus em Chișinău, capital da Moldávia


Não sabia que post oferecer 'de prenda' neste Natal, acabei por optar por um país esquecido da Europa que tem vindo cada vez mais a merecê-la.

Dedico este post aos bravos e generosos moldavos que acolheram com tudo o que tinham os refugiados ucranianos, e vivem na aflição de vir a ter igual sorte. Estava longe de pensar que a ignorada Moldávia viria a ter tanto protagonismo, mas a verdade é que se tem esforçado por ser dignamente europeia. Vamos lá viajar.


Chișinău é a capital da República da Moldávia, na Europa; fica "antes" da Ucrânia (vista de cá) mas para lá dos Cárpatos. Há nestes nomes ressonâncias de aventuras de Tintin - o Cetro de Ottokar e o Affaire Tournesol passavam-se na Sildávia, país em conflito com a Bordúria, uma ditadura militar...

Lembro-me de ouvir falar da Bessarábia ironicamente, um país longínquo onde sucedem coisas estranhas, tal como se fala da Cochinchina; ora a Bessarábia é afinal a Moldávia ! (mais ou menos)

Um território retalhado - parte para a Roménia, parte para a Rússia, e outra para a Ucrânia; o mesmo sucede etnicamente.

Na História da antiguidade clássica, a Mésia foi local da última fronteira a leste do Império Romano, onde Trajano mandou construir também uma muralha (Limes Moesiae)  para definir os limites do Império ao longo do Danúbio.

"Ondas de Trajano" - o que resta da muralha de Trajano, do séc. II-III, para defender a Moldávia dos ataques dos Hunos

Neste território sucederam-se conflitos, mudanças de poder e de fronteiras, conforme prevaleciam russos ou principados romenos; a invasão turca veio trazer uma longa guerra, terminada com a aceitação do domínio czarista.

A Bessarábia surgiu então como o nome com que o Império Russo identificava a parte oriental do principado da Moldávia, cedido pelo Império Otomano à Rússia, após a Guerra Russo-Turca (1806-1812). Sob o domínio russo, instituiu-se aí o Governo Geral da Bessarábia.


A actual Moldova é um território fértil delimitado pelo rio Dniester a nordeste, os Cárpatos a poente, a foz do Danúbio e o Mar Negro a sul. Actualmente a Ucrânia corta o acesso directo ao Mar Negro - os moldavos só têm acesso ao mar pelo rio Danúbio, no porto de Giurgiulesti - , mas a Bessarábia foi sempre rota de comércio entre leste e oeste e uma zona estratégica. O cruzamento de povos e sucessivas vagas de migração deram como resultado uma população muito variada - romenos, ucranianos, alemães, polacos, cossacos, gregos, arménios, turcos e judeus. Este cosmopolitismo foi interrompido em 1940 com a anexação pela URSS seguida por sucessivas deportações.

O Dniester na fronteira oriental da Moldávia. Do fértil território moldavo, 80% é agrícola - cereais, girassóis, vinhas, pomares e mel, muito mel.

País europeu "pobre" como é habitualmente adjectivado, a Moldávia corre perigo de vida. Com o enclave da Transnístria altamente militarizado, poderá acontecer ali outro crime como o da Ucrânia. Quero portanto mostrar a capital Moldava enquanto cidade europeia, antes que seja tarde.

Chişinău, capital da Moldávia
População: ~ 600 000
Coordenadas: 47°00′ N, 28° 55′ E
Língua: Romeno

É uma cidade modesta que oferece um modo de vida que seria sossegado não fosse o excesso de trânsito rodoviário, e que concentra serviços e quase tudo o que há de vida cultural no país; tem vindo a melhorar o arranjo das ruas e o mobiliário urbano.


O conjunto arquitectónico do Parque da Catedral, de 1836, é o ex-libris de Chișinău, obra do arquitecto Avraam Melnikov. Teve de ser restaurado depois dos habituais 'tratos de polé' a que foi sujeito pelo regime soviético.

A Catedral e a Torre sineira (restaurada em 1997), neoclássicas

A catedral ortodoxa da Natividade, de 1830

Um interior intensamente colorido


O Arco do Triunfo de 1840, comemora a vitória na batalha que expulsou os Turcos. A torre sineira é uma réplica da que foi destruída pelo regime de Khrushchov em 1962.

Parque Stefan cel Mare, mesmo no centro da capital.

A Fonte no parque.


O herói nacional é Estevão o Grande, ou Estevão III, príncipe da Moldávia entre 1457 e 1504, que obteve 46 vitórias contra os Otomanos garantindo assim a independência do principado. Tem estátuas pela cidade e deu logicamente o nome à avenida central - bulevardul Stefan cel Mare - a rua mais importante da cidade, do país!


Nesta avenida encontram-se alguns dos edifícios históricos, como a Câmara de 1901, influenciada pelo revivalismo do gótico italiano:





Mesmo em frente, o prédio dos correios, de 1942, na esquina mais nobre de Chisinau.



A esquina dos correios em hora de ponta

Ao lado da câmara fica uma sala de concertos, a "Sala com Órgão", guardada por dois leões.


'Dixit Dominus' de Vivaldi, há poucos dias, dir. Cristian Florea.

Um vídeo (desculpem o som fraquinho):

Voltando à rua, não é raro encontrar influência estrangeira na arquitectura, como este palacete de barroco vienense, com elementos Arte Nova e mouriscos:

Casa de Vladimir Hertza, na av. Stefan cel Mare

Junto ao jardim da Catedral foi há pouco criada a primeira rua pedonal, a Strada Eugen Doga, onde se concentra alguma animação nas esplanadas e em torno do Bonjour Café.





Um Café-quiosque, o Bonjour Café é onde eu iria certamente mal chegasse à cidade.


 
Deve ser o sítio mais cosmopolita de Chisinau. Não é raro haver enchentes, de dia e de noite, sobretudo com músicos a animar.


As outras ruas centrais são pobres e feias, o melhor de Chisinau talvez sejam os Museus:


O Museu de História e Arqueologia é o mais importante do país, com muito material desde a pré-História (cultura Cucuteni-Tripolie) e dos Dacio-Getas, povo germânico do neolítico parente dos Godos que habitava a zona (Dácia, Trácia) na época dos romanos, e que atingiu um grau respeitável de civilização.

Vaso da cultura Cucuteni-Tripolie (5500-2750 AC)


A cultura Cucuteni-Tripolie desenvolveu-se desde o Neolítico entre os Cárpatos e as bacias do Dniepre e Dniestre, centrada no que hoje é a Moldávia e ocidente da Ucrânia.
 

A cerâmica desta cultura caracteriza-se pela decoração â base de espirais, labirintos, linhas onduladas e linhas duplas formando uma rede.



Selos moldavos 

Ainda antes dos romanos, tinha havido colónias gregas na costa do Mar Negro, como Olbia, Tyras, Argamon. Não admira que tenha sido encontrado na Moldávia espólio dessa presença, como este vaso do séc. V-IV A.C.


Encontrada na aldeia de Manta, no extremo sul da Moldávia, já perto da foz do Danúbio. Representa a princesa Ariadna de Creta, rodeada de dois sátiros e protegida por Eros.



O colar Cita (Scita) de Tovsta Mohyla, finamente esculpido em ouro, faz parte do tesouro nacional da Ucrânia. Encontrado em 1971, pertence à colecção do Museu de Kiev; mas uma cópia fiel foi recentemente oferecida à Moldávia e está neste Museu.

Colar Cita, 350-340 A.C. (cópia)

Ouro da Bessarábia: Brincos Citas do séc IV A.C., encontrados em Orhei, região de Dubăsari.

Também não falta um Fabergé.


Um tinteiro de prata do século XIX , no estilo neo-bizantino russo, formado por formas esféricas montadas em pirâmide e decorado com pérolas.


Uma das peças mais vistosas é o bule de chá em prata executado em Paris pela Maison Cristophle, oficina de Charles Cristophle, de 1830.

Este modelo em alpaca de prata especialmente refinado foi lançado em 1868 para ser fornecido à famílias reais. O bule assenta sobre uma lamparina que mantém o chá quente.

O Museu tem três salas lindíssimas:
(clicar para aumentar)

Sala vermelha


Sala azul (alabastro)

Museu de Belas Artes
A visita vale pela casa, um belo edifício de 1901 que foi de início Ginásio Feminino.




A escadaria de entrada e acesso aos 2 andares é um primor.



O Museu tem uma boa colecção de ícones ortodoxos, estampas japonesas, e até desenhos de Dürer e Rembrandt.


Rapariga Napolitana com fruta,1831 - Orest Kiprenskii (pintor russo)

Ferdinand Barbedienne,Vénus ajoelhada, séc XIX


Surpreende a colecção de gravuras japonesas.

Utagawa Hiroshige, 'A Fonte da Casa de Chá', da série de '53 Estações na Estrada de Tokaido'.

Teatro de Ópera e Bailado da Moldávia, arquitectura moderna da época soviética, ao que parece com uma fenomenal acústica:


Vale a pena navegar no site, com uma bela galeria de vídeos:

Fora de Chisinau não há muito que ver, sendo obrigatório evitar a deplorável Transnístria. Há mosteiros, um lago, mas o sítio mais valioso é a fortaleza de Tighina, do século XV, que foi ocupada e reconstruída pelos Turcos em 1538, às ordens de Suleiman I; desgraçadamente encontra-se sob controle russo.

Maria Cebotari e Valentina Nafornita

A mais célebre personagem moldava fora do país, Maria Cebotari (1910 – 1949) foi uma soprano reputada que correu as melhores salas de Ópera da Europa. Nasceu em Chişinău.

Valentina Nafornita, timbre e firmeza excepcionais em Glück das mir Verlieb (Die tote Stadt), de Korngold.

Natal em Chisinau


A àrvore costuma ser instalada em frente ao Arco do Triunfo.


Muito frio é normal, ninguém deixa de ir à feira como noutras cidades do centro da Europa.



Boas festas, e vamos daí , Moldávia, para a União Europeia ! Livra-te de vizinhos perigosos.

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Nota : não é difícil para nós comunicar com os moldavos, há muitas semelhanças pois falam uma língua românica. Por exemplo, "o museu e a opera são monumentos da capital" diz-se "muzeul și opera sunt monumente ale capitalei"; "em que direcção é o centro?" = "în ce direcție este centrul ?". Nos dois extremos da Europa, vimos do mesmo berço greco-latino.