domingo, 18 de dezembro de 2022

Natal e Museus em Chișinău, capital da Moldávia


Não sabia que post oferecer 'de prenda' neste Natal, acabei por optar por um país esquecido da Europa que tem vindo cada vez mais a merecê-la.

Dedico este post aos bravos e generosos moldavos que acolheram com tudo o que tinham os refugiados ucranianos, e vivem na aflição de vir a ter igual sorte. Estava longe de pensar que a ignorada Moldávia viria a ter tanto protagonismo, mas a verdade é que se tem esforçado por ser dignamente europeia. Vamos lá viajar.


Chișinău é a capital da República da Moldávia, na Europa; fica "antes" da Ucrânia (vista de cá) mas para lá dos Cárpatos. Há nestes nomes ressonâncias de aventuras de Tintin - o Cetro de Ottokar e o Affaire Tournesol passavam-se na Sildávia, país em conflito com a Bordúria, uma ditadura militar...

Lembro-me de ouvir falar da Bessarábia ironicamente, um país longínquo onde sucedem coisas estranhas, tal como se fala da Cochinchina; ora a Bessarábia é afinal a Moldávia ! (mais ou menos)

Um território retalhado - parte para a Roménia, parte para a Rússia, e outra para a Ucrânia; o mesmo sucede etnicamente.

Na História da antiguidade clássica, a Mésia foi local da última fronteira a leste do Império Romano, onde Trajano mandou construir também uma muralha (Limes Moesiae)  para definir os limites do Império ao longo do Danúbio.

"Ondas de Trajano" - o que resta da muralha de Trajano, do séc. II-III, para defender a Moldávia dos ataques dos Hunos

Neste território sucederam-se conflitos, mudanças de poder e de fronteiras, conforme prevaleciam russos ou principados romenos; a invasão turca veio trazer uma longa guerra, terminada com a aceitação do domínio czarista.

A Bessarábia surgiu então como o nome com que o Império Russo identificava a parte oriental do principado da Moldávia, cedido pelo Império Otomano à Rússia, após a Guerra Russo-Turca (1806-1812). Sob o domínio russo, instituiu-se aí o Governo Geral da Bessarábia.


A actual Moldova é um território fértil delimitado pelo rio Dniester a nordeste, os Cárpatos a poente, a foz do Danúbio e o Mar Negro a sul. Actualmente a Ucrânia corta o acesso directo ao Mar Negro - os moldavos só têm acesso ao mar pelo rio Danúbio, no porto de Giurgiulesti - , mas a Bessarábia foi sempre rota de comércio entre leste e oeste e uma zona estratégica. O cruzamento de povos e sucessivas vagas de migração deram como resultado uma população muito variada - romenos, ucranianos, alemães, polacos, cossacos, gregos, arménios, turcos e judeus. Este cosmopolitismo foi interrompido em 1940 com a anexação pela URSS seguida por sucessivas deportações.

O Dniester na fronteira oriental da Moldávia. Do fértil território moldavo, 80% é agrícola - cereais, girassóis, vinhas, pomares e mel, muito mel.

País europeu "pobre" como é habitualmente adjectivado, a Moldávia corre perigo de vida. Com o enclave da Transnístria altamente militarizado, poderá acontecer ali outro crime como o da Ucrânia. Quero portanto mostrar a capital Moldava enquanto cidade europeia, antes que seja tarde.

Chişinău, capital da Moldávia
População: ~ 600 000
Coordenadas: 47°00′ N, 28° 55′ E
Língua: Romeno

É uma cidade modesta que oferece um modo de vida que seria sossegado não fosse o excesso de trânsito rodoviário, e que concentra serviços e quase tudo o que há de vida cultural no país; tem vindo a melhorar o arranjo das ruas e o mobiliário urbano.


O conjunto arquitectónico do Parque da Catedral, de 1836, é o ex-libris de Chișinău, obra do arquitecto Avraam Melnikov. Teve de ser restaurado depois dos habituais 'tratos de polé' a que foi sujeito pelo regime soviético.

A Catedral e a Torre sineira (restaurada em 1997), neoclássicas

A catedral ortodoxa da Natividade, de 1830

Um interior intensamente colorido


O Arco do Triunfo de 1840, comemora a vitória na batalha que expulsou os Turcos. A torre sineira é uma réplica da que foi destruída pelo regime de Khrushchov em 1962.

Parque Stefan cel Mare, mesmo no centro da capital.

A Fonte no parque.


O herói nacional é Estevão o Grande, ou Estevão III, príncipe da Moldávia entre 1457 e 1504, que obteve 46 vitórias contra os Otomanos garantindo assim a independência do principado. Tem estátuas pela cidade e deu logicamente o nome à avenida central - bulevardul Stefan cel Mare - a rua mais importante da cidade, do país!


Nesta avenida encontram-se alguns dos edifícios históricos, como a Câmara de 1901, influenciada pelo revivalismo do gótico italiano:





Mesmo em frente, o prédio dos correios, de 1942, na esquina mais nobre de Chisinau.



A esquina dos correios em hora de ponta

Ao lado da câmara fica uma sala de concertos, a "Sala com Órgão", guardada por dois leões.


'Dixit Dominus' de Vivaldi, há poucos dias, dir. Cristian Florea.

Um vídeo (desculpem o som fraquinho):

Voltando à rua, não é raro encontrar influência estrangeira na arquitectura, como este palacete de barroco vienense, com elementos Arte Nova e mouriscos:

Casa de Vladimir Hertza, na av. Stefan cel Mare

Junto ao jardim da Catedral foi há pouco criada a primeira rua pedonal, a Strada Eugen Doga, onde se concentra alguma animação nas esplanadas e em torno do Bonjour Café.





Um Café-quiosque, o Bonjour Café é onde eu iria certamente mal chegasse à cidade.


 
Deve ser o sítio mais cosmopolita de Chisinau. Não é raro haver enchentes, de dia e de noite, sobretudo com músicos a animar.


As outras ruas centrais são pobres e feias, o melhor de Chisinau talvez sejam os Museus:


O Museu de História e Arqueologia é o mais importante do país, com muito material desde a pré-História (cultura Cucuteni-Tripolie) e dos Dacio-Getas, povo germânico do neolítico parente dos Godos que habitava a zona (Dácia, Trácia) na época dos romanos, e que atingiu um grau respeitável de civilização.

Vaso da cultura Cucuteni-Tripolie (5500-2750 AC)


A cultura Cucuteni-Tripolie desenvolveu-se desde o Neolítico entre os Cárpatos e as bacias do Dniepre e Dniestre, centrada no que hoje é a Moldávia e ocidente da Ucrânia.
 

A cerâmica desta cultura caracteriza-se pela decoração â base de espirais, labirintos, linhas onduladas e linhas duplas formando uma rede.



Selos moldavos 

Ainda antes dos romanos, tinha havido colónias gregas na costa do Mar Negro, como Olbia, Tyras, Argamon. Não admira que tenha sido encontrado na Moldávia espólio dessa presença, como este vaso do séc. V-IV A.C.


Encontrada na aldeia de Manta, no extremo sul da Moldávia, já perto da foz do Danúbio. Representa a princesa Ariadna de Creta, rodeada de dois sátiros e protegida por Eros.



O colar Cita (Scita) de Tovsta Mohyla, finamente esculpido em ouro, faz parte do tesouro nacional da Ucrânia. Encontrado em 1971, pertence à colecção do Museu de Kiev; mas uma cópia fiel foi recentemente oferecida à Moldávia e está neste Museu.

Colar Cita, 350-340 A.C. (cópia)

Ouro da Bessarábia: Brincos Citas do séc IV A.C., encontrados em Orhei, região de Dubăsari.

Também não falta um Fabergé.


Um tinteiro de prata do século XIX , no estilo neo-bizantino russo, formado por formas esféricas montadas em pirâmide e decorado com pérolas.


Uma das peças mais vistosas é o bule de chá em prata executado em Paris pela Maison Cristophle, oficina de Charles Cristophle, de 1830.

Este modelo em alpaca de prata especialmente refinado foi lançado em 1868 para ser fornecido à famílias reais. O bule assenta sobre uma lamparina que mantém o chá quente.

O Museu tem três salas lindíssimas:
(clicar para aumentar)

Sala vermelha


Sala azul (alabastro)

Museu de Belas Artes
A visita vale pela casa, um belo edifício de 1901 que foi de início Ginásio Feminino.




A escadaria de entrada e acesso aos 2 andares é um primor.



O Museu tem uma boa colecção de ícones ortodoxos, estampas japonesas, e até desenhos de Dürer e Rembrandt.


Rapariga Napolitana com fruta,1831 - Orest Kiprenskii (pintor russo)

Ferdinand Barbedienne,Vénus ajoelhada, séc XIX


Surpreende a colecção de gravuras japonesas.

Utagawa Hiroshige, 'A Fonte da Casa de Chá', da série de '53 Estações na Estrada de Tokaido'.

Teatro de Ópera e Bailado da Moldávia, arquitectura moderna da época soviética, ao que parece com uma fenomenal acústica:


Vale a pena navegar no site, com uma bela galeria de vídeos:

Fora de Chisinau não há muito que ver, sendo obrigatório evitar a deplorável Transnístria. Há mosteiros, um lago, mas o sítio mais valioso é a fortaleza de Tighina, do século XV, que foi ocupada e reconstruída pelos Turcos em 1538, às ordens de Suleiman I; desgraçadamente encontra-se sob controle russo.

Maria Cebotari e Valentina Nafornita

A mais célebre personagem moldava fora do país, Maria Cebotari (1910 – 1949) foi uma soprano reputada que correu as melhores salas de Ópera da Europa. Nasceu em Chişinău.

Valentina Nafornita, timbre e firmeza excepcionais em Glück das mir Verlieb (Die tote Stadt), de Korngold.

Natal em Chisinau


A àrvore costuma ser instalada em frente ao Arco do Triunfo.


Muito frio é normal, ninguém deixa de ir à feira como noutras cidades do centro da Europa.



Boas festas, e vamos daí , Moldávia, para a União Europeia ! Livra-te de vizinhos perigosos.

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Nota : não é difícil para nós comunicar com os moldavos, há muitas semelhanças pois falam uma língua românica. Por exemplo, "o museu e a opera são monumentos da capital" diz-se "muzeul și opera sunt monumente ale capitalei"; "em que direcção é o centro?" = "în ce direcție este centrul ?". Nos dois extremos da Europa, vimos do mesmo berço greco-latino.


3 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado Mário pela prenda natalícia, como sempre, muito interessante.
Mas esclareça-me, em português é Moldávia ou Moldova (ou ambas as designações estão correctas)? Pergunto porque sempre ouvi e li Moldávia até ao presente ano em que, na sequência da guerra, fala-se ocasionalmente no país e comecei a ouvir Moldova. Inicialmente pensei que seria o "aportuguesar" da designação inglesa, tão frequente nos últimos tempos, mas comecei a ouvir pessoas que sabem falar bem português a dizer Moldova. Isso fez-me hesitar e, como o Mário usou as duas designações neste seu texto, fiquei com a certeza que preciso desta actualização. Pode ajudar? Antecipadamente grato e votos de um Feliz Natal.

Mário R. Gonçalves disse...

Meu caro Fanático_Um, tem toda a razão, como usei textos em inglês e/ou moldavo esqueci-me uma ou outra vez de traduzir o nome para Moldávia, que é como se designa em Português. Já corrigi. Só deixei ficar 'Moldova' num caso específico justificado. Quem diz 'Moldova' nos media está a usar com descuido um texto inglês.

Boas Festas e continuação de muita Ópera, de preferência da melhor !



Fanático_Um disse...

Muito obrigado pelo esclarecimento. Renovo os meus melhores votos de Boas Festas!