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sábado, 7 de junho de 2025

Palavras herdadas da presença Sueva na Gallaecia , e o pouco mais que há

É sabido que a presença de uma população antiga num território deixa marcas mais duradouras na língua falada que nas pedras, documentos escritos e joalharia. 

Quase nada temos dos Suevos , e pouco dos VIsigodos, povos germânicos vindos de entre o Elba e o Oder, e a sul até ao Danúbio - que cá chegaram depois dos Romanos, nos séculos V e VI, atravessando os Pirinéus que estavam já desguarnecidos de legiões. Uma hipótese é que viessem a fugir da ameaça dos Hunos.

Taça sueva, Museu da Baviera

A mais conhecida 'moda' sueva era apanhar o cabelo entrançado em novelo ('nó suevo'). Os guerreiros eram receados entre os  romanos pelo uso da lança, que manejavam com perícia.

Foi Hermerico, rei dos Suevos, quem liderou em 406 a sua migração desde a margem direita do Reno até chegarem à Península Ibérica, três anos depois, estabelecendo-se na faixa atlântica ocidental - o que fora a Gallaecia romana, um pouco expandida mais a sul. Não seriam mais de 30 000; abandonaram o nomadismo e fixaram-se na agricultura, em grandes quintas nos terrenos planos e nos antigos Castros, aproveitando o que estava já construído. Foram mais de trinta anos de 'paz', e o reino foi-se ampliando até Conímbriga.

Réquila foi o rei dos Suevos na Iberia, entre 438 e 448; ambicioso, avançou para Sul conquistando Mérida em 439 e Sevilha em 441, assim tomando posse de grande parte da produção do precioso azeite. Os Romanos enfurecidos enviaram o temível magister militum Vitus, que juntou às suas as tropas visigóticas; Réquila avançou e dizimou os dois exércitos aliados, pondo Vitus em fuga. Não percebo como, se os Suevos eram poucos milhares e dispersos.

O Rei Réquila morreu em 448; foi o último rei Suevo pagão, com 10 anos de vitórias e quase um 'império'.

Rei Requiário (448-455)

Requiário sucedeu-lhe, já convertido ao cristianismo. Foi tambám o primeiro monarca desde os Romanos a cunhar moeda em nome próprio, em Braga: a síliqua de prata onde se lia "por ordem do Rei Requiário".

"IUSSU RICHIARI REGES", por ordem do Rei Requiário cunhada em Braga, capital do reino Suevo. [Museu de Braga]

Para garantir a convivência pacífica na península, Requiário casou-se com a filha do rei Visigodo Teodorico II em 449, e alargou o reino sem resistência mais para sul até ao mar, dominando todo o lado ocidental da península. 

Expansão máxima do Reino Suevo cerca de 456, conquistada Mérida e Sevilha; até Lisboa seria Sueva em 469 ! A Hispânia do mapa era Visigótica cristã.

Tanto domínio territorial desafiou a rivalidade e a ambição visigótica: Teodorico pediu de novo apoio militar aos Romanos e fez uma prolongada guerra aos Suevos, que de início venceram, até conseguir impôr-lhes uma pesada derrota, e perseguindo Requiário até à sua morte no Porto, em 455. Só lhe presta agora homenagem uma estátua em ... Madrid.

Soldado suevo captivo , mostrando o típico enrolamento espiral do cabelo (nó suevo) que distinguia os homens livres. [Biblioteca National de França]

Até finais do século VI os Suevos foram sendo dominados e assimilados pelos poderosos Visigodos, que tinham estabelecido capital em Toledo e um vasto reino que abrangia Espanha e França; foi um longo período de escaramuças com avanços e recuos; sob comando do rei Leovogildo, os Visigodos conseguiram tomar os bastiões suevos restantes - Astorga e finalmente Braga, em 585. O então rei Miro, o último monarca prestigiado dos Suevos, aceitou um tratado de paz que que marca o fim do reino Suevo, e os povos mixigenaram-se de vez - estavam já convertidos ao catolicismo desde 560.

Onde existem mais marcas suevo-visigóticas é na nossa língua: uma abundância de termos quase incrível, sobretudo a Norte do Mondego. E sabendo que os Suevos eram menos de 30 000 - nem sequer nos invadiram, foi simplesmente uma onda de imigrantes ! - a herança linguística é admirável.

Palavras de origem sueva/gótica

agasalho (gasalja)albergue (haribaírgo), aleive (lewjan), arreio (ad ræd), banda*, brétema (suevo brāþm)broabrotar (brozzen, brut) , bruma (breþmaz), escárnio (skernjan), escuma (skuma), faisca (falwiskan, depois romanizada) , feltroganso, guardar (wardon), guerra (werra), íngreme (?), luva (lōfô, que deu glove), marco (mark) , mofo, rapar (hrapon), roubar, roupa (raupjanrauben), trégua (triggwa) ! ...

Nomes próprios também não faltam:

Afonso Adalfuns , Álvaro alwais, Adosinda  hadu sind, Ermelinda ermens lindFernando fardi nand, Gonçalo guntherOrlando Roland,  Reinaldo ragin wald, Rodrigo RudericusRonaldo Rögn Waldr ...

Toponímia:

Aldoar (Alde War) , Baltar, Bertiandos (de bairths, nobre), Ermesinde (Airmans Sinths), Esmolfo **, Esmoriz, Esposende, Fânzeres, Fão, Fiães (de ulfi, lobo), Freamunde, Gondomar (=cavaleiro), Gualtar, Gueifáes, Lordelo, Mondim, Nevolgilde (Leuba Gilds), Resende, ti), (saal), Vermoim...

E em geral nomes terminados em -engo e -ães. Estiveram cá por menos de 200 anos e impuseram tantos vocábulos, fóra muitos outros cuja etimologia ainda se discute. Não admira que algumas dessa palavras não existam noutros países de línguas românicas.

Quanto a património material, temos de facto muito pouco: destaca-se o suevo Mosteiro de S. Pedro de Rocas, em Ourense, a mais antiga construção monástica da Galiza; as primeiras três capelas foram escavadas directamente na rocha granítica no alto do monte Barbeirón, certamente no século VI, constituindo na origem um mosteiro rupestre eremita, provavelmente dedicado a S. Martinho de Dume.

S. Pedro de Rocas, na encosta do monte Barbeirón, Ourense

A situação numa parede rochosa de difícil acesso indica a procura de ascese monástica. A igreja primitiva está inserida nas rochas, por trás dos edifícios mais modernos.

Entrada da capela principal 


San Pedro de Rocas surgiu antes de 573, em período Suevo; a sua estrutura original, é um exemplo raro de uma igreja rupestre escavada. 


O Altar românico de S. Pedro de Rocas


Esta preciosa Ara pré-românica deve ser contemporânea da lápide. Museu Provincial de Ourense.


Abandonada durante a ocupação muçulmana, a igreja voltou a ser usada no século XII, com restauros Românicos e aplicação de pinturas murais. 

Mas sem dúvida o templo mais bem conservado e surpreendente do período suevo é Santa Comba de Bande, do século VI-VII, tempo misto suevo-visigótico; fica em Bande, no Xurês do lado espanhol, perto de Pitões das Júnias.


O templo destinava-se a igreja monástica de um mosteiro feminino; tem planta de cruz grega. O tratamento que se fai do espaço interior é semelhante aos panteões paleocristãos como o de Gala Placidia



Semelhanças inesperadas com Galia Placidia !  Byzantium chegou à Galiza !


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Quanto ao espólio suevo obtido em escavações, está disperso entre Museus, em paticular os de Conímbriga, Braga (Diocese e D. Diogo), Ourense, Lugo, Vigo, e Baviera, mas também no Núcleo Arqueológico de Dume e até na Casa do Infante do Porto. Para uma população que nunca terá ultrapassado os 100 000 (nos séculos VI e VII), até admira terem deixado marca na História.  

Colar de diademas encontrado em Beiral de Lima

Sarcófago, S Martinho de Dume / Museu D Diogo de Sousa, uma das mais belas obra suevas que se conhecem, jóia do Núcleo de Dume.

Jarro litúrgico do período suevo, séc. VII, Museu de Oviedo.

Fíbulas suevas, Museu de Conímbriga.

Cunho litúrgico, Museu de Conímbriga, séc VI (período suevo) com a inscrição "Vivas in Aeternum"

Guarnição de freio em liga de cobre, séc. V, Museu de Conímbriga

Desta época não há documentos escritos, todas as referências em livro são posteriores. Um é a Crónica Albeldense de 976, que está no Escorial; contém uma narrativa dos reinados visigóticos, em latim evidentemente.


Há nele uma referência a S. Martinho de Dume (510 -579), o apóstolo dos Suevos; vindo de uma região germânica a norte da Dalmácia, passou por Itália e França, até chegar à Ibéria onde se dedicou à conversão dos arianistas ao cristianismo. Amigo do Rei Miro, tornou-se Bispo de Braga em 569.

Outro é o registo paroquial suevo, Parochiale Suevorum ou Suevicum escrito durante o reinado de Miro, talvez redigido no concílio de Lugo em 569. É um registo de todas as dioceses e paróquias do Reino, está no Arquivo Distrital de Braga.


Simpatizo com os Suevos. Primeiro, eram um povo de temperamento pacífico e convivial, respeitaram - dentro dos limites de uma época de selvajaria - usos, língua e crenças dos anfitriões, defenderam-se com bravura quando atacados; souberam quando chegou a hora de abandonar a sua identidade colectiva, apagaram-se por anseio de paz e respeito por quem os tinha recebido. É todo o contrário do nacionalismo, todo o contrário do espírito tribal. Espero que tenham sido felizes aqui. 

A seguir veio a invasão africana, a Gallaecia foi ocupada por tribos berberes muito mais belicosas, mas a semente do que viria a ser Portugal tinha sido lançada pelos Suevos. Demorou a germinar mais de quatro séculos, e se calhar mais valia ter estiolado. Não deu grande planta.

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  * no sentido de sítio, de que banda é ?

** deu origem a 'esmolfe'

Fontes

Museu D Diogo, Braga
Museu da Diocese de Braga 
Colecção Arqueológica do Estado da Baviera (Alemanha) 
Museu Arqueológico Provincial de Ourense (Galiza, Espanha)
Museu Municipal de Vigo (Espanha)
Núcleo Arqueológico de Dume, Braga
Núcleo Arqueológico de Conímbriga


domingo, 11 de maio de 2025

Na Finlândia, perto da ameaça russa: Joensuu


Uma ponte pedonal liga a parte mais antiga de Joensuu à cidade nova.

Estamos no leste da Finlândia, a 50 km da fronteira com a Rússia. Joensuu é uma importante cidade portuária de 80 000 habitantes, quase imaculadamente moderna, mas é a localização e as evidências de alguma História que me interessam. 


Situada a  62° 36′ N, 29° 45′ E Joensuu nem sequer é sub-ártica, está à latitude de Ålesund; é uma cidade da região da Karelia, no extremo leste da Finlândia, nas duas margens do estuário do Rio Pielisjoki (Joensuu = "estuário") quando ele se lança no grande Lago Saimaa, cujo sistema de rios permite a navegação até ao famoso Lago Ladoga na Karélia 'Russa' , e daí até S. Petersburgo.

Cais fluvial histórico de Joensuu, na margem esquerda..

Foi cidade em 1848 durante o reinado do Czar Nicolau I, mas já ali existia um povoado desde 1400. Até ao final do século XIX, Joensuu tornou-se era uma das maiores cidades portuárias da Finlândia, com tráfego fluvial para S. Petersburgo e rotas marítimas para as cidades da Europa central. A construção de um canal navegável, em 1870, passou a trazer milhares de barcos a vapor, barcas e navios madeireiros, e o porto fervilhava de actividade.

Canal navegável com comportas no Rio Pielisjoki

O núcleo inicial da cidade é na margem oeste, percorrida pela rua marginal agora denominada Rankatu; situa-se aí o bairro histórico Taitokortteli, um pequeno quarteirão de casas de madeira do final do século XIX num quadriculado de ruas. O nome significa "bairro do artesão", pois tem várias galerias e lojas de artesanato local.


O bairro começa junto ao rio, frente a um jardim na marginal, o Rantapuisto:

Aqui ficava o antigo porto fluvial, e agora o porto turístico.

O cais fluvial de passageiros era o centro de animação da margem esquerda. Quando chegava ou partia um navio, os passageiros e a carga traziam uma vida intensa ao Taitokortteli.


O Teatro e Casa de Cultura Pakkahuone



Ao lado, a Casa de Olson de 1853, talvez a mais antiga da cidade, também frente ao rio Pielisjoki


Construída para o farmacêutico Olson na rua Malmikatu 1. Nos finais do século XIX esta era a zona mais animada, junto ao antigo porto.


A mais bonita da cidade, também.

A Casa Mustonen, centro de Artes, é onde se concentra a actividade do bairro.

Casa Mustonen de 1870, na Koskikatu

O quarteirão data de 1870, construído sob ordens do Kauppaneuvoksen (consultor comercial) Mustonen.

Kauppaneuvoksen Kahvila, um café-restaurante com o nome do consultor comercial Mustonen.


Um quiosque de café e gelados.

O Centro de Arte Ahjo

Antigo ginásio do Liceu, foi convertido em espaço de Arte para exposições, instalações e performances.


Museu das Belas Artes

Junto ao Taitokortteli, o Museu de Joensuu, fundado em 1962 com oferta de colecções privadas, ocupa um edifício neo-renascença de 1894, antigo Liceu.

Na rua Kirkkokatu

Numa cidade tão remota admira a dimensão deste Museu. Algumas obras:


Albert Edelfelt, 'Virginie', 1883

Vaino Aaltonen, Runotar (Musa), 1926

A colecção mais importante é um conjunto de arte religiosa, com destaque para uma Madonna de Bernardo Daddi, aluno de Giotto:

Bernardo Daddi, altar (Florença, séc XIV)

Mais:

A Igreja de Joensuu



É uma igreja luterana de 1903, em tijolo, no estilo neo-gótico e de inspiração Arte Nova, mais evidente na decoração das abóbadas das três naves.



Ylisoutajan silta, a Ponte do Remador


Ponte pedonal de 2014, cujo nome recorda um remador vitorioso. Premiada pelo design e pela iluminação nocturna.

 Iluminada ao entardecer, com a agulha da Igreja ao fundo.


Joensuu deve a sua relevância actual aos mais de 20 000 estudantes da Universidade da Finlândia Oriental e da Universidade da Karélia do Norte, situadas na margem direita, a cidade moderna.


Joensuu é conhecida também como Capital Florestal da Europa, não só pelo extenso Parque Florestal que a circunda, mais denso a Norte, como pelos estudos florestais (ambientais, madeiras, transportes fluviais) nas suas Universidades. 



A temível fronteira leste

A sul da aldeia de Värtsilä, pela estrada nº 9 até ao pequeno lago Virmäjärvi, que pertence a meias à Finlândia e à Rússia, estamos na linha de fronteira; aqui é o ponto mais oriental não só da Finlândia como de toda a União Europeia !


Esta proximidade com a fronteira russa marcou a história de Joensuu. Do outro lado, está a República da Karélia, território pilhado à Finlândia pela força mas cujos laços com o lado ocidental facilitam a cooperação transfronteiriça.
 
A Guerra de Inverno, também conhecida como Primeita Guerra Sovieto-Finlandesa, começou com a invasão por tropas russas da Finlândia em 30 de Novembro de  1939, e terminou três meses e meio depois como Tratado de Paz de Moscovo a 13 de Março de 1940. Embora dispondo de maior força militar, sobretudo força aérea e tanques, a URSS sofreu elevado número de baixas e de início pouco conseguiu progredir. A Liga das Nações (precursora da ONU) condenou o ataque como ilegal e expulsou a URSS. A Finlândia repeliu os ataques durante mais de dois meses e inflingiu mais de 160 000 mortes ao exército invasor, sob temperaturas que atingiram  −43 °C.

Com o Tratado de Paz , a Finlândia cedeu 9% do seu território à URSS, que apesar das pesadas baixas acabou por ter mais ganhos do que exigia a princípio (não faz tocar campaínhas de alarme ?) . Ficou com vastos terrenos em torno do Lago Ladoga, na Karelia, tendo a Finlândia ficado apenas com duas regiões a Norte e Noroeste do Lago. História que os finlandeses vêem repetir-se na Geórgia, na Ucrânia.

Actualmente os 1340 km de fronteira, fortemente patrulhados e vigiados, bordados de covas e blocos de cimento anti-tanque ('dentes-de-dragão'), são praticamente intransponíveis, à excepção de algumas estradas de terra não pavimentada; há faixa de terreno interdita que impede a aproximação a menos de 3 ou 4 km.

'Zona de fronteira - acesso proíbido'.

Boa sorte Finlândia, que a paz esteja contigo.