segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Outonal - poesia no feminino


Aí está em força, agora sim, a queda das folhas. Não tenho nenhuma explicação para o facto de serem muitas a poetisas a escrever sobre o Outono; Verão e Inverno são mais masculinos, aparentemente. Dois poemas sasonais:

''Autumn'' de Emily Dickinson

The morns are meeker than they were,
The nuts are getting brown;
The berry's cheek is plumper,
The rose is out of town.

The maple wears a gayer scarf,
The field a scarlet gown.
Lest I should be old-fashioned,
I'll put a trinket on.


                                     As manhãs mais pachorrentas do que antes,
                                     As nozes ganham tom acastanhado;
                                     As amoras mais cheias e redondas,
                                     A rosa foi para longe de viagem.

                                     O plátano veste alegres adereços,
                                     O campo, um roupão escarlate.
                                     Se eu não quiser ficar fora de moda,
                                     Algum berloque terei de usar.



"Fall, leaves, fall" de Emily Brontë

Fall, leaves, fall; die, flowers, away;
Lengthen night and shorten day;
Every leaf speaks bliss to me
Fluttering from the autumn tree.
I shall smile when wreaths of snow
Blossom where the rose should grow;
I shall sing when night’s decay
Ushers in a drearier day.


                                     Caiam, folhas, caiam; morram, flores, vão-se;
                                     Prolongue-se a noite e encurte o dia;
                                     Cada folha me sussurra êxtase
                                     Ao flutuar em queda da árvore outonal.
                                     Vou sorrir quando grinaldas de neve
                                     Florirem onde era a rosa a crescer;
                                     Cantarei quando o cair da noite
                                     Descer sobre um dia mais soturno.


[tarduções minhas]

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Os Bruegel de Viena: humanismo, paisagens, clima, Tarkovsky e Bach.


Tanto quanto tenho lido, está em curso uma redescoberta e revalorização de Bruegel como grande iniciador da pintura paisagista humanista profana, numa soberana e 'abençoada' indiferença pelos santinhos e deuses de diversas crenças. Desde a década de 1550, a obra de Pieter Bruegel distanciou-se dos italianos e os seus milhares de Madonnas con Bambino, de cenas bíblicas ou cenas da anterior mitologia greco-romana, muitas delas obra-primas bem entendido. Não admira que Bruegel estivesse farto, ufa, mas admira a coragem dele em desafiar costumes e normas.

Casamento de camponeses, 1568
Kunsthistorisches Museum, Viena

Casamento pobre: cerveja, pão, milho, Nada de carnes.

Falo de Pieter Bruegel o Velho (?1525 – 1569), pintor do Brabante, à época um ducado  que hoje é mais ou menos a Bélgica central (Lovaina, Namur, Antuérpia) estendendo-se a norte até ao Reno. Era então parte do Sacro Império.

Nos meados do século XVI a Renascença italiana tinha chegado aos países baixos, dando origem à renomada Renascença Flamenga. Bruegel era citadino e culto, frequentava meios educados em Arte, não era nenhum campónio. Mas o humanismo secular a que aderiu, depois de visitar França e Itália, distanciou-se do humanismo católico do sul da Europa.

O pai da noiva, o padre e um nobre rico.

Bruegel regressou dessa viagem em 1555, casou e foi viver para Bruxelas. As suas melhores obras datam dessas duas décadas de 50 a 70 do século XVI. São sobretudo retratos da vida rural - caça, cultivo, animais, pândegas, danças e jogos. Por outro lado, tinha apetência por temas visionários, como na Torre de Babel. Fez poucos retratos; na verdade não era grande retratista, em especial do rosto humano -  nenhum Dürer -, pelo que preferiu cenas sociais, vistas de conjunto. É uma perspectiva totalmente diferente da de Rafael, Michelangelo ou Da Vinci; Bruegel não valorizava o indivíduo mas o grupo, a classe, a aldeia. Nisso está próximo dos adeptos do "social" contra o "individual". A sua arte é admirável por essa sua diferença radical.

O Regresso dos Caçadores
Jagers in de Sneeuw, 1565
Kunsthistorisches Museum, Viena

Bruegel pintou muitos quadros de neve e gelo (*), paisagens brancas onde uns estão deprimidos e outros se divertem. Ora foi por esta altura que começou a Pequena Idade de Gelo, surpreendendo os empobrecidos europeus da época com a progessão dos glaciares nas montanhas, o congelamentpo dos rios e o frio intenso. O ano de 1565 teve o mais frio Inverno de que havia memória - os pássaros gelavam nas árvores.

"Estamos aterrorizados com os glaciares (...) que avançam constantemente e já soterraram duas aldeias e destruiram outra."
(habitantes de Chamonix)


Este quadro que observei em Viena é talvez a obra em que Bruegel vai mais longe na paisagem gelada de Inverno. Há imensos pormenores interessantes que têm dado para longas análises, algumas especulativas. Uma coisa óbvia é a utilização de diagonais que conduzem o olhar; algumas convergem para um ponto de fuga onde não há (quase) nada que ver, coisa impensável na pintura italiana. As linhas verticais (árvores, torres de Igreja) também criam tensão, organizam e dialogam, de forma tal que os caçadores não são de modo algum o tema principal; este parece mais ser o anónimo terreno lá em baixo onde decorrem cenas de alegre patinagem, sobrevoadas pela 'famosa' ave que também cria um cruzamento de diagonais.



Diagonais secundárias, em sentido inverso, parecem convergir abaixo da tabuleta da estalagem.


Curiosamente, a tabuleta pende por um só gancho, mostrando decadência. Talvez para reforçar o insucesso dos caçadores e seus cães, cabisbaixos, vítimas da vaga de frio que dizimou a caça ?

Dit is Guden Hert , "Este é o Cervo Sagrado" - está morto?

Logo por baixo, aldeões acendem uma fogueira para se aquecer.

Tantos "quadros dentro do quadro" !

Está também muito presente essa 'surpresa' do manto branco inusitado. Bruegel tinha atravessado os Alpes no regresso de Itália, mas esta (e outras dele) paisagem branca não é alpina. A Pequena Idade do Gelo estendeu-se de fins do século XVI até ao século XIX - dizem alguns que foi a industrialização que começou, com uma espécie de "aquecimento climático", a fazer recuar o avanço dos frios. Coisa boa, portanto, a industrialização - um arrefecimeto global do planeta seria muito mais trágico. As alterações climáticas não são todas iguais.

Quem diria: neste sentido, esta obra de Bruegel é mesmo uma bela lição, bem actual ! Face à adversidade climática, uns vergam-se conformados; mas há muitos outros que se adaptam e divertem, que aprendem a viver com o frio. Aprendamos nós agora.

Ah, mais uma nota, imperdivel: este Bruegel surge projectado numa parede no filme Solaris de Tarkovsky ! Será por retratar gelidamente um mundo humano nas suas duas escalas, grande e pequena ? Com música de Bach, cosmológica:




A 'Pequena Idade do Gelo' em Londres:

Feira sobre o Tamisa gelado, 1683/84


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(*) Ver aqui ou aqui , por exemplo.


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Centro histórico de Ystad, jóia do medieval escandinavo



Ystad, completamente fora dos circuitos turísticos, tem o encanto medieval de vilas como York, Annecy, Fribourg ou Óbidos* - o centro antigo manteve arruamentos com casas desde o século XII, floridos e muito cuidados, livres de comércio e restaurantes. Praças e duas ou três ruas pedonais periféricas concentram as lojas e serviços. Ystad são duas cidades numa, estendendo-se por uma reduzida área que se pode percorrer em meia hora.

Klostertorget, coração de Ystad

O que mais me inpressionou foi o ritmo de vida e quem anda na rua. Todos parecem descontraídos, relaxados, ninguém corre ou grita ou buzina. Obras, poucas, correm sem ruído, com calma eficiente. A quantidade de pessoas da terceira idade, de bengala ou carrinho (andarilho) é impressionante: saem todas à rua, estão nas esplanadas e nas lojas ou na esquina à conversa. Ystad, sendo autêntica, pode parecer um condomínio de luxo, ajardinado e embelezado, para os velhinhos passearem. Vê-se que têm um fim de vida activo, aparentemente feliz. O que não se vê, são tags nas paredes e garrafas ou papéis pelo chão, casas decadentes com ar abandonado, cães sem dono, bandos ruidosos, semáforos e poluição, hora de ponta; o que se vê, são muuuitas jovens de bicicleta, cabelos louros e vestes esvoaçando, uma imagem que me ficará gravada.


Pois: esta é uma reportagem longa e apaixonada. Vamos ver.

Com umas 300 casas de meio-enxaimel (entrelaçado) de madeira enchido a tijolo, poucas cidades podem exibir uma imagem tão completa da sua urbe medieval. São quatro os eixos viários da cidade velha, três deles com nome dos pontos cardeais: Västergatan (Lilla e Stora), Norregatan (Lilla e Stora), Östergatan (Lilla e Stora), e a sul Garvaregränd / Hamngatan, a rua comercial pedonal que desce para o porto.
(Lilla = pequena, Stora = grande).

Começo pela Garvarehuset, um recanto que nos seduziu assim que chegámos, entrando pela Trädgårdsgatan (= rua do Jardim).

Uma casa do século XVII em ângulo.


Foi a casa do Tanoeiro; onde vemos o arruamento ajardinado passava o ribeiro Vassaån, agora coberto, que vai desaguar no laguito frente ao Largo do Mosteiro, logo a seguir:


O Mosteiro da Ordem Menor de S. Francisco.


Entramos na praça pelas traseiras do Mosteiro. É certamente uma das praças antigas mais bonitas onde já estive, de um colorido esfuziante na luz do sol de fim de Verão. As texturas dos edifícios medievais dão-lhe um carácter único, e o sossego total onde se ouve só o rumorejar da água no Vassaån próximo, os pássaros e o vento na folhagem criam à volta deste templo franciscano do século XII uma atmosfera irreal, como estar numa cidadezita em Itália - digamos Ferrara ou Arezzo - sem mais ninguém.


O exterior do mosteiro é na arquitectura gótica em tijolo típica das cidades hanseáticas.


A decoração de recortes 'cegos', com efeitos de relevo no tijolo, é muito própria do gótico nórdico.


Contruido em 1258, o Gråbrödraklostret ("convento dos frades menores") marcou o início da era de desenvolvimento urbano desta vila portuária do Báltico.

Infelizmente, o interior esta muito degradado e a parte de museu não vale uma menção aqui.

A torre é linda !



Ao lado do Mosteiro está a Casa do Burgomestre (= alcaide), a casa de enxaimel mais ricamente colorida e decorada de Ystad. É em forma de T, sendo uma parte térrea e a outra com dois andares.


Data de 1500-1510, e foi moradia do alcaide dinamarquês. A cidade só conseguiu um alcaide sueco em 1680.



A casa está decorada com suportes de madeira trabalhados e pintados, e padrões que combinam habilmente tábuas e tijolos vermelho-turquesa. Portas baixas, divididas em meias-portas, ambas sulcadas com padrões rômbicos na madeira.


Saindo para noroeste, Lilla e Stora Norregatan são das ruas mais lindas. A Brahehuset é uma das casas góticas mais antigas em Ystad.

Brahehuset, Stora Nörregatan.


Dos finais do século XV, é o exemplar mais exuberante de casa medieval (tardia) em tijolo. As decorações de janelas circulares e rectangulares "cegas" estavam pintadas de branco, vermelho e azul, e destinavam-se a aligeirar paredes maciças. Foi declarada património público da cidade.

A Brahehuset a esquerda, o Gråbrödraklostret ao fundo, a Änglahuset à direita.

Logo a seguir, ainda numa esquina da Norregatan, a Hans Raffns Gård, mais conhecida por Änglahuset ('Casa do Anjo'), de 1573 - praticamente um século mais nova. O nome deriva das ricas decorações com anjos, duendes e flores na fachada principal. Foi também a casa do Burgomestre Hans Raffns no séc. XVIII, como está sinalizado.


Como a maioria das casas medievais de Ystad, era uma propriedade rural (gård) de que também fazia parte a casa adjunta.


O andar superior, mais saliente, é suportado por apoios de madeira muito bem executados.

Um friso de rostos alados deu à casa o seu nome mais popular:


E é assim a Norregatan.

Ainda não cheguei a meio, digam lá se Ystad não é um encanto e uma prazer de cidade ? Soube dela pela primeira vez na TV pela série Wallander, com o grande Kenneth Branagh e mutíssimo bem dirigida, a partir da obra de Henning Mankell. Uma das melhores séries policiais de sempre. Havia alguns cenários que me deixaram curioso sobre a cidade, e pronto. Está a menos de uma hora do aeroporto de Kastrup.


Continuando, vamos desaguar na Stortorget, a praça histórica principal, onde esta a Câmara e a românica igreja de Sta Maria, S:kta Mariakyrka, o edifício mais antigo da cidade. Também ali há uma pequena feira, creio que diária, três esplanadas (uma excelente confeitaria) e um restaurante simpático.

Entrando pela Norregatan, damo-nos com este edifício com ar hanseático tardio, no estilo Renascença flamengo:

A Gussings Hus é o nº1 da praça, foi construída ao longo de vários séculos - o rés do chão é tardo-medieval, e servia de armazém para a Igreja ao lado; desde 1784 tinha dois andares, mas foram completamente reconstruídos pelo rico comerciante grossista Gussing em 1891, que quis um palácio numa arquitectura já fora de moda: Gussing vivera na Dinamarca, e de lá veio o arquitecto.


São notáveis as empenas com ornamentos espiralados, com utilização de tijolo vermelho decorativo. A casa passou a dominio público como património.

Outra preciosidade da Stortorget é a Escola de Latim !


Este magnífico edifício gótico em tijolo de ca. 1500 (mais antigo que a Brahehuset) era a escola de latim da igreja de Sta Maria. A empena em degraus é estranhamente assimétrica.


Foi a primeira escola de Ystad, provavelmente a mais antiga escola da Escandinávia, e esteve em uso por mais de três séculos .

Já a Igreja de Sta Maria é um flop. Pode ser o edifício mais antigo da cidade (ca.1200), mas é pobre, paupérrimo, e feio. Salva-se este altar medieval em madeira:
Talhado em carvalho pintado e dourado, ca.1400 , proveniente do norte da Alemanha.
Um trabalho de mestre.

Marca da cidade é a flecha da torre barroca, aqui reflectida no excelente Maria Caféet, mesmo ao lado, onde o kannelbullar é divino:

Os pãezinhos de canela são a especialidade sueca para gulosos. O núcleo central fica sempre para o fim...

Mas o melhor da Igreja é a vista da torre nas ruas adjacentes a oeste, as Lilla e Stora Västergatan:


Como bilhete postal de Ystad não há melhor.


Sobretudo a Stora Västergatan é imperdível, com mais uma casa de quinta medival - a Fallberedergavarna.


A rua mais bonita de Ystad ?


Esta é a Kemnerska Gården, a casa onde se diz ter ficado o Rei Carlos XII quando passou pot Ystad. Tem placa e tudo - mas é falso! A mentira valeu à casa ter sido protegida e acarinhada.

Outra preciosidade, de 1520.


A seguir voltamos de novo à praça central Stortorget, agora pelo lado sul.

A Rådhuset, antiga Câmara, e à direita uma casa de enxaimel do seculo XIX que é um restaurane caro.


Vamos para leste, pela longa e comercial Stora Östergatan.


Nesta rua há mais duas relíquias notáveis, sendo a Pilgrändsgården (1480-1520) a mais preciosa - é a mais antiga casa em enxaimel de toda a Escandinávia!


São duas casas agrícolas, uma certamente armazém, com painéis de tijolo trabalhados em vários padrões.


Um pouco adiante, a Per Hälsas Gård, um ou dois séculos mais recente.


Foi reaproveitada como centro de artes e ofícios, com lojinhas no interior; quando lá fui estava fechada.


Finalmente, regressando outra vez a Stotorget e saindo para norte, fechamos o circuito na Apoteksgården, a minha favorita casa de enxaimel, de ca. 1600. Tem dos mais lindos padrões de tijolo e suportes de madeira.





O nome deriva de a Farmácia da cidade ter sido transferida para esta casa em 1786. Nas traseiras ainda há um jardim onde eram cultivadas plantas medicinais, e na casa funciona agora uma oficina de cerâmica artesanal.



Logo a seguir, na esquina que dá para a pracinha Tvättorget, uma casa privada de 1640, a Jens Jacobsenshus. Jacobsen era um comerciante rico e membro do Conselho da cidade.


Demos a volta, já estamos de novo na Klostergatan que nos leva de volta ao Mosteiro.


Há certamente centenas de vilas e pequenas cidades medievais em França, Itália, Suíça e Alemanha muito mais ricas de igrejas, castelos e palácios, estive em muitas delas. Foi por ai que fervilhou a Idade Média, as suas artes e comércio. Mas Ystad tem um carácter diferente, mais recatado e sóbrio, mais suavemente alegre nas ruas floridas e ciclistas, longe do burburinho turístico que hoje desfeia qualquer espaço histórico mais afamado. A Escandinávia e o seu modelo de vida são para mim o melhor ambiente humano que o planeta tem para oferecer.



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* a Óbidos de há 30 anos, claro. Agora é um shopping de plástico ao ar livre.