sábado, 30 de maio de 2020

Recebido durante a pandemia : livros e CDs para querer ficar em casa


Melhor ou pior, algumas das encomendas foram chegando a conta-gotas nos meses de confinamento. Vou só dar destaque às melhores.

                CDs

Stephen Hough, concertos para piano de Brahms, com a Orquestra Mozart de Salzburg. Um marco ! Excepcional interpretação, fulminante de vitalidade. Vídeo promocional:



Grigory Sokolov,  Beethoven e Brahms

Uma colectânea gravada ao vivo, com tosses e ruídos - autêntica mas por vezes incómoda. Sokolov também não está sempre na melhor forma: excelente em Beethoven e nos encores (Rameau), menos bem em Brahms.

Paixão segundo S Mateus de Stephen Cleobury com a Academy of Ancient Music, em Cambridge


'Wir setzen uns', coro de rapazes a reverberar em King's College.

Uma leitura singela e despretensiosa mas muito cuidada, executada com primorosas vozes e orquestra. Não há 'paixão' nesta Passio, mas há muita contenção e sofisticação, uma leitura digamos amável e cristalina.
Ainda assim, Harnoncourt fez melhor.

John Helmich Roman, Drottingholmmusik
Ensemble 1700 Lund
Fantástica obra, fantástica gravação, quem diria, de um compositor barroco sueco. Começo por dar os parabéns ao Ensemble de Lund, que não conhecia, e que faz justiça à bela cidade. A música de Roman (1747) é uma surpreendente festa barroca, muito ao estilo de Handel; mas não é de todo imitação - antecede os Royal Fireworks. Para dias de Verão.

Carolyn Sampson canta Mozart
A soprano de voz poderosa e firme, sem vibrato como convém, na sua melhor forma.

Messa di gloria, Puccini
Antonio Pappano, LSO, Alagna, Hampson

Bela gravação de uma obra pouco conhecida, injustamente.  A audição mais parece operática, como se Puccini se tivesse deixado levar pelas convenções liricas; mas não, ele só se converteu à ópera anos mais tarde, esta é uma obra de juventude, talvez a primeira, aos 18 anos ! Portanto é isso sim premonitória das obras que estavam para vir. Muito impulsiva e celebratória - uma Missa surpreendente.




            LIVROS

The Boy, The Mole, The Fox and The Horse
Charlie Mackesy

A sabedoria mais virginal transposta para um rapaz, uma toupeira, uma raposa e um cavalo, cada um poético à sua maneira. Ingénuo mas os desenhos são tão bonitos...

The Greengage Summer, Rumer Golden
Livrinho de 1958, um clássico romance na Champagne francesa, junto ao Marne.

A Pintora das Plantas, Martin Davies
Uma história palpitante de peripécias na procura de uma ave misteriosamente desaparecida em 1774 nos Mares do Sul.

A Máquina Pára, e outros contos
E M Forster
Mais para o Verão, os contos fantásticos de Forster na Antígona, em bom português ! (atracção, etc.)

Coisas boas, para compensar.


https://www.facebook.com/royaloperahouse/videos/262107601807756/?v=262107601807756&notif_id=1590775502077846&notif_t=live_video

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Os castelos de Breacachadh e as pedras de Totronald, a 15 minutos de Arinagour pela B8070


Adoro estes nomes, parecem ficção ultra-romântica para adolescentes. Mas atenção, nunca fiz este passeio - é uma visita virtual com base em documentação disponível online. Interessei-me pela ilha depois de ler "Under the Stars" de Matt Gaw, que foi até lá ver o céu estrelado sentado numa praia, pela noite dentro, como já aqui relatei. De qualquer maneira, aposto que ninguém ainda tinha ouvido falar, e gosto de revelar sítios - neste caso, ainda mais, sabendo que andaram por aqui Mendelssohn, Jules Verne, Walter Scott, Turner, Antonioni... estamos perto da mítica gruta de Fingal.

A ilha de Coll é uma das mais longínquas Hébridas interiores, praticamente ignorada e abandonada na sua localização, de acesso muito demorado. São dois os castelos de Breacachadh ['brak axə] na pequena ilha de Coll, que não tem praticamente mais nada... a 'capital' é uma fila de casas frente ao minúsculo cais, uma aldeia que recebeu o nome de Arinagour. Se isto tudo não parece um romance demencial de Scott, ou de algum pré-rafaelita !

Os castelos de Loch Breacachadh (= pasto salpicado)

Mas começo por Arinagour (Àirigh nan Gobhar, = abrigos de rebanho). A população, que é quase a mesma da ilha, não chega a 200. Além do cais para o ferry, tem o posto dos correios, os bombeiros e um café, da cadeia Tesco, vá lá; tem ainda alguns alojaments modestos mas aprimorados, sobretudo desde que foi eleita pelos stargazers, os observadores de estrelas, devido à escuridão nocturna e à limpidez do céu.

Arinagour
56°37′ N, 6°32′ W
A aldeia consta de uma só rua, paralela à linha de costa, mas essa rua tem 4 (quatro!) nomes. Pode ser Main Street, ou High Street, mas também Shore Street; e para quem está de carro é a B8070 !




The Island Café, um dos poucos locais que por vezes está animado.

Belo sítio para confinamento, não é ?

Apetrechos de pesca artesanal

Arinagour é servida diariamente por um ferry de/para Oban que demora perto de 3 horas: o navio Clansman da Calmac.
MV Clansman, da Caledonian.

Pela ilha, dispersas, há algumas habitações rurais, vivendas, e dois castelos - um dos quais está à venda. Quem raio construiria castelos aqui? Os clãs a marcar território ? Um deles, sim. Pedra para construir não falta, a ilha é quase plana com ondulações e montículos, uma espécie de tundra com vastos prados para pastagem, semeada de pedregulhos e pedreiras.

Estrada B8070  de Arinagour para sul.


Chegados ao Loch Breacachadh (rio-me sempre ao escrever), o cenário é este:


O castelo antigo é um torreão fortificado de meados do século XV; foi de facto durante 400 anos praça forte do clã dos Macleans de Coll que reinou sobre a ilha desde 1431.


Sempre ocupado, foi decaindo até um estado ruinoso no século XIX, quando o último Maclean vendeu a propriedade de Coll.


Na década de 1930 algumas obras de manutenção evitaram o desmoronamento, mas o restauro actual é de cerca de 1960; serve agora de residência familiar.


O outro, o castelo moderno, é uma edificação maciça de 1780, no estilo Georgiano, grandemente ampliada em 1856. Actualmente espera por um comprador.



E é tudo? Quase. Há praias selvagens, e há pedras megalíticas - as duas "Na Sgialaichean " em Totronald. Mais um nome delirante, Totronald. As pedras foram denominadas "contador de histórias" (teller of tales) porque alguém que lá passe acompanhado deve falar em voz alta numa delas para ser bem escutado por quem esteja na outra, deitado sobre a relva. Assim pode pregar uma partida e livrar-se da companhia.


Neste lugar travou-se em 1583 a principal batalha pelo poder da ilha, entre os clãs rivais MacLean de Coll e Maclean de Duart. Faz sentido que cada pedra represente um dos clãs, quem sabe.


Por estes campos arriscamo-nos a deparar com gado escocês das Terras Altas; é um susto, se der um mugido então ficamos de pernas a tremer, mas parece que são de uma mansidão absoluta !


Pois é, embora este seja um bocadinho de Europa é um lugar bastante exótico e imprevisível. Recentemente Coll foi eleita Dark Sky island, estratégia que além de valorizar o ambiente pristino também vai estimular mais visitas à ilha.
https://gostargazing.co.uk/events/locations/isle-coll-arinagour/




E assim termino este ciclo hebrideano.


domingo, 24 de maio de 2020

Pinturas e lacados de Shibata Zeshin


Pouco a pouco vou conhecendo mais dos melhores artistas gráficos japoneses da arte Ukiyo-e (séc XVII-XIX), quase sempre com surpesa. Hiroshige, Hokusai, Hashiguchi, Kawase, Takahashi, e agora

Shibata Zeshin (柴田 是真, 1807 – 1891)

Artista gráfico de pintura em papel, laca e gravura, Zeshin viveu nas eras Edo e Meiji; aprendeu pintura e desenho tradicionais, mas também estudou a arte do Haikai, filosofia, o cerimonial do chá. Mais famoso pelos trabalhos de laca, é na pintura em papel que criou as melhores obras. Tentou conciliar a modernidade ocidental com a tradição japonesa mais conservadora; acabou por ter mais êxito no estrangeiro que dentro do seu país, mas todos lhe reconhecem génio e inovação técnica.

O seu estilo abraça o conceito wabi - beleza e elegância na simplicidade - cujo modelo é a cerimónia do chá. Entre outras técnicas, usou bronze nos laqueados para simular a aparência do ferro, e farinhas para engrossar a laca e obter um efeito semelhante à pintura a óleo.

Imagens de algumas obras que consegui na net, com Haikai que adaptei:

Ramos de ameixoeira ao Sol

Pelo meio do arrozal     
vou até à ameixoeira — 
para ver o seu perfume.


Narcisos brancos

Narciso e biombo
   um o outro ilumina
 branco no branco.


Duas Borboletas

A poeira deste mundo
pesa no meu corpo –
voa borboleta!


Garça branca e corvo em voo, ~1880

Vozes das aves.         
    Nessas horas, um poeta
 não tem mais mundo.


Ervas de Outono ao Luar
 
Lua cheia, outono — 
     caminhei a noite inteira
 ao redor do lago.      


Casa de lavrador


O inevitável monte sagrado, lindíssimo:

Monte Fuji, 1872


'Ondas', painel maki-e, 1888-1890


Estou a precisar de ver uma boa exposição !

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sob as estrelas, com Matt Gaw numa praia da ilha de Coll


Esteve aqui ao lado como Livro de Cabeceira o último de Matt Gaw, Under the Stars, que entre outras coisas me fez descobrir a ilha Hébrida de Coll. Hei de mostrar mais um pouco desse lugar, mas hoje cito um pequeno excerto do livro, em tradução minha.


Gaw alojou-se com a família em Arinagour para poder disfrutar das noites estreladas. É de uma das excursões nocturnas que aqui deixo o relato.

Acesso à praia junto a Arnabost, sobre o machair.


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Visita nocturna a uma praia Dark Sky na ilha de Coll

Tínhamos planeado uma noite tranquila junto à lareira, mas com a dádiva de céu desanuviado mais uma vez estou em pulgas para sair. Recorrendo à promessa de uma noite prolongada e uma termos de chocolate quente, convenço as crianças e a Jen a irem comigo, todos arregimentados no carro dentro de várias camadas de camisolas, casacos, gorros e luvas.

Perto de Arnabost, puxo por uma cancela de metal que assinala a praia. Há do outro lado um caminho bem marcado, seguimos a pé por um acesso em pedras claras que passa numa casa de quinta às escuras e entra pelo machair.*
(...)
Tento pedir-lhes silêncio para ouvir a direcção do mar, a sua troada. Os nossos pés calcam e espremem, para cima e para baixo, a esponja preta do machair. Acaba por surgir um trilho que seguimos até à crista da duna, que cai em declive íngreme para a praia de areia branca, onde poças de água brilham à luz das estrelas.

Paramos. Abrimos a termos de chocolate quente, empoleirados nas dunas. Conversamos em sussurros, como se as estrelas pudessem fugir receosas. Esta noite estão gordas e brilhantes. Aponto as constelações às crianças mas não me parece que queiram saber. Estão aturdidas pela imagem total, grandiosa, a gigantesca massa de milhares de sóis cuja luz é mais antiga que tudo o que elas poderão algum dia conhecer.

É a primeira vez que vêem a Via Láctea. Ofegantes, abrem os olhos ao chuveiro de luz, enquanto processam a ideia de que estão a observar a Galáxia onde habitam. Tentamos juntos descrever, espuma de leite, geada, bolor, espuma do mar, manchas de sal
(...)
E então começam as estrelas cadentes. Não lhes tinha dito que esperava ver Oriónidas, não queria desapontá-las, mas agora elas gritam e ululam a cada fogacho de poeira, cada risco. Vermelho. Uma nuance verde erva. Entre uma e outra ninguém fala, quero que continuem atentos. Digo-lhes, estejam alerta e deixem que a noite vos leve.


(...) penso em todas as noites que tenho visitado. Neve, nuvens, céu limpo, luar e neblina, estrelas caindo e a escuridão que se levanta. Cada noite, quer contenha alegria, espanto, medo ou frustração, foi única; cada experiência mostrou-me a escuridão sob uma nova luz.


* terreno de pasto, mole e esponjoso, de vegetação rasteira sobre duna

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Dark Sky Parks, sítios de Reserva de Paisagem Nocturna


Desde 1988 têm vindo a ser criadas reservas naturais de protecção da Paisagem Nocturna, ou seja, do céu estrelado, um projecto da organização Dark Sky. Locais de pouca ou nula poluição atmosférica e luminosa, longe das cidades e pouco sujeitos a agitação dos ares. Uma ideia luminosa, para mim a noite é isso e não turismo de bares.

Como seria de esperar, em Portugal não há nenhum (*) desses parques, mesmo que eu conheça sítios apropriados como Paradela, na serra do Gerês, onde há anos passei uma noite inesquecível a ver a chuva de estrelas cadentes das Perseidas, maravilhado com a Via Láctea.

A maioria dos Dark Sky são nos Estados Unidos, mas a Europa conta com muitos, sobretudo no Reino Unido, Alemanha, Hungria (3), Croácia (2) e um em Espanha, nos Pirinéus catalães: Albanyà - onde foi instalado um observatório 'turístico'.

Começo justamente por aqui, uma imagem nocturna da Via Láctea em Albanyà:

Albanyà, Girona, 42º 18'  N,  2º 43' E

O observatório é só um espaço mediático lúdico, em noites limpas é ao ar livre que se deve estar...



Eifel Park, numa floresta a norte de Trier, na Alemanha, é outro dos mais próximos de nós. Na Alemanha nem deve ser fácil anular o efeito da iluminação artificial.



Menos acessível, no País de Gales, Elan Park estende-se à volta de um lago de barragem:


O espelho de água praticamente imóvel reflecte o céu estrelado; o Vale de Elan é muito isolado, afastado de qualquer área urbana, numa região montanhosa.

A Lua em conjunção com Marte, no céu de Elan Valley.

Na Hungria, um dos três parques, o Zselic, é uma das 'estrelas' mais procuradas dos Dark Sky; uma vista deslumbrante:

Zselic CsillagPark
46º 14’ N, 17º 46’ E
Situado entre o lago Balaton e o Danúbio, numa remota zona de floresta.

Vamos para a Escócia; em Galloway, um sítio fenomenal junto ao lago de Clatteringshaw, barragem do rio do mesmo nome. O acesso faz-se pela A712 ('The Queen's Way'), depois é caminhar, caminhar... até um dos vários postos de observação.

Galloway Dark Sky Park
Clatteringshaw, 55°04′ N, 4°17′ W



No Inverno o céu ainda é mais limpo.


Finalmente, a que eu escolheria, se pudesse até lá viajar; fica nas Hébridas, numa das pequenas ilhas mais isoladas, a 3 horas de ferry de Oban: a Ilha de Coll foi declarada parque Dark Sky, toda ela.

Trepar ao telhado por exemplo.

A capital da ilha, Arinagour, é uma aldeia tão pequena e escassamente iluminada que nem é preciso sair para o interior deserto da ilha: basta ir à rua.


Estrela cadente nos céus da Hébridas.


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https://www.darksky.org/

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(*) Correcção: soube agora da abertura do Dark Sky Aldeias de Xisto ! Hei de lá ir.