domingo, 28 de fevereiro de 2021

Extraordinários Vidros Romanos - exposição em confinamento.


--- agora vou ser uma espécie de curador de exposições virtuais, tanta é a  sede de museus ---

A arte do vidro começou talvez na Síria, com os primeiros sopradores cerca de 100 AC, mas foi durante o período Romano tadio que se atingiu na Europa uma perícia mais sofisticada que ainda surpreende. Os romanos criaram novas formas e cores pela adição de óxidos ao vidro - níquel e cobre para azul, ferro e manganésio para amarelo, potássio para verde...; inovaram sobretudo na moldagem e na técnica de sopragem.

No Museu Paul Getty de Los Angeles há uma grande e e belíssima colecção de vasos romanos de vidro. Esta é uma taça 'bordeaux' com nervuras e traços brancos espiralados em volta das nervuras. Data: séc. I AC.


Também no Getty de L.A., datada de I DC, esta garrafa foi obtida pela fusão conjunta de várias tiras de vidro diferentemente coloridas, distorcidas durante o processo.


Outra taça, também no museu Getty, esta fabricada com uma técnica altamente evoluída de moldagem.
Séc.I  AC
Branco opaco, púrpura, amarelo-mel, azul cobalto, incrustrações - o auge do talento de um vidreiro romano. Uma obra prima !

Passemos agora ao MET de Nova Iorque; também quase intacta, uma caneca de I - II DC
num levíssimo azul cobalto :


Regressemos à Europa. Em Ljubljana (a Emona dos Romanos) foi encontrada esta linda taça millefiori, mas do século I DC. Está no museu da cidade.


O efeito mosaico (millefiori) era obtido pela fusão conjunta de pedacinhos de vidro de diferentes cores.

De paragens mais longínquas, de Varpelev e Højerup, Dinamarca, são estas taças já mais tardias, dos séc. III-IV DC, decoradas com animais:


Foram achadas nas margens do rio Tryggevælde Å, enterradas nas lamas, e num monte funerário próximo, Himlingøje.


Estão agora no Museu Nacional, em Copenhaga, tal como este raro corno de beber Romano em vidro, com a mesma origem. Na Dinamarca, quem diria.

O corno de Himlingøje: não foram os Vikings os inventores do corno para beber, embora este, do séc.III, os possa ter inspirado.

Os famosos vasos em gaiola, ou reticulados (Vas Diatretum), são mais tardios, muito trabalhosos e caros, um luxo de gente poderosa. Encontrou-se em Colónia este, do séc. IV, fabuloso. Está agora num museu de Munique.

Inscrição: 'Bibe multis annis', bebe por muitos anos

A deslumbrante mestria atingida pela arte romana do vidro.

Continuemos esta navegação pela Europa Romana dos vidros; no Museu Britânico existe outra peça famosa, a Taça de Licurgo (~300 DC), que para além do trabalho tem a peculiaridade de variar de cor conforme a incidência da luz.

Verde-jade com luz de frente, vermelho com luz por traz. O efeito é obtido com partículas ínfimas (1 milésimo de um grão de sal refinado) de ouro e prata, mas o processo foi sem dúvida acidental, não havia na altura técnica para manipular partículas que nem ao microscópio óptico são visíveis. ´Mistério´!


Um cálice com 1600 anos que parece acabado de fabricar.

A maioria dos museus italianos possui alguns espécimes desta arte; Nápoles (de Pompeia), Milão, Bolonha, Agrigento, Verona. Mas no Museu de Adria estão exemplares assinados, portanto de autor conhecido e brioso da sua arte.

As chávenas azuis de Adria, do Séc. , têm a marca do seu autor, Ennion.


Ennion era conhecido em todo o Mediterrâneo pelos seus vidros coloridos. Nascido na cidade fenícia de Sidone, encontraram-se obras suas em Chipre a até na Crimeia.

No museu de Bolonha, vi esta incomparável taça millefiori azul, encontrada em Adria (Veneto):

Da transição do Séc. I  AC para o Séc. I  DC; em vidro ametista incrustrado de amarelo, branco e verde.

Saber mais:


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A eternidade num fiorde - Maniitsoq

--- Outra vez na Gronelândia, pelo ar fresco e tudo o mais que me deslumbra nessa Thule ---

É Europa, politicamente, mas não pertence à nossa placa tectónica; mais certo é considerar a grande ilha como um continente, para proveito e regalo da Dinamarca que a governa desde 1814, sucedendo à Noruega.

Maniitsoq (anterior Sukkertoppen ) fica na costa oeste da Gronelândia, a olhar para terras do Canadá através do estreito de Davis; está situada entre as duas maiores cidades, Nuuk e Sisimiut, que contacta por mar ou por via aérea.


Coordenadas:  65°25′ N, 52°54′ W  [~ 120 Km a sul do Círculo Árctico] 
População:  ~ 2 800 

A localização não podia ser melhor, rodeada de montanhas, fiordes e glaciares e construída sobre um arquipélago costeiro.


O aglomerado das habituais casinhas multicolores espalha-se a subir uma encosta a partir do mar.


Pela abundância de água entre as ilhotas ligadas por pontes, era inevitável que ganhasse fama de Veneza do Ártico.


Em todos os ângulos de vista a água está presente.

Nos meses mais frios, esta é uma Veneza branca.


Como se foi construindo sobre o declive do terreno, só existem ruas no sentido habitual junto ao porto; os percursos entre casas e com a borda de água fazem-se por escadarias de madeira.




Vista do cimo :

São 229 degraus para trepar.

Com o nome Sukkertoppen, a cidade foi fundada em 1782 por colonos dinamarqueses; esse nome significa ' pão de açúcar´, sugerido pela montanha vizinha.

A Igreja colonial de 1874 é um dos edifícios mais antigos:

Bonita pia baptismal.


O Museu compõe-se de quatro casas, também do século XIX: a residência do administrador colonial e a do seu assistente, a oficina do tanoeiro, padaria, e armazéns de pesca e derivados . 


Estas quatro casas eram na altura o centro da povoação colonial, mas na década de 1970 foram deslocadas para permitir a instalação da fábrica de processamento de peixe. 

O edifício maior, com dois andares, é o que contém a colecção permanente, arte e artesanato de autores locais.


O Museu documenta o que foi o povoado desde a origem até ao fim do peíodo colonial.



A biblioteca oferece literatura sobre a natureza, a história e as lendas locais.


Eternity Fjord

Porque cresce o turismo aqui? Uma das razões são os fiordes e glaciares. O Fiorde da Eternidade é o maior da costa ocidental, com montanhas a chegar aos 2000 metros.

 



Para ski de aventura e kayaking, não deve haver melhor.

A cratera

Em Julho de 2012, foram descobertos indícios de uma imensa cratera, 55 km a sudeste de Maniitsoq. Os cientistas datam-na de há 3 000 milhões de anos; será a mais antiga e a maior do planeta. 


"Uma região circular com cerca de 100 km de extensão centrada a  65° 15′ N, 51° 50′ W (...) apresenta um conjunto de fenómenos geológicos muito invulgares criados durante um único evento com intenso esmagamento e aquecimento, incompatíveis com processos orogénicos da crusta terreste"


O granito deformado, após ter sido derretido e pulverisado, que se espalha por dezenas de quilómetros em torno de um pico, testemunha o súbito e violento impacto. Nenhum outro processo geológico explicaria a dimensão do fenómeno, segundo os defensores da hipótese da cratera, que classificam o Domínio Finnefjeld como 'rocha cataclástica´.

O Monte Finnefjeld (1050 m) será o núcleo esmagado do asteróide.

Há contudo bastante contestação a esta teoria nos meios científicos, que não terá conseguido evidências bastantes contra a explicação orogénica.

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Noites tranquilas em Maniitsoq.







sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Uma concha que fez música há 18 000 anos voltou a soar


Foi no The History Blog que encontrei esta história.

É uma concha que estava no Museu de História Natural de Toulouse desde 1931, depois de descoberta numa gruta dos Pirinéus, no sul de França, e tinha sido identificada como vasilha de água, fora afinal lascada e perfurada para ser utilizada como instrumento musical de sopro, como um corno de caça.

A concha é uma 'Charonia Lampas', com 31 cm.

Só que a datação remete a concha para há 18 000 anos, portanto fazia música no Paleolítico ! Verdadeiramente música antiga. Com muito fôlego, é possível ainda extrair dele três potentes notas.
Os dois furos alinhados com a abertura do topo permitiam a entrada de um tubo de sopro (osso de ave, cana), inserido para facilitar o esforço do executante.

Os Magdalenianos de Marsoulas (a localidade onde está a gruta) eram uma população do Paleolítico Superior na Europa Central, conhecida pelas pinturas murais nas cavernas; agora constata-se que as imagens podem ter sido acompanhadas de banda sonora - seria um multimedia na Idade da Pedra.


Música para o famoso bisonte salpicado de Marsoulas.

Esta concha revelou-se um inesperado tesouro do Paleolítico, contudo não é o mais antigo instrumento musical jamais encontrado - bem mais antigas são as flautas de osso de abutre com 40 000 anos de Geißenklösterle (perto de Stuttgart).

Ouçamos a concha magdaleniana em Do - Re - Do#.

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Assim começou, até que um dia se chegou à 2ª de Mahler.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Nunca fui a Vicenza ! + o Teatro Olímpico de Palladio

Vicenza é uma daquelas cidades que se devem visitar antes de morrer, ou visitar e depois morrer; é, digamos, 'definitiva'. E não se fala muito dela, não é tão destino de multidões como outras.

Corso Andrea Palladio

Vicenza é a cidade de Andrea Palladio, arquitecto renascentista, um dos mais inspiradores de todos os tempos, imitado repetidamente na arquitectura neo-clássica; um génio inovador que além de uma nova estética inventou imensas soluções técnicas. A UNESCO reconheceu que devia ser admirado pelo menos tanto como Michelangelo ou Da Vinci. Anda por aí em exibição nas TVs um documentário muito fraco que não lhe faz justiça. Quem lhe fez justiça foi Goethe: o poeta alemão, na sua Viagem a Itália, não se poupa em palavras para descrever o êxtase que sentia perante as obras de Palladio.

Entre 23 (!), há pelo menos três obras primas dele em Vicenza; a que elejo em primeiro lugar é o Teatro Olímpico

Piazza Matteotti - a entrada para o Teatro.

Foi construído entre 1580 e 1585, data de estreia com o Oedipus Rex de Sófocles, e foi a última obra de Palladio - não chegou a vê-la concluída.


Palladio teve de aproveitar uma secção da fortaleza de Vicenza, que tinha sido usada como prisão e depois como paiol de pólvora. 



Para encaixar um teatro romano no espaço irregular da fortaleza, recorreu a uma planta elíptica.

É o mais antigo teatro coberto da Europa completamente preservado.


A cenografia, criada pelo aluno de Palladio, recria a cidade de Tebas; com um impressionante jogo de perspectiva "rompe" o proscénio, ampliando visualmente o espaço e tornando-o uma obra de arte em cada detalhe.


O auditório é uma escadaria elíptica enquadrada por uma colunata, encimada por un friso de estátuas. Um palco rectangular antecede o majestoso proscénio, com três arcadas separadas por colunas, nichos com estátuas, painéis de baixo-relevo, tudo criando efeitos reforçados de perspectiva e profundidade.


Foi aqui filmado o Don Giovanni de Joseph Losey. 


Palazzo Chiericati - Museo Civico

Saindo do Teatro, em frente na mesma praça de Vicenza fica a casa que Palladio desenhou para a família Chiericati.


Inspirado no modelo de palácios de Veneza, volta para a praça uma frente espectacular, que conjuga de forma brilhante as linhas horizontais e verticais criando volumes diferenciados.


Acabado em 1680, demorou 80 anos a construir ! Em baixo, no passeio público, colunas dóricas; no piso de cima jónicas. Palladio utilizou quase sempre a média harmónica nas proporções externas e internas.


A secção central é ligeiramente projectada para a frente.

Um 'chiaroscuro' obtido com formas e materiais.

Como seria de esperar, lá dentro é um Cosmos, onde podemos passar um dia e voltar. Salões ricos de cor e luz, os tectos pintados com frescos, e no museu quadros do Renascimento italiano. 

Tecto da Sala d'Ercole

Luca Giordano, 'Bodas de Canaã'.

Paolo Cagliare,Veronese - 'Madonna con Bambino', 1560.

Piazza dei Signori

Vicenza tem ainda uma das mais belas praças de Itália, ou do mundo, a Piazza dei Signori que faz esquina com a Piazza delle Biade:


À entrada, duas colunas: uma com um belíssimo Leão alado de S. Marcos, de 1464; e outra de 1640, encimada pelo Cristo Redentor. À esquerda, a Torre Bissara e a Basilica, também de Palladio.


Muito teatral, este cenário.




A Torre Bissara, de 1174

Uma belíssima e rara torre medieval com 82 metros. 

Recebeu o nome da família Bissari; e foi anexada à torre que Palladio realizou, quatro séculos mais tarde, outra obra prima, a famosa Basílica.


Basilica Palladiana, 1597.

Em 1546, Palladio apresentou um projecto para recuperar o que existia de um modesto e degradado salão gótico; a solução foi envolvê-lo com uma vistosa 'carapaça' renascentista, dois andares de arcadas a toda a volta. Não se consegue imaginar o que era o estaleiro da obra por toda a praça, que demorou 68 anos.

O edifício medieval foi 'encaixotado' num luxuoso invólucro. Por fora, elegância, harmonia e leveza. Lá dentro continua a haver lojas em galeria e passagens de travessia no andar baixo, e em cima o salão de festas que recebe agora actividades culturais. É na transição entre as duas estruturas, interna e externa, renascentista e gótica, que o sucesso da obra foi mais relevante: uma tripla dualidade. 

Galeria da arcada superior.

Aqui prevalece a ordem dórica.



La Rotonda é uma obra única e imperativa do Mestre; já numa zona rústica dos arredores, dois ou três quilómetros a sul da cidade, a 'Villa Capra' recebeu aquele nome pela sua famosa sala central redonda onde eram recebidos os visitantes.

De planta quadrada com quase total simetria, mas com sábias adaptações no interior. Colunas jónicas nos quatro pórticos.


Quase um templo. Pela primeira vez, uma moradia foi construída em torno de uma cúpula central.

A adaptação da forma quadrada ao salão central redondo com a cúpula e aos quartos rectangulares criou vários espaços 'vazios' muito bem escondidos por Palladio, um segredo da casa.




Mesmo ao centro do chão sob a cúpula, uma máscara disfarça uma tampa para a conduta de circulação de ar sob o pavimento. Era sobre esta marca que eram recebidos os convidados mais prestigiados.


Uma das coisas mais admiráveis na obra é que não precisou de alicerces!  Construída na verdade quase como uma pirâmide, no topo de uma elevação, sobre uma sólida plataforma que serve de cave, a casa é auto-sustentável em termos de estabilidade, como se torma mais claro numa plano de perfil.



Olhos atordoados de tal festim de arquitectura, eis uma experiência que já não vou ter. Tenha quem ainda puder.


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