domingo, 30 de agosto de 2020

Quero envelhecer como cristais do mar



I want to age like sea glass
                                          Bernadette Noll

Tese

Quero envelhecer como os cristais do mar. Amaciado pelas marés, mas não quebrado. Quero ser revolto e sacudido pelas correntes da vida, quero que elas me deixem sentir lavado. Quero que as minhas bordas aguçadas se atenuem com o passar dos anos — não mais fracas: mais maleáveis. Quero cavalgar as ondas, ir com os caudais, sentir o impacto do fluxo e refluxo das marés investindo para diante e para trás.

Antítese

- Mas não envelheço como cristais do mar. Envelheço como ? Qualquer coisa - quebrada, enrugada. Pensando melhor, uma peça de metal enferrujada. Pode ser uma coisa de valor, metal enferrujado. Podemos trazê-lo da praia para casa e deixá-lo por aí. Um peça ferrujenta tem um núcleo sólido, sadio. Um dia a ferrugem desfaz-se em pó, mas é mesmo assim que as coisas são.
                                                                                                                         B.B.
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Adaptação do artigo de Bernie Bell no blog The Orkney News.
https://theorkneynews.scot/2020/08/29/i-want-to-age-like-sea-glass/

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Recordar os cafés de Ourense



Não sei bem porque gosto de Ourense. Não tem nada de marcante, nem castelos nem palácios nem museus nem concertos, mesmo a catedral é deselegante, pesadona, e o ambiente da cidade é cinzento e pobre, tal como a arquitectura. Tem locais pouco recomendáveis, umas feias ruelas em zigzag cheias de bares (a movida é ali) e uma rua comercial pedonal onde não há quase nada, apenas algumas lojas de cadeia e bancos; nenhuma pastelaria requintada, nenhuma fachada notável, nem sequer livraria ou alfarrabista. Paralela a essa corre uma viela que desagua na Praza do Ferro, um bom ponto de encontro, de onde irradiam as ruas de bares nocturnos - Viriato, Lepanto, Unión. O nosso Viriato. Lepanto foi a batalha em que Carlos V pôs os Turcos fora da Europa, batalha 'na que lutou Cervantes' como diz a placa !

Praza do Ferro

Rua Lepanto

Há um ambiente cordial singular, relaxado como é hábito em cidades pequenas e interiores, pelo facto de ser uma capital que mais parece uma vila crescidinha. Anda-se cem ou duzentos metros e já se atravessou quase tudo, o pequeno emaranhado do centro histórico entre o Jardin de San Lázaro e a Praza Mayor. Lembra Guimarães, mas em mais pobre e mais pequeno.


Os recantos mais agradáveis estão à volta da catedral.


Talvez o que marcava diferença fossem os cafés. Ourense mantinha até há pouco alguns daqueles mágicos cafés "de toda uma vida". Paredes de madeira, mesas de mármore e balcões forrados. Mas estes tempos 'instagram-pandémicos' não se dão bem com casas antigas, para mais mal cuidadas, e o Bohemio fechou, o Real vendeu-se para outra vida. Vou recordar o que era quando lá costumava ir.

Praza Santa Eufemia

Café Latino
Pz. Sta Eufemia / Rúa da Paz



O Latino é o único dos antigos que ainda resta no centro.



Desde 1986, oferece concertos de jazz, integrando um projecto europeu. E oferece, sempre, um leque de jornais.
https://www.facebook.com/pages/category/Coffee-Shop/CAFE-REAL-186982304680406/

Dois cafés na rua da Paz ? Deve ter sido a mais cultural: lá se situa o Teatro Principal, onde tive o gosto de assistir a dois concertos.


O outro café nesta rua era o

Café Bohemio
Rúa da Paz

Numa casa a pedir obras, a sala do café Bohemio precisava de um cuidado restauro, mas o custo era elevado. Fechou.


O recheio era todo em madeira, tampos de mármore. Já não há clientes...

https://www.facebook.com/Caf%C3%A9-Bohemio-624695910991802/



O diminuto Café Asturiano está mais escondido, na lateral rúa Concordia,rua sem graça.


Desde 1942, oferece o melhor café e ambiente de tertúlia. Além da famosa tortilla.


O Asturiano não tem televisão, nem janelas, lá dentro reina uma média luz proveniente da clarabóia, rodeada por plantas de interior.

https://www.facebook.com/cafeasturiano/

Café Gaimola
(esquina do jardim de San Lázaro com a rua de Santo Domingo)

 
https://www.facebook.com/bargaimola/



Um café moderno, de finais do século XX. Sempre cheio e ruidoso. Muitos pequenos almoços aqui tomei, de preferência o excelente chocolate y churros.


A gulodice favorita na Galiza. E a seguir um passeio ate às pontes, para desgastar.

A Ponte Mayor, Ponte Romana ou Ponte Vella, que é de facto medieval (1230) mas reconstruída sobre alicerces romanos.



Ou a bela Ponte do Milénio de 2001 :



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Lembrei-me de Ourense porque é aqui tão perto, sem aflição de gares, sem filas de espera. A curta distância há mais, há a Ribeira Sacra e Castro Caldelas.

domingo, 23 de agosto de 2020

Álvaro Pirez, Alvaro di Piero ou Alvaro Portoghese


"Álvaro Pirez di Évora fu un pittore portoghese documentato in Toscana tra il 1410 e il 1434."

De português só tem o nome (*) e o ter nascido em Évora, por volta de 1370-1380; Álvaro Pirez radicou-se em Itália a partir de 1410, trabalhou em Pisa à volta de 1420, em Volterra (1423), a seguir em Lucca (1424). A sua obra encontra-se espalhada por cidades da Toscânia - Prato, Lucca, Pisa e Volterra, mas também em sítios tão diversos como Berna, Nova Iorque e o Lindenau Museum de Altenburg na Alemanha.

Mestre pintor com domínio e virtuosismo da composição clássica, da nitidez do desenho e da energia da cor, viveu no contexto da pintura italiana, na véspera do Renascimento. Sendo o primeiro pintor português de quem se conhecem obras, é sobretudo um artista de acentuada feição italiana. Foi há pouco a figura central de uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga, que a pandemia me impediu de visitar.

http://www.museudearteantiga.pt/exposicoes/alvaro-pirez-devora

Está assim em curso uma revalorização de Álvaro Pirez, que no Renascimento foi esquecido, desdenhado por Vasari face a Giotto, Fra Angelico ou Ucello; Vasari refere Álvaro Pirez como Alvaro Piero di Portogallo, autor de muitas obras em Volterra e algumas em Lucca, e acha-o desinteressante, pois havia muito melhor.

Quem aqui vem já sabe que não sou crente em fé nenhuma. Esta arte vale pela intensa beleza intemporal, independente da mensagem ideológica que transporta e da qual nos podemos distanciar hoje sem deixar de valorizar a expressão estética dessa ideologia.

Dittico dell'Annunciazione, Galeria Nacional da Úmbria, Perugia (ca.1417-20)

Detalhe do Anjo.

Presentazione al Templo, MoMA de Nova Iorque

Santa Catarina de Alexandria, Museu de Belas Artes de Berna 

Arcangelo Michele

Santa Luzia, 1420



Links:
Pinacoteca Civica di Volterra

Galeria Nacional da Úmbria, Perugia
Catálogo de obras:
https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Alvaro_Pirez_d%27%C3%89vora?uselang=fr

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(*) os muitos nomes, aliás: https://www.wikidata.org/wiki/Q10395841


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

"M'appari" da ópera 'Martha'


Uma breve ária romântica daquelas em que os tenores puxam pelo aplauso.
Do compositor alemão Friedrich von Flotow e das suas muitas óperas - basicamete pastiches melodramático/cómicos franceses do tipo Offenbach - só não foi esquecida esta ária popular da ópera Martha, raramente interpretada.

A acção passa-se em Richmond, Inglaterra, no ano de 1710. Duas jovens aristocratas aborrecidos da vida decidem procurar animação numa feira rural, disfarçadas de criadas, Marta e Julia. Mas Lyonel, um camponês, deslumbra-se com Marta e contrata-a para o seu serviço; Martha será mesmo obrigada, legalmente, a servi-lo como criada por um ano. Entretanto Lyonel perde-se de amores pela servente, ela escapa-se de noite pela janela, e é no seu desespero que Lyonel canta a ária 'M'appari'. Texto xaroposo, mas vale a pena ouvir.

Para além dos óbvios del Monaco, Lanza, Caruso, Pavarotti, Domingos, Alagna, escolho esta interpretação de Vittorio Grigolo:

          M'appari tutto amor
          Il mio sguardo l'incontrò
          Bella si che il mio cor
          Ansioso a lei volò
          Mi ferì, mi invaghì
          Quell'angelica beltà
          Sculta in cor dall'amor
          Cancellarsi non potrà
          Il pensier di poter
          Palpitar con lei d'amor
          Può sopir il martir
          Che m'affanna
          E strazia il cor
          E strazia il cor
          M'appari tutto amor
          Il mio sguardo l'incontrò
          Bella si che il mio cor
          Ansioso a lei volo.

          Marta, Marta, tu sparisti
          E il mio corcol tuo n'ando!
          Tu la pace mi rapisti,
          Di dolor io moriro.
          
Ao vivo, Marcelo Alvarez, entre os melhores:

A ópera Martha tem um happy end meloso do tipo casaram e foram muito felizes, que deve ter ajudado ao grande sucesso popular na época, e a que rapidamente tenha sido esquecida. Nem a abertura de fanfarra se salva.

À maneira antiga, lembremos o mítico Beniamino Gigli, em 1959, ainda havia público para Martha:


Tu la pace mi rapisti !
Bra'vo!

domingo, 16 de agosto de 2020

Otranto, a mais extrema cidade italiana, obviamente preciosa


- viagem simulada, a fingir que fui de férias, quem dera -

Nunca estive no Sul de Itália, para 'baixo' de Roma; ficou uma larga região europeia por conhecer, mas voar para Nápoles foi sempre uma perspectiva desagradável. Como sou admirador de extremos geográficos (não dos outros), atrai-me a ideia de Otranto, cidadezita longínqua no tacão da bota italiana, não muito falada de turistas; uma Itália mais parecida com Malta e Chipre, e que curiosamente esteve ligada ao reino de Aragão (hoje Catalunha).


Otranto é o porto italiano mais próximo da Grécia; daí vem a sua importância histórica, desde os tempos pré-romanos. Está situado onde se convencionou separar o Mar Adriático, para norte, e o Mar Jónico, que banha a costa oriental grega.

Bastione dei Pelasgi, a 'promenade' mais panorâmica.

Otranto foi cidade Grega e Romana, depois Bizantina e Gótica, mais tarde Normanda e Aragonesa! No período romano, era uma das vilas costeiras de Puglia (Apúlia) com maior importância mercantil, famosa na coloração de tecidos com púrpura, destinados à aristocracia (romana e papal) pelo seu custo elevado.

O Castelo de Otranto

A medieval Porta Alfonsina, centro civico de Otranto, com a estátua e a placa aos mártires de 1480.

O Castell Aragonese é uma fortaleza imponente do século XV, em forma pentagonal irregular e circundada por um fosso de protecção.


Em 1228, Frederico II da Suábia, Sacro Imperador de Roma, reforçou a antiga muralha; os Turcos de Maomet II atacaram em 1480, com a violência que se sabe, e ao fim de um ano de cerco a cidade foi saqueada e destruída. Os massacres mataram 12 000 dos habitantes, que eram quase todos. Salvaram-se por milagre os livros do Mosteiro e os mosaicos do chão da Catedral.

Otranto seria libertada no ano seguinte pelos cavaleiros aragoneses, e foi recuperando lentamente. Sob Alfonso de Aragon, duque da Calábria, foram reforçadas as fortificações e foi cavado um largo fosso; os Otomanos ainda tentaram novos assaltos em  1535 e 1537, mas Otranto conseguiu resistir e em 1539 contavam-se já 3 200 habitantes. No século XVI, já sob governo de Espanha, a fortaleza iria adquirir o aspecto actual de planta pentagonal com 4 torres.

Dentro das muralhas encontram-se os tesouros:

A Catedral normanda


Santa Maria Annunziata foi construída no século II sob domínio Normando (pontificava Urbano II). Reflecte as influências bizantina, românica e gótica.


Começada na Idade Média, entre 1080 e 1088, foi terminada por volta de 1165, na transição para o Gótico. Em 1095 daqui partiram 12 000 cavaleiros normandos para as Cruzadas, chefiados por Boemundo d'Altavilla, príncipe de Antióquia.


O reino Normando da Sicília durou apenas 140 anos, no século XII. Esta região formava o Ducado da Calábria, durante um período agitado e confuso, com vários conflitos religiosos e territoriais enquanto decorriam as Cruzadas. Confesso que conheço mal a História deste reinado e do seguinte reinado Aragonês.



No interior merecem atenção o tecto, trabalhado com entalhes dourados, e o chão coberto de um vasto mosaico, da autoria do monge Pantaleone.


Talvez a coisa mais famosa de Otranto seja o mosaico do chão da catedral, de 1163-65, quando a cidade estava sob domínio Normando. O mosaico cobre todo o piso das três naves da igreja e está centrado numa representação da “Árvore da Vida”, à volta da qual se ilustram episódios do Antigo Testamento e dos evangelhos apócrifos.


Desde a cena da expulsão de Adão e Eva do Éden, passando por vários animais e monstros míticos - touro, leviatã, unicórnio, sereia - até à Raínha de Sabá e ao Rei Salomão, Alexandre Magno, o ciclo bretão do Rei Artur, um Calendário astrológico, a torre de Babel - toda uma mitologia bíblica e medieval.

Detalhe; as figuras e desenhos são bastante toscos, mas é o conjunto que constitui uma informação valiosa sobre o Medievo na Puglia.

Grande artigo na Wiki italiana: https://it.wikipedia.org/wiki/Mosaico_di_Otranto

A Basílica bizantina


A valia de Otranto ainda não terminou; no ponto mais alto da cidade, surge a pequena Basilica de S. Pedro, do período Bizantino (séc. IX – X), com planta em cruz grega de três curtas naves e cúpula central; ainda exibe frescos murais bizantinos.


A lavagem dos pés.


O centro histórico intra-muros é um labirinto de ruas estreitas e pracetas: Piazza Basilica, Piazza del Popolo, Largo Cavour, Corso Garibaldi...

Piazza del Popolo e a Torre do Relógio


Travessa do Corso Garibaldi

O Largo Cavour e o café 'Deja Vu', junto ao terraço maritimo

Felizmente os turcos foram de volta com as malas. Espero que também tenham ido da UE, de uma vez por todas, sempre que vieram foi por mal.

Lungomare degli Eroi, o Passeio Marítimo dos Heróis, para que não se esqueça nunca o perigo que veio do mar:


Um terraço de largos horizontes a olhar a Grécia. Apetece. Sonho que seriam umas férias esplêndidas.