segunda-feira, 27 de abril de 2020

Borrowdale Hotel last room, seguido de Honister Pass


O passeio que hoje recordo é já muito antigo, de 1995, no longínquo 'século passado'. Foi uma das primeiras viagens que planeei com alguma antecedência, baseado em mapas, revistas e folhetos; a net ainda nem existia em Portugal, e eu era inexperiente e mal preparado. Nem sequer sabia o que era o Bank Holiday de Agosto, talvez um dia feriado dos bancos...

De Newcastle atravessámos para oeste, para conhecer o Lake District, o quase mítico parque inglês dos lagos.

Entrámos no parque pelo Ullswater. Foi logo um deslumbramento, depois da paisagem feia do interior norte de Inglaterra. Tivemos de seguir em fila pela A592: depois de algumas chuvadas, o sol abriu e a luz era tão intensa que feria a vista; mal dava para ver a extensão azul do lago através do arvoredo que bordava a estrada, criando um efeito fatigante de luz e sombra. Por sorte a fila andava devagar mas certinha, sem ultrapassagens, espaçada. Quando eu podia abrandava, sem gerar protestos.



Entretanto comecei a ler "fully booked" nos hotéis e B&Bs. Vi-me de súbito aflito, sem alojamento, sorry, we're full. Windermere, Grasmere, Keswick, multidões, engarrafamentos e a mesma resposta em cartazes à porta

Resolvemos ir andando para fora das povoações congestionadas, sempre a olhar para os alojamentos ao longo da estrada. Fomos dar a Derwent Water já ao fim da tarde - e se há fins de tarde lindos, é no Lake District. A verdura da floresta aqui é mais densa, e o ar estava mais fresco, sabia bem senti-lo, o trânsito escasseou e deu para aliviar o stress.




Caiu mais uma chuveirada. Depois de uma curva mais surgiu um Borrowdale Hotel. Sem grandes expectativas, saí a correr  à chuva, e havia uma vaga sim, a última, room No.1, quanto ? $$, não me lembro, pareceu-me carito mas decente e aceitei.



Só depois, face à conta, soube que afinal o preço não era por quarto era por pessoa, com jantar incluído (além do breakfast) ! Preço de feriado... Que rombo, o dobro daquilo tudo. Fiquei um bocado abatido, mas conformado: tinha sido a boa solução.


Se o jantar já foi sumptuoso, e fomos o mais tarde que se podia (a sala já estava vazia), o pequeno almoço então pecou por excesso. Nunca tinha feito uma refeição tão luxuosa no serviço e na confecção, servida à mesa numa quantidade desalmada com direito a repetições. Demorei o resto do dia a recompor-me.


O lago junto ao hotel é o Derwent Water, um dos mais bonitos sem dúvida. Depois do café da manhã encontrei uma praiazita de seixos sob o arvoredo com um cenário onde apetecia ficar.



Mais tarde, demos com esta ponte numa pequena localidade chamada Grange.


É de arco duplo sobre o rio Derwent, construída no séc XIX.


De tarde arrancámos em direcção a sudoeste para Buttermere, atravessando o Honister Pass, um dos territórios mais cénicos e bem preservados da região dos lagos. Não escapou a Turner. *


Buttermere é evidentemente um antigo vale glaciar em U.  Várias correntes de água fresca cortam a cobertura de musgo e erva, veludosa à vista, e a estrada percorre-o em curva e contracurva sem fim à vista. A B5289, para recordar, uma das mais belas estradas da Europa.


Aqui sim, já somos só nós e a natureza do Parque. Escapismo puro.
'loneliness, solitude and silence prevail that make the scene unforgettable'. (Alfred Wainwright]


Aaaah como gosto disto. Ou Gostava, sim. Este foi dos melhores.



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* JW Turner,  'Buttermere Lake, with Part of Cromackwater, Cumberland, a Shower'.

sábado, 25 de abril de 2020


O que de melhor aconteceu em 25 de Abril foi Portugal sair de si prório, abrir-se finalmente à Europa e romper com o império colonial podre. A sensação que tenho agora é que mudou de um mundo paralisado a preto e branco para uma explosão de cor cosmopolita, como um quadro de Chagall.

Não falta por aí gente fechada e a preto e branco, abundam nos corredores do poder e da Assembleia da República de alto a baixo. Têm o 25 de Abril na boca, mas são a sua negação visceral. Têm agora também a ajuda do coronavírus, que traz luto e mata a possibilidade de mar, de montanha, de rio, floresta e flores. Forçosamente temporário, temos de o negar com toda a força, e não é fechados em casa que o vencemos.

Et que ton règne recommence !
Liberté, redescends des cieux !


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Prateleiras de leituras, chez moi


A neurose do confinamento em casa tem destes resultados: já cheguei ao ponto de andar a tirar fotografias cá dentro, como estas que aqui ficam de livros favoritos alinhados nas suas prateleiras. Viagens dentro das quatro paredes. Enfim, é a prova de que não falta leitura nesta casa.

Número um, os favoritos dos favoritos, os incontornáveis: Banville, Casares, Hesse, Chesterton, Greene, Borges evidentemente, e Calvino.


Número dois, um cantinho de poesia para revisitação frequente:

Dickinson, Yeats, Whitman, mas também Pessoa, O'Neil.

Alguns clássicos arrumados para sempre (?)

Livros de 'sala', seja isso lá o que for.

Explorações árticas e antárticas.

Só mais esta:
Estante dos científicos: fractais, caos, universo e cosmologia. Decoração não relacionada :)

Afinal, ainda mais uma: Arte, História e Viagens.



E pronto, ficou aqui um pouco da nossa intimidade, um auto-retrato possível; mais longe não irei...

Abrir um deles? Seja o Whitman:


I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars,
And the pismire is equally perfect, and a grain of sand, and the egg of the wren,
And the tree-toad is a chef-d'oeuvre for the highest,
And the running blackberry would adorn the parlors of heaven 

(...)

A grain of sand, hã ?

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Glicínias em festa e nós em luto


A nossa retirada das ruas trouxe muita cantoria de pássaros, é verdade, esta Primavera desastrosa conta pelo menos um ponto a favor. Podia dizer que não há ninguém para os ovir, mas não é verdade - não só os ouço da janela e da varanda, como os ouço durante o 'passeio higiénico' que as autoridades virais (eh eh) autorizam. Melros, então, é uma festa.

Já o mesmo se não pode dizer das flores. Estão todas a abrir, promete ser uma primavera colorida e perfumada, mas sem poder visitar parques e jardins é uma tristeza. Ora acontece que o Parque da Cidade tem estado aberto pela porta das traseiras, que nem toda a população conhece; dá acesso à mercearia Seramota, que já aqui mostrei, e daí acesso a todo o Parque.

Consegui assim visitar o cantinho das glicínias, mesmo 'vedado' com fita para evitar abusos. Ficam aqui fotos a ver se alegram um bocadinho esta recta final do confinamento, pois parece que vamos passar ao estado todos-na-rua-de-máscara. E todos-separados-por-dois-metros. E nada de festivais, futebol, bares nocturnos e são-joões. Que é o estado que devia ter vigorado desde início.

Valham-nos as glicínias, mesmo que vindas da China.




Sua excelência o gato do parque, indiferente a pandemias, satisfeito no seu trono olhando um reino agora vazio de gente.




segunda-feira, 13 de abril de 2020

'Cosi potessi anch'io' de Vivaldi em triplo comparativo; e um extra.


assim pudesse eu também ...
[Alcina]

Esta ária magistral de Vivaldi faz parte da ópera Orlando Furioso, estreada em 1727; era frequente um compositor reutilizar composições suas em diferentes obras, e Vivaldi assim fez. Ouvi Cosi potessi anch'io pela primeira vez num programa da Antena 2 que muitos conhecem - o Questões de Moral de Joel Costa - na versão cantada por Lucia Valentini Terrani, com I solisti Veneti, direcção de Claudio Scimone:



Così potessi anch'io
Goder coll'idol mio
La pace, che trovar non può Il mio cor.

Ma unito alla mia stella,
E perfida, e rubella
Sol tormenti minaccia il dio d'amor.


Esta interpretação portentosa marcou-me tanto que dificilmente me contento com outra.

A primeira alternativa é Sonia Prina, com os Venice Baroque, numa versão mais conforme à renovação 'autêntica' do barroco - ganha precisão e clareza mas perde carga dramática, e o agrupamento não é nenhuma perfeição.



Jenifer Larmore, muito aclamada na récita integral de 2011 no Théatre des Champs Elysées, canta algo insegura e com excesso de vibrato[ária aos 1 : 04]


O Orlando Furioso é uma das grandes óperas do barroco italiano, sobre texto de Ariosto; estreada sem sucesso em 1727, é um longo estudo de amores contrariados e do ciúme, com três horas de duração e vários momentos musicais preciosos.

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Um brinde pascal (para Vivaldianos), ainda do Orlando:

Vivica Genaux e a sua habitual pirotecnia vocal, em
Agitata da due venti, dir. Fabio Biondi




quarta-feira, 8 de abril de 2020

O meu cruzeiro até ao fim do mar: Mo i Modalen.


Viagem para desenjoar de casa.


Nunca fiz um cruzeiro daqueles gigantescos que duram vários dias e param em cidades. Fiz cruzeirinhos - o das ilhas do mar Egeu, o do rio Douro, e este num dos fiordes da Noruega, em 1998. Era um barco bonito de dimensão agradável, com algumas madeiras e cobres polidos, e levou-nos a partir de Bergen até ao Mofjorden, também conhecido como Romarheimsfjorden.


O MS Bruvik estava acostado num cais de Bergen a poucos metros do nosso alojamento. Maravilha. Tudo cómodo, e partiu sem atraso.


O Bruvik *, de 1949, foi readaptado em 1994 para cruzeiros nos fiordes em redor de Bergen, com ida e volta no mesmo dia. Pode acolher mais de 200 passageiros.

Apesar do frio, da maresia e do cheirete a diesel, era no deck ao ar livre que se disfrutava melhor a viagem.

Mo fica no fundo do fiorde, a 100 km de Bergen, umas 3 horas de viagem.


Não se chega a sair para o mar aberto, a navegação faz-se por um largo canal até entrar no fiorde; depois é quase em linha recta, direcção nordeste.

Era um dia de Verão, com sol e alguns chuveiritos, bastante fresco e ventoso. Avisaram-nos para levar agasalho, uma manta seria fornecida.

O Mofjorden é uma canal bastante aberto, ladeado de escarpas florestadas e pouco elevadas; não tem sítios dramáticos como outros mais selvagens, apenas duas referências: o Castelo (ou as Torres) e o Mostraumen.

Slottet (castelo) i Modalen é uma dupla falésia, que deve ter vistas fantásticas lá do alto; cá em baixo impressiona pouco.

Mais interessante é o Mostraumen, um estreito que era antes fechado, ou seja, o fiorde terminava aqui, e depois de um istmo havia um lago onde se situa Mo; em 1913 abriu-se o canal que liga as duas águas, ficando assim o fiorde muito mais profundo.


Um dos trechos mais bonitos do fiorde (foto de https://rodne.no/)


O Mostraumen tem 60 m de largo, e alonga-se por 650 metros.


Pouco depois avistámos Mo, o nosso destino. Grande terra. Consegue ser mais pequena que o nome!

Mas o cenário valia a viagem. Cascata e tudo.

Como não havia refeições a bordo, a maioria dos passageiros foram a um restaurante local, previamente combinado, antes do regresso; para nós o preço era proibitivo, tanto mais que já o passeio era carote. Optámos antes por ficar a passear na terra e arredores, até porque o sol abrira de vez e estava mesmo calor.


O edifício de acolhimento junto ao cais.

Não faltavam recantos bonitos.



Este parece ser o edifício principal da aldeia; é de um fabricante de calçado de couro cosido a mão, deve ser um luxo caro.

Casas de madeira branca, como por toda a Noruega. A densidade nesta região é de 1 habitante por km2.


A igreja e a cascata. Lembrei-me da Senhora da Peneda. A igreja é da mais comum arquitectura neo-gótica de madeira, século XIX.

Uma ponte pênsil liga os dois lados do rio que desagua em Mo, o Modalselva.

Encontrámos uma vereda um pouco íngreme que subia a encosta sul; ainda deu para escalar um bocadinho até termos uma perspectiva

Mas fazia-se tarde. Entretanto o Bruvik, que se tinha afastado para inverter o sentido de viagem, já estava acostado à espera.

Regresso com muito frio.

Não foi grande aventura, não se apreciou nada de histórico, nem houve visitas culturais; nem sequer a gastronomia deu para degustar. Mas valeu pela lufada de ar fresco no rosto, pela lavagem de poeira dos olhos, que voltaram cheios de luz e cor. E como em quase por toda a Noruega, respira-se uma sensação libertadora de Ultima Thule.

Adeus, MS Bruvik barquinho lindo, obrigado pelo passeio.


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* Bruvik é também uma pequena localidade, noutro fiorde próximo de Bergen.