domingo, 29 de dezembro de 2019

A lojinha Seramota, no Núcleo Rural do Parque da Cidade


Há coisas bem pequenitas e sem a importância dos grandes desígnios que contribuem, silenciosa e anonimamente, para a nossa (aaaa...) felicidade. Post de fim-de-ano !


Uma lojita num canto discreto da entrada secundária do Parque da Cidade, pelo núcleo Rural de Aldoar, é um desses sítios. Quando se entra na Loja Seramota estamos de súbito numa gruta de fantasias - lugar comum, se não fosse uma mercearia. Uma muito especial mercearia, arrumada, decorada, bem cuidada, como poucas, e onde se é de súbito envolvido num aroma irresistível de queijos e enchidos. Paredes de pedra nua (casa rural), mesas e prateleiras toscas em madeira. Plástico, só nos saquitos, ainda.

Bananas nas paredes :D

Não se julgue que é só na quadra das Festas; é permanente.

Com tanta abundãncia, apetece brincar; tomar nas mãos e no olfacto os queijos e as tangerinas, as maçãs Bravo e as plantas de cheiro; remexer na cesta das castanhas, sentir as formas, pegar nos frasquinhos de compota e percorrer as variedades de vasos de mel. E perguntar coisas como "este queijito aqui ao ar não ganha bolor?", "ah, e alheira sem farinha, tem ?", "a que horas saem quentinhos os pastéis de Chaves ?" "mmm que cheirinho, não deve ser mau, este salpicão ? ".


Tenho a sorte - nalgumas, poucas, coisas tenho sorte - de a Seramota ficar a 5 minutos a pé, descendo ao Parque. Também, não há mais quase nada, a bem dizer, aqui perto de casa. Ah, sim, árvores, e bastantes !

Vieram de Mirandela, os Seramota, de uma famosa loja de pão.


Não tem multibanco, claro. 


quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Casa da Música 2020, bonjour tristesse


Não vou repetir queixas e lamúrias de 2019 sobre a programação infeliz deste "Ano de França". Deixo só aqui o pouco que seleccionei para minha agenda CdM 2020, que só começa em... Abril!

4 de Abril
Grande Missa K427, de Mozart, dir. Leopold Hager
Katharina Konradi, soprano

8 de Maio
A 9ª Sinfonia de Mahler, dir. Eliahu Inbal

20 de Maio
Grigory Sokolov, a anunciar

22 de Maio
Beethoven, Conc. piano #3 + Brahms, Sinf. #2
dir. e piano de Christian Zacharias

3 de Julho
Haydn, sinf. #74 + conc. p/ violoncelo
Elia Cohen Weissert, dir. Christian Zacharias

11 de Setembro
Triplo concerto de Beethoven
Trio Van Beerle, dir. Michael Sanderling

10 de Outubro
Bach e Telemann, obras orquestrais, violino e oboé
Pedro Castro, dir. Rachel Podger

23 de Outubro
Conc. p/ violino de Mendelssohn
Diana Tishchenko vl. , dir. Eliahu Inbal

31 de Outubro
Sinf. #7 de Beethoven, dir Stefan Blunier

6 de Novembro
Sinf. #1 Titã, de Mahler, dir. Stefan Blunier

14 de Novembro
Missa da Coroação k317, Mozart
Christina Landshamer, dir. Joseph Swensen

Espremidinho, dá uma dúzia de concertos, mas nenhum entusiasmo nem grandes expectativas, a não ser talvez esta última K317 com a Landshamer. Surpresas, só o diálogo improvável de Pedro Castro com Rachel Podger em Bach e Telemann. E é engraçado: no ano da França (ah ah), aproveitam-se concertos de Mozart, Mahler, Beethoven... onde está um Rameau que valha a pena ?

Fica como aperitivo a voz celestial da Landshamer a cantar o Incarnatus est da Missa K427 de Mozart:


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Felix Vallotton, um grande pintor suíço estranhamente ignorado


Este post é oferecido como prenda de Natal aos que aqui costumam vir. 
Boas Festas!

Não sei se faz parte da desvalorização da cultura suíça, uma corrente provinciana que corre há muito sobretudo entre gente intelectual gauche. Se fosse francês, Félix Vallotton seria reconhecido como um génio com galeria em todos os museus, e exposições visitadíssimas. Mas, como Paul Klee, é suíço, logo é menor.

Como Paul Klee, Félix Vallotton é um génio da pintura universal. Nascido em Lausanne, em 1865, Valloton criou uma obra única, num estilo fortemente original e inteligente; provavelmente é isso que não lhe perdoam - é acusado de 'frieza'. Pintou sobretudo paisagens na Normandia - passou muitos anos em Honfleur - e alguns interiores estranhos, intrigantes. Mas viajou por toda a França e Itália, onde também foi buscar inspiração.

Clair de lune, 1894. A Terra a sonhar com a Lua ?

Vallotton começou por trabalhar em gravura a preto e branco; sé em 1899 decide dedicar-se à pintura, sobretudo óleos. Amigo de Bonnard e Vuillard (outro injustiçado), teve uma vida pobre e apagada entre a boémia de Paris até esse ano em que, por casamento, se elevou a um nível de vida "burguês"; afasta-se então dos meios artísticos em voga (a corrente 'nabi'), deslumbrados pelas estampas japonesas, e entrega-se a criar o seu próprio estilo. Abandona os esbatidos e volta-se para Gauguin, para os vitrais, para a explosão da cor em contornos definidos. Valloton, um Gauguin suíço?

Era o fin de siècle, a arte e a vida  fervilhavam nas ruas de Paris; cansado, Valloton abandona a cidade e instala-se em Étretat para uma longa vilegiatura, onde será visitado por Vuillard e Toulouse-Lautrec. Será deste, tanto como de Gauguin, que se irá aproximar na sua pintura.

Étretat fica na Normandia, um pouco a norte de Le Havre, na costa de falésias brancas frente ao Canal.
Sur la plage, 1899

Le ballon, 1899 - Vallotton gostava de experimentar perspectivas em 'plongée' como no cinema nascente; aqui a composição é um achado. A menina do chapéu panamá e os adultos ao longe estabelecem uma narrativa temporal; sob o nosso olhar, o espaço organiza-se numa dança em que participa a menina, as sombras e o balão. Um filme !

No Verão de1900 volta à sua Suíça, para Lausanne, em frente ao lago Léman - sempre junto à água. No regresso, Valloton e a família irão viver por um ano na famosa Honfleur, numa quinta elevada sobre a foz do Sena. Rodeado de vistas extraordinárias, Vallotton vai pintar intensamente por toda a região: o estuário, o porto, o bailado dos barcos, o mar, a praia, as falésias, os bosques e os pomares, as quintas; tal como muitos outros - Turner, Corot, Seurat, Signac, Courbet - Vallotton fica inebriado pelo ambiente pitoresco e ao mesmo tempo cosmopolita, e deixa-se levar.

Le vieux bassin, Honfleur, 1901

Valloton diria mais tarde que nunca se sentira tão feliz; por isso voltaria a Honfleur em 1909. Entretanto, muda-se para uma aldeia na Bretanha, Loquirec, uma pequena e anónima vila termal na baía de Lannion. Mais uma vez, uma vista preciosa, agora sobre a costa do granito rosado, Côtes-d'Armor. E salta de moradia em moradia , sempre no Norte de França: Varengeville, perto da anterior Étretat, marca o regresso à Normandia em 1904. Uma aldeia sobre o mar, já antes visitada por Monet.

Em Varengeville, Valloton está deprimido e desmotivado. Ignora o mar, só passeia pelos campos, mas passa muito tempo em casa, na Villa Les Mesnils, onde pinta cenas de interior; é como se fizesse um traço na sua obra anterior e repartisse do zero.

Salle à manger de campagne, Varengeville, 1904 - uma cena de vida feliz (?) que mais parece um quadro flamengo.

Em crise existencial com a aproximação dos 40, Valloton irá viajar entre 1904 e 1908 pela Suíça, sul de França, Itália, Paris de novo. A inquietação continua, e a obra ressente-se, retratando a crise neurasténica ( La Haine, 1909).

Honfleur, 1909
Villa Beaulieu, Honfleur, 1909 (detalhe).

Finalmente, um bom contrato com uma galeria em 1909 dá-lhe algum ânimo e estimula-o a regressar a Honfleur, agora sem a família. Integra-se na vida social, convive com os locais e explora todos os recantos do território. Volta à paisagem: é agora que pinta algumas das suas melhores obras:
Honfleur et la baie de Seine, 1910

Por esta altura, a cor é o principal tema nos quadros de Vallotton. E se azuis e amarelos são de admirar, os verdes começam a invadir a tela numa grande riqueza de tonalidades.

Le vent , 1910 - Valloton tinha uma paixão pelas árvores e usava o verde com mestria.

Derniers rayons, 1911 - influência japonesa. estudo de verdes, romantismo exacerbado... genial.


A linha de contorno cede lugar à explosão de côr, que é a essência do quadro. As árvores são tema cada vez mais dominante.

Depois de uma viagem à Rússia, em 1913 a família volta a Honfleur. E Vallotton muda de novo radicalmente, do campo para o mar. A partir de 1913, será esse o tema dos melhores quadros.

La grève blanche, 1913 - fantástico ponto de vista, fantástica ondulação diagonal.

E uma das suas obras mais inesperadas e espantosas:

Coucher du soleil, brume jaune et gris, 1913 - abstração e modernidade,  a lembrar Rothko.

1914 é ano de guerra. Vallotton alterna estados de espírito neurasténicos, entre o mau humor de quem sente chegar a velhice, a doença e a guerra mas encontra alguma serenidade na natureza.

Les champs, plateau de la croix rouge, 1914 - uma calma simetria campestre perturbada por sombras negras que atravessam ameaçadoramente.

Paysage breton, 1917, também sombria e pesada, mas que verdes...

A Villa Beaulieu de Honfleur será onde Vallotton sempre regressa e se retempera, o seu cais de abrigo seguro. Aflito com as suas doenças, mesmo assim viaja para a Suíça, visita Dinan e St. Malo, centro e sul de França, à procura de novas paisagens; com regresso, sempre, a Honfleur. E volta a surpreender: sob o desafio de uma encomenda, faz quadros sobre a guerra, extraordinários:

Paysage de ruines et d'incendie, 1914

Verdun, 1917 - uma visão inesperada, com influências do futurismo italiano.

Les Andelys
Na mesma época visita Les Andelys, uma região próxima onde o Sena descreve uma curva pronunciada entre bosques; inspirado, pinta paisagens belíssimas:

La Seine prés Les Andelys, 1916 - um dos meus favoritos, que espantosos verdes sobre azul !

Turner também andou por aqui. E Signac.

Les Andelys foi uma revelação para Vallotton. Ficou fascinado. Lugar histórico de Ricardo Coração de Leão, era para o pintor um cenário perfeito:
- "tudo me agrada, a estrutura do solo, a ordenação das massas e o recorte do rio de margens tão ricas de tonalidades e sombreados".

Soir aux Andelys, 1924  - as horas tardias, a bruma, o sol parece incendiar o bosque e o rio.

Vallotton adorava rios, queria estar sempre perto de água e os rios davam-lhe a luz e os reflexos que procurava. Em 1923 esteve na região do Loire, perto de Nantes, em Le Champalud, onde o rio forma dois braços para contornar uma ilha arenosa.

Des sables au bord de la Loire, 1923 - a sensualidade quase carnal das areias, a delicadeza e suavidade do arvoredo e do rio, a magnificência dos reflexos na água. Obra prima.

E uma das obras geniais de Félix Vallotton, em plena maturidade e total domínio da composição, da paleta de cores, das formas e do desenho:

Un soir au bord de la Loire, 1923 - azuis e alaranjados numa combinação espantosa.

Vallotton também pintou nus (alguns de gosto duvidoso) e naturezas mortas; dois exemplos:

Dame Jeanne et Caisse, 1925

Le Repos, 1911 (detalhe)

Leitura:
Félix Vallotton, Les Paysages de l'émotion
Bruno Delarue, Seuil, 2013











Uma bonita prenda, também, se quiserem !







domingo, 15 de dezembro de 2019

Olivia, cidade-mentira, uma das 'Invisíveis' de Calvino


Já mais de uma vez referi que As Cidades Invisíveis de Italo Calvino é para mim uma das obras primas da literatura de sempre, livro a que sempre regresso e que foi também em parte fundador deste meu Livro de Areia.

Um dos mais geniais textos é o que descreve a imaginada Olívia. Espanta-me como nesta metafórica cidade há tanto das cidades onde actualmente vivemos na Europa, cidades de bem estar, requinte e cultura para muitos, mas de miséria, escravidão no trabalho ou servilismo para muitos outros; são duas cidades numa, e designá-la por um só nome é uma forma de mentira; mas a mentira, diz Calvino, "está nas coisas".

Há um colega bloguista que mostra o Porto nesta duplicidade - Cidade Surpreendente e Cidade Deprimente. Isso aplica-se a muitas outras por essa Europa fora.


[Marco Polo dirige-se a Kublai Khan (1260-1294), o neto de Gengis Khan, Imperador da Mongólia]

As cidades e os sinais.   5.

Ninguém sabe melhor que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. E contudo entre eles há uma relação. Se te descrevo Olívia, cidade rica de produtos e de lucros, para significar a sua prosperidade não tenho outro meio que não seja falar de palácios de filigrana com coxins de franjas nos parapeitos das janelas geminadas; para lá das grades de um pátio, uma girândola de repuxos rega um prado onde um pavão branco abre em leque a sua cauda. Mas deste discurso tu compreendes logo que Olívia está envolvida numa nuvem de fuligem e gordura que se pega às paredes das casas; que no tropel das ruas os reboques em manobra esmagam os peões contra as paredes. Se devo contar-te da laboriosidade dos habitantes, falo das oficinas dos arreeiros odorosas de couro, das mulheres que tagarelam entrelaçando tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as pás dos moinhos: mas a imagem que essas palavras evocam na tua consciência iluminada é o gesto que acompanha o mandril contra os dentes da fresa ao ritmo fixado pelos turnos das equipas de trabalho. Se devo explicar-te de que maneira o espírito de Olívia tem a tendência para uma vida livre e uma civilização requintada, falar-te-ei de damas que navegam cantando de noite em canoas iluminadas por entre as margens de um verde estuário, mas é só para te recordar que, nos subúrbios onde desembarcam todas as noites homens e mulheres como filas de sonâmbulos, há sempre quem  no meio do escuro desate a rir, quem dê o sinal de partida às brincadeiras e aos sarcasmos.

Isto talvez tu não saibas: que para falar de Olívia não poderia fazer outro discurso. Se houvesse uma Olívia realmente de janelas e pavões, de arreeiros e tecelões de tapetes e canoas e estuários, seria um miserável buraco negro de moscas, e para o descrever deveria recorrer às metáforas da fuligem, do chiar das rodas, dos gestos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso, está nas coisas.



Há dias em que é assim que sinto a minha cidade. E cada vez mais.


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

King's Lynn, o entreposto da Liga Hanseática em Inglaterra.


Costumo aqui descrever sítios onde estive e onde gostei de estar, ou sítios onde nunca estive mas gostava de ter visitado. Este hoje é diferente: um sítio onde estive mas não gostei, por razões imponderáveis, e reconheço agora, vendo o que não vi, o quanto errei.

Foi uma visita estragada, durante umas férias baseadas em Cambridge. Já depois de ter a sorte de visitar Ely, a mais bela catedral onde já entrei, chegou o dia de ir para norte até King's Lynn, que eu já sabia ter sido porto hanseático; e então desatou a chover a cântaros. Chegámos lá quase sem visibilidade, era impossível sair à rua sem ficar a pingar. Lembro-me só de ter dado umas voltas de carro no centro, mal disposto e enervado, e ter decidido que era tudo feio, escuro e abandonado, não valia a pena; mas nos anos seguintes acabei por saber que fiz muito mal, que devia ter insistido uma segunda vez. King's Lynn, fundada em 1095, é uma preciosidade da era Hanseática, o único balcão (kontor) da Liga de que ainda restam edifícios significativos em Inglaterra.

É essa não-visita que quis contrariar com esta reportagem, colhida em viagem nas ondas www.


Na foz do rio Ouse, King’s Lynn estava bem situada: no extremo ocidente da zona de tráfego marítimo da Hansa. Do século XIV até ao séc. XVI, por razões estratégicas, King's Lynn estabeleceu uma rota de previlégio com Dantzig, embora também negociasse com Bergen e Lübeck. Foram os negociantes de Dantzig que instalaram o kontor da liga junto ao porto.

South Gate – a porta medieval (séc. XIV) ainda marca a entrada na cidade.

King's Lynn, Norfolk - Reino Unido

Coordenadas; 52° 45' N, 0° 24' E
População: 43 000

O velho porto com a Custom House. Lynn significa "lagoa". Algo como 'Lagoa d'El Rei'.

A Custom House (Alfândega) é o edifício mais marcante de King's Lynn; está situada junto ao antigo cais no rio Ouse, o Purfleet Quay, que desde a Idade Média era o principal ancoradouro. A casa da Alfândega funciona agora como Museu Marítimo e posto de Turismo.

Purfleet Quay, o cais medieval onde no século XIV se estabeleceu o Kontor da Hansa.

Estátua de George Vancouver, navegador e explorador, e no lado oposto Staithe Square, a praça cívica. Por trás corre Nelson Street.



À beira das águas e junto à Praça do Mercado, a casa da Alfândega foi construída em 1685, após o fim da Liga, para servir a agremiação dos comerciantes locais. Passou a ser o lugar das transacções, uma 'bolsa' de milho, vinho (de Portugal), sal, peixe, madeira, cera, carvão e lã.


Posto da Liga Hanseática

Durante o Festival da Hansa em 2017, uma embarcação restaurada saúda a cidade do Ouse.

King’s Lynn juntou-se à Liga Hanseática em 1271; no século XIV era o maior porto oriental e o terceiro do Reino. Os mercadores enriquecidos investiram em boas casas, e até final do século XVI a cidade foi crescendo com a importação de carvão e vinho e a exportação de milho.


Com o fim da Hansa e a descoberta da América a benefeciar os portos da costa Oeste, a cidade voltou-se para outros mercados, sobretudo Portugal e França, mas foi perdendo protagonisno até ao século XIX. Nem sequer beneficiou de actividade fabril: a linha férrea construída em 1840 passava ao lado, agravando a perda de importância estratégica do porto. Só no fim do século XIX, na era Victoriana, recuperaria em parte com o negócio do carvão, madeira e cereais, e com a construção de novas docas (1869); passaria de uma cidade de comerciantes a uma cidade industrial.

À entrada de Nelson Street, uma casa do séc. XV conhecida como 'Valiant Sailor'.

Nelson Street, rua histórica.

Hanse House
Pouco mais à frente, em Nelson Street, surge um edifício único no país e raro na Europa: a Casa da Hansa, ou armazém Hanseático.


Construída em 1475, ficou pelo tratado de Utrecht a pertencer aos comerciantes germânicos e prussianos de Dantzig que geriam a Liga; à volta de 1500 eles eram uns 40, o que mostra a importância do posto inglês. Só em meados do século XVIII a posse seria transferida para os munícipes de King's Lynn.


Ao longo dos séculos seguintes foram feitas alterações e ampliações. Perderam-se as empenas medievais. O edifício serviu sucessivamente como destilaria, celeiro, escola e residência na era Victoriana. E agora, café, sala de chá e loja de produtos artesanais. O habitual, nos tempos que correm.


Agora serve para casamentos, festas e palestras.


Ainda em Nelson Street, mas já no séc. XVIII, a casa da abastada família Browne exibia assim o status de cinco gerações no negócio:


Ye Old Lattice Inn, Chapel Street


A Lattice House é uma casa de enxamel do século XV, mostrando a prosperidade de um comerciante que nela instalou três lojas; desde 1714 foi convertida em estalagem e pub.


Renovada, é agora um dos pubs mais bonitos da cidade.



Greenland Fishery, Bridge street

Fica mais para sul, e foi construída muito mais tarde (1605-1608) já perto do declinío de King's Lynn pelo comerciante John Atkin. Outro belo edifício classificado que foi objecto recente de restauro para novas funcionalidades.

O nome deve-se a ter sido a sede de uma companhia de pesca da baleia que operava na Gronelândia. Um comércio que sucedeu à Liga: a frota de baleeiros partia em Março e voltava em Agosto, entre 1760 e 1830.



No interior resistiram alguns frescos do séc. XVII simulando um painel de mosaico.


Voltando para a área central, Queen Street:

Queen Street é uma das ruas mais antigas, com várias casas georgianas classificadas; abre para a 'Saturday Market Place', Praça do Mercado de Sábado.

The Old Guildhall
Saturday Market Place

Nesta praceta funcionava o mercado medieval, desde ca. 1100.


À saída de Queen Street, e frente à Igreja, fica o mais surpreendente edifício de King's Lynn: a antiga Câmara (Town Hall), ocupando a Casa da Guilda gótica, de 1421, com uma vistosa fachada de tijolo em padrão tabuleiro-de-xadrez, e um pórtico adicionado em 1624.

À direita, a Trinity Guild e a sua janela gótica, a construcção original de 1421; a meio, o pórtico adicionado em 1624, e à esquerda a Assembly Room de 1767.

A Guildhall, num estilo arquitectónico vindo dos Países Baixos, começou por ser o lugar de encontro da Guilda dos Mercadores, mais conhecida como Trinity Guild. Mas foi sendo ampliada com edificações anexas, que formam um complexo arquitectónico único, à volta da praceta onde funcionava o mercado dos Sábados. A Assembly Room foi completada em 1768, é já um edifício da era georgiana.
http://www.kingslynntownhall.com/townhall/history/
Uma parte do complexo é utilizada como sala de concertos, outra como salão de festas.

Assembly Room e Card Room

A vista de College Lane. mesmo em frente.

O pórtico adicionado em 1624, no reinado de James I.

Detalhe da decoração em xadrez da fachada.

A taça ornamentada do 'infame' Rei João (King John's Cup, c.1325), uma preciosidade de prata, ouro e jóias que faz parte do 'tesouro' da Guildhall.

Sala victoriana (Assembly Hall).


A Igreja de Sta Margarida data de 1101, mas da edificação original normanda quase nada resta. Tal como nada resta da reedificação no séc. XIII, a não ser a arcada da capela-mor. Desde o século XV, o a riqueza dos mercadores da cidade financiou vários restauros e 'embelezamentos'.

Impressiona a sua dimensão numa cidade modesta, mais um sinal da riqueza e importância que teve noutras épocas.


Relógio de lua e marés, na torre da direita; as marés foram sempre uma preocupação grande dos habitantes, devido à sua grande amplitude nesta costa.

Entrando na igreja, logo são visíveis as marcas das grandes inundações - o nível da maré viva de 2013 ultrapassa a de 1978, mas entretanto tinham sido construídas  defesas mais eficazes.

A nave foi completamente reconstruída depois de uma derrocada em 1741.


O interior não é especialmente notável, a não ser talvez pelas misericórdias esculpidas nos assentos de madeira da capela-mor.

Cadeiras da capela-mor com talha do século XIV.



No século XIX a igreja foi de novo amplamente restaurada e decorada ao gosto Victoriano, com vitrais como este:

St. Margaret's Place é uma praceta onde também vale a pena parar; em frente à igreja há uma bela casa georgiana:

The Corn Exchange (Mercado do Milho)

Tuesday Market Place

De 1854, é o melhor exemplar de arquitectura Victoriana na cidade, encimado por Demeter (Ceres), a deusa das colheitas. O milho foi a maior exportação de King's Lynn entre os séculos XVI e XVIII.

Foi convertida num grande sala de concertos, a melhor da cidade.


A King's Lynn comercial

High Street, a rua comercial, é onde costuma haver mais gente e animação.

Além de ser pedonal, ainda mantém casas que vão do Tudor ao Eduardiano.

Café & Bakery Nurbury's, Tower Street.

Antes de acabar, convém referir que o porto continua muito activo, tanto as docas de carga como as docas de pesca.
Fisher Fleet Docks.

----------------------------------
Ainda hoje me arrependo de ter falhado vergonhosamente este tesouro inglês da Hansa. Essa Liga de Cidades que foi talvez o primeiro esboço de CEE/União Europeia, uma união comercial e fiscal à volta do Mar do Norte que se estendeu a sul, em França até La Rochelle; a norte, até Bergen e as ilhas Shetland (Symbister); a leste, para lá dos países bálticos. Um todo coerente até na impressionante unidade arquitectónica: os postos da Liga Hanseática eram inconfundíveis.

O passeio marginal do Ouse para sul.

Vista do Bank House Hotel para a Staithe Square.


Estivesse King's Lynn numa rota turística, e seria invadida diariamente por camionetas e caravanas, perdido o sossego onde ainda se respiram tempos passados. Espero que continue livre disso.

Alas, fica para a próxima vida. Quem puder, num dia soalheiro, dê lá um salto - 2 horas de combóio desde Londres, só 1 hora de Cambridge.

Mais:
http://www.docbrown.info/docspics/eastern/eapage03.htm