quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Felix Vallotton, um grande pintor suíço estranhamente ignorado


Este post é oferecido como prenda de Natal aos que aqui costumam vir. 
Boas Festas!

Não sei se faz parte da desvalorização da cultura suíça, uma corrente provinciana que corre há muito sobretudo entre gente intelectual gauche. Se fosse francês, Félix Vallotton seria reconhecido como um génio com galeria em todos os museus, e exposições visitadíssimas. Mas, como Paul Klee, é suíço, logo é menor.

Como Paul Klee, Félix Vallotton é um génio da pintura universal. Nascido em Lausanne, em 1865, Valloton criou uma obra única, num estilo fortemente original e inteligente; provavelmente é isso que não lhe perdoam - é acusado de 'frieza'. Pintou sobretudo paisagens na Normandia - passou muitos anos em Honfleur - e alguns interiores estranhos, intrigantes. Mas viajou por toda a França e Itália, onde também foi buscar inspiração.

Clair de lune, 1894. A Terra a sonhar com a Lua ?

Vallotton começou por trabalhar em gravura a preto e branco; sé em 1899 decide dedicar-se à pintura, sobretudo óleos. Amigo de Bonnard e Vuillard (outro injustiçado), teve uma vida pobre e apagada entre a boémia de Paris até esse ano em que, por casamento, se elevou a um nível de vida "burguês"; afasta-se então dos meios artísticos em voga (a corrente 'nabi'), deslumbrados pelas estampas japonesas, e entrega-se a criar o seu próprio estilo. Abandona os esbatidos e volta-se para Gauguin, para os vitrais, para a explosão da cor em contornos definidos. Valloton, um Gauguin suíço?

Era o fin de siècle, a arte e a vida  fervilhavam nas ruas de Paris; cansado, Valloton abandona a cidade e instala-se em Étretat para uma longa vilegiatura, onde será visitado por Vuillard e Toulouse-Lautrec. Será deste, tanto como de Gauguin, que se irá aproximar na sua pintura.

Étretat fica na Normandia, um pouco a norte de Le Havre, na costa de falésias brancas frente ao Canal.
Sur la plage, 1899

Le ballon, 1899 - Vallotton gostava de experimentar perspectivas em 'plongée' como no cinema nascente; aqui a composição é um achado. A menina do chapéu panamá e os adultos ao longe estabelecem uma narrativa temporal; sob o nosso olhar, o espaço organiza-se numa dança em que participa a menina, as sombras e o balão. Um filme !

No Verão de1900 volta à sua Suíça, para Lausanne, em frente ao lago Léman - sempre junto à água. No regresso, Valloton e a família irão viver por um ano na famosa Honfleur, numa quinta elevada sobre a foz do Sena. Rodeado de vistas extraordinárias, Vallotton vai pintar intensamente por toda a região: o estuário, o porto, o bailado dos barcos, o mar, a praia, as falésias, os bosques e os pomares, as quintas; tal como muitos outros - Turner, Corot, Seurat, Signac, Courbet - Vallotton fica inebriado pelo ambiente pitoresco e ao mesmo tempo cosmopolita, e deixa-se levar.

Le vieux bassin, Honfleur, 1901

Valloton diria mais tarde que nunca se sentira tão feliz; por isso voltaria a Honfleur em 1909. Entretanto, muda-se para uma aldeia na Bretanha, Loquirec, uma pequena e anónima vila termal na baía de Lannion. Mais uma vez, uma vista preciosa, agora sobre a costa do granito rosado, Côtes-d'Armor. E salta de moradia em moradia , sempre no Norte de França: Varengeville, perto da anterior Étretat, marca o regresso à Normandia em 1904. Uma aldeia sobre o mar, já antes visitada por Monet.

Em Varengeville, Valloton está deprimido e desmotivado. Ignora o mar, só passeia pelos campos, mas passa muito tempo em casa, na Villa Les Mesnils, onde pinta cenas de interior; é como se fizesse um traço na sua obra anterior e repartisse do zero.

Salle à manger de campagne, Varengeville, 1904 - uma cena de vida feliz (?) que mais parece um quadro flamengo.

Em crise existencial com a aproximação dos 40, Valloton irá viajar entre 1904 e 1908 pela Suíça, sul de França, Itália, Paris de novo. A inquietação continua, e a obra ressente-se, retratando a crise neurasténica ( La Haine, 1909).

Honfleur, 1909
Villa Beaulieu, Honfleur, 1909 (detalhe).

Finalmente, um bom contrato com uma galeria em 1909 dá-lhe algum ânimo e estimula-o a regressar a Honfleur, agora sem a família. Integra-se na vida social, convive com os locais e explora todos os recantos do território. Volta à paisagem: é agora que pinta algumas das suas melhores obras:
Honfleur et la baie de Seine, 1910

Por esta altura, a cor é o principal tema nos quadros de Vallotton. E se azuis e amarelos são de admirar, os verdes começam a invadir a tela numa grande riqueza de tonalidades.

Le vent , 1910 - Valloton tinha uma paixão pelas árvores e usava o verde com mestria.

Derniers rayons, 1911 - influência japonesa. estudo de verdes, romantismo exacerbado... genial.


A linha de contorno cede lugar à explosão de côr, que é a essência do quadro. As árvores são tema cada vez mais dominante.

Depois de uma viagem à Rússia, em 1913 a família volta a Honfleur. E Vallotton muda de novo radicalmente, do campo para o mar. A partir de 1913, será esse o tema dos melhores quadros.

La grève blanche, 1913 - fantástico ponto de vista, fantástica ondulação diagonal.

E uma das suas obras mais inesperadas e espantosas:

Coucher du soleil, brume jaune et gris, 1913 - abstração e modernidade,  a lembrar Rothko.

1914 é ano de guerra. Vallotton alterna estados de espírito neurasténicos, entre o mau humor de quem sente chegar a velhice, a doença e a guerra mas encontra alguma serenidade na natureza.

Les champs, plateau de la croix rouge, 1914 - uma calma simetria campestre perturbada por sombras negras que atravessam ameaçadoramente.

Paysage breton, 1917, também sombria e pesada, mas que verdes...

A Villa Beaulieu de Honfleur será onde Vallotton sempre regressa e se retempera, o seu cais de abrigo seguro. Aflito com as suas doenças, mesmo assim viaja para a Suíça, visita Dinan e St. Malo, centro e sul de França, à procura de novas paisagens; com regresso, sempre, a Honfleur. E volta a surpreender: sob o desafio de uma encomenda, faz quadros sobre a guerra, extraordinários:

Paysage de ruines et d'incendie, 1914

Verdun, 1917 - uma visão inesperada, com influências do futurismo italiano.

Les Andelys
Na mesma época visita Les Andelys, uma região próxima onde o Sena descreve uma curva pronunciada entre bosques; inspirado, pinta paisagens belíssimas:

La Seine prés Les Andelys, 1916 - um dos meus favoritos, que espantosos verdes sobre azul !

Turner também andou por aqui. E Signac.

Les Andelys foi uma revelação para Vallotton. Ficou fascinado. Lugar histórico de Ricardo Coração de Leão, era para o pintor um cenário perfeito:
- "tudo me agrada, a estrutura do solo, a ordenação das massas e o recorte do rio de margens tão ricas de tonalidades e sombreados".

Soir aux Andelys, 1924  - as horas tardias, a bruma, o sol parece incendiar o bosque e o rio.

Vallotton adorava rios, queria estar sempre perto de água e os rios davam-lhe a luz e os reflexos que procurava. Em 1923 esteve na região do Loire, perto de Nantes, em Le Champalud, onde o rio forma dois braços para contornar uma ilha arenosa.

Des sables au bord de la Loire, 1923 - a sensualidade quase carnal das areias, a delicadeza e suavidade do arvoredo e do rio, a magnificência dos reflexos na água. Obra prima.

E uma das obras geniais de Félix Vallotton, em plena maturidade e total domínio da composição, da paleta de cores, das formas e do desenho:

Un soir au bord de la Loire, 1923 - azuis e alaranjados numa combinação espantosa.

Vallotton também pintou nus (alguns de gosto duvidoso) e naturezas mortas; dois exemplos:

Dame Jeanne et Caisse, 1925

Le Repos, 1911 (detalhe)

Leitura:
Félix Vallotton, Les Paysages de l'émotion
Bruno Delarue, Seuil, 2013











Uma bonita prenda, também, se quiserem !







2 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado Mário, é mais um "post" fantástico e uma excelente prenda de Natal. Boas Festas e Bom Ano para si, para a Família e para este excepcional Livro!

Belinha Fernandes disse...

Maravilhosa, esta postagem! Ao contrário de Turner, cuja obra e vida conheço muito bem, desconhecia este pintor! Gostei imenso das obras aqui reproduzidas e do seu relato. Antes do ano terminar, vou fazer um destaque para esta postagem, e o seu blogue, no meu. (O seu blogue e o Bucólico anónimo são os meus favoritos deste ano. Não digo isto para engraxar, é a verdade. Apenas me penalizo por não visitar mais vezes.) Será o meu presente para si, em agradecimento pelo excelente conteúdo que sempre nos apresenta! Desejo um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!