segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A Sonata K.165 de Scarlatti - em guitarra por Merce Font


As sonatas para teclado de Scarlatti constituem uma das mais belas heranças musicais do século XVIII. Ao cravo, ao piano ou na guitarra, soam diferentes mas (se bem tocadas) com o misto de ligeireza e complexidade, graça e melancolia, que são típicas de Scarlatti. Recentemente ouvi Sokolov tocar algumas no piano, ao vivo; agora é Merce Font quem me surpreende com esta excelente gravação para guitarra, uma transcrição que me deixou agarrado. 'Como quem sorri com lágrima ao canto do olho', escreveu alguém.

Ouçamos:



Depois desta, uma interpretação ao piano quase parece pobre.
Para comparar, Carlo Grante:


Merce Font:
https://www.mercefont.com/

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A casa-museu Viking de Borg, Vestvågøya, Lofoten


Um museu improvável.

Vista da estrada E10 em Vestvågøya.

Fica acima dos 68° N o mais perfeito exemplar de casa longa (langhus) Viking, reconstruída de acordo com os dados recolhidos na área. Numa região que até há pouco era demasiado fria (mesmo no século XX), quase só residem comunidades piscatórias pelo bacalhau, mas também pelo halibute, entre outros. E alguns artistas, por opção.


Seriam as Lofoten mais temperadas no 1º século? A verdade é que a comunidade Viking se adaptou e cresceu nesta ilha. Devia ser uma gente estranha aos nossos olhos actuais; despojada ao ponto de viver com mínimos quase insuportáveis de conforto, sem lenha para aquecer*, sem campos para cultivar, criando rebanhos de cabras e ovelhas e colhendo o que o mar oferece.  No outro lado do viver espartano estava o gosto pela aventura de cruzar os mares - hoje já se sabe que foram até altas latitudes do Canadá, muito acima da Anse aux Meadows, e para Oriente contactaram as civilizações asiáticas, de onde trouxeram joalharia. Sobretudo, o mar também lhes facultava os saques costeiros, claro. Para escapar à quase miserável rotina diária, onde eles mais investiam era na construção naval, nos famosos drakkars conhecidos em todos os mares do Norte.

Esta bela casa-museu fica em Borg, Vestvågøya, na estrada E10 (mais bem denominada como Vikingveien), junto ao fiorde de Borg (Borgfjord).

A casa
(e tem uma árvore !)

O barco

Casa / barco formam uma unidade logística indissociável, como que um sendo o 'inverso' do outro, o abrigo em terra e o abrigo no mar. Não sei se é acaso, mas a cultura tem coisas destas.


Sabe-se que existiram entre 500 e 900 DC várias casas familiares, rodeadas de pastos e rebanhos. Esta era enorme - 83 metros por 9 de altura ! A que existe foi reconstruída ao lado da original, de que ainda se vêm os tocos de madeira.

Tinha cinco divisões, incluindo dormitórios, área de trabalho, armazém e arrumos, sala de negócios e salão de refeições. O que terá acontecido cerca de 900, quando a casa foi abandonada, não se sabe; é provável, segundo o Museu, que tenham todos emigrado para a Islândia.

Entremos na casa que é o Lofotr Vikingmuseum.


É a casa de um Chefe, onde vivia com uma família alargada. Aqui não havia povoações, os 'clãs' eram constituídos por algumas dezenas de pessoas.


Ao centro, o fogo sempre aceso. As peles e o peixe ficavam suspensos por perto a secar.


A estrutura da casa está suportada por fortes vigas de madeira esculpida.



Junto às camas havia teares - fabricar vestimentos era uma das actividades permanentes. Aqui não faltavam ovelhas e cabras.



Da parte masculina, elmos e espadas, e os deuses do culto nórdico.



Um Freyr, divindade nórdica associada à fertilidade.


Descendo até ao cais no Borgfjord, encontramos a segunda casa, 'casa de viagem' :



Sempre a sonhar com terras distantes...



Como já disse, no 1º século que o Museu documenta a ilha devia estar quase sempre gelada ou nevada. A madeira vinha certamente de longe - mais a sul ou no interior.




Longínquo, inesperado e algo enigmático, é um museu que eu bem gostaria de ter visitado.

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Vestvågøya é uma das ilhas Lofoten, o arquipélago onde alguns situaram a Ultima Thule de Pytheas e de onde desde o séc. XIX nos chegava grande parte do pescado da Noruega.


* só a madeira que o mar traz à praia

domingo, 20 de outubro de 2019

As almofadas bordadas de Winchester e um livro de Tracy Chevalier



Foi esta almofada de joelhos na catedral de Winchester que inspirou "A Single Thread", de Tracy Chevalier, livro à volta do trabalho das bordadeiras durante a  2ª Guerra Mundial. Com os maridos ausentes (a combater, mutilados ou falecidos), as mulheres solitárias da cidade eram uma força de trabalho disponível; dactilografia ou bordados ocupavam os tempos vazios e davam um rendimentozito de sobrevivência. A Guilda das Bordadoras (Broderers' Guild) foi fundada em 1931.

A lembrar uma tapeçaria de millefleurs

Várias vezes no Reino Unido admirei as almofadas bordadas nas igrejas, por vezes com padrões requintados. Não percebo nada de bordados, claro, mas aprecio este requinte. Vejamos algumas das mais de 600 de Winchester, a maioria do século XIX:

Esta é de sentar; ajuda a aguentar sermões longos e palavrosos.

Vários reis merecem homenagem - não falta o Rei Artur, com a Excalibur a erguer-se do lago.

Henrique VII , vencedor de Ricardo III em 1485, a terminar a 'Guerra das Rosas'.

Em 1194 Ricardo 'Coeur de Lion' foi re-coroado na Catedral de Winchester. Repare-se na variedade de texturas.
Dedicada a Florence Nightingale, séc XIX

Esta parece maçónica ! Dedicada aos pedreiros, carpinteiros, ferreiros e vidraceiros que embelezaram a catedral.

O belo coro da catedral, um bordado em madeira e ferro.

Quanto ao livro "A Single Thread", não é obra literária brilhante, mas vale pelo relato detalhado  e bem estudado de uma situação e de uma actividade poucas vezes abordadas, e oferece uma viagem histórica (e pessoal) pelo Hampshire.

"Sempre que entrava pela porta da frente sob o grande janelão a poente, a longa nave diante dela e o vasto espaço por cima até à espantosa abóbada do tecto, Violet sentia sobre si o peso dos novecentos anos do edifício, e sentia vontade de chorar. (...) Era mais por reverência ao lugar em si, por saber dos muitos milhares de pessoas que por ali andaram ao longo da história, à procura de um sitio onde pudessem estar à vontade para considerar as grandes questões da vida e da morte em vez de se preocuparem com o preço do carvão nessse inverno, ou com a falta de um  casaco novo.

Não rezava, nem ouvia as orações - as orações tinham morrido na Guerra junto com George e Laurence e toda uma nação de jovens. Mas quando se sentava nas cadeiras do côro, gostava de estudar os arcos esculpidos em madeira de carvalho por cima dela, decorados com folhas e flores e animais e até um Homem Verde cujo bigode se transmutava em folhagem abundante. "


As catedrais são cápsulas do tempo, como é sabido. Da carpintaria aos vitrais, das colunas e arcos aos túmulos e aos altares, tudo é legado de um tempo passado; os bordados das almofadas e das bandeiras fazem parte desse legado.


No livro de Tracy Chevalier, isto é só ponto de partida para uma viagem. Violet, a protagonista, irá à aventura percorrendo trilhos, campos, pontes, aldeias e estalagens como quem borda, ao caminhar, um padrão de vida que deixa linhas tecidas num mapa. Ou uma Árvore de vida.


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Schicksalslied, a Canção do Destino de Brahms


Há os génios, ponto, e há os génios que amamos. J'aime bien Brahms, desde a 1ª sinfonia aos concertos de piano, passando pelos Intermezzi ... e chegamos à música coral.

Ao que venho hoje, é à canção coral Schicksalslied (Canção do Destino), de 1871. O texto de Hölderlin, da novela Hyperion, foi inspirado pela resistência e luta pela independência do povo Grego depois de três séculos e meio de submissão ao poder Otomano; Hyperion é o herói grego, que neste texto poético reflecte sobre a indiferença dos antigos deuses da Grécia ao sofrimento dos humanos de 'hoje'. Na Alemanha e Áustria havia uma grande corrente de simpatia pelo povo grego, alimentada pelo desamor aos turcos e pela descoberta das riquezas históricas.

O poema começa nas alturas cósmicas, com um hino às divindades gregas, à sua gloriosamente feliz estadia nos campos Elísios. Mas o pior vem depois, quando passa aos nossos males terrenos: nós hoje sofremos, caímos, cegamos, ano após ano, como água que se precipita fraga após fraga, nas profundezas do Desconhecido.

O texto original é fácil de encontrar; uma tradução inglesa decente:

   You wander gladly in light,
   on soft grounds, blessed Spirits!

   Shimmering celestial airs
   touch you gently,
   like fingers playing art
   on sacred strings.

   Free from fate, like a sleeping
   infant, breathe the heavenly;
   Kept chaste
   in modest blossoms,
   flowering for ever
   their eternal soul,
   and their blissful eyes
   gazing in quiet,
   eternal shine.

   But to us is given
   no haven to rest;
   faltering, falling,
   the suffering mankind
   is blinding from one
   hour to the other,
   like water from cliff
   to cliff rushing down,
   years-long, into the unknown.


A música lembra trechos do seu Requiem, e outros da Missa Solene de Beethoven. Mas tem um enorme poder de síntese, num discurso de intenso dramatismo; Brahms não escreveu Ópera, mas este cântico tem estrutura e drama quanto baste; faz uma narrativa universal em quinze minutos. Genial é a coda final, repetindo o tema de abertura só com a orquestra, sem texto, no que é um dos mais belos e intrigantes finais da História da Música.  Não pode ser um final feliz, evidentemente, mas ainda assim é de uma serenidade ... divina. É Brahms, lá alto nos Elísios. E será uma das mais sublimes obras "curtas" de todos os tempos.

Tendo a escolher como melhor gravação esta de Herreweghe com o Collegium Vocale de Ghent: precisão e limpidez, e alguma leveza, sem deixar de ser intensa. Quase perfeita.




Mas Herbert Blomstedt está também no topo da lista: lentíssimo (17 minutos), majestoso, muito meditativo, uma abordagem com 'gravitas' mais alemã, uma grande orquestra (San Francisco). Igualmente admirável, não podia ser mais diferente.




Mais vivo e urgente, Kurt Masur dirige a NYPO quase como se fosse Bernstein. Há desequilíbrios na gravação de 1996, mas pesada não é, parece que estamos a ouvir Mahler. Uma audição alternativa.

E uma boa gravação recente é a de Ticciati com a Sinfónica de Bamberg (digital, 2010).


domingo, 13 de outubro de 2019

Tempo para plantar lágrimas, por Elizabeth Bishop


Sestina, de Elizabeth Bishop, é um poema de mágoa e abandono e privação e tudo o que de mais triste pode acontecer na vida ( excepto, talvez, guerra), e Bishop di-lo de forma belíssima. O poema encontra-se facilmente com uma procura online, e como é um pouco longo dispenso-me de aqui publicar o original. Como é hábito, tentei à minha maneira traduzi-lo, perdendo ritmo e musicalidade, efeitos fonéticos e a elegância da língua inglesa - mas procurando transmitir o melhor possível aquilo que o poema exprime de situação, sentimentos, emoções. E mantendo a forma !

Porquê 'Sestina'?  A Sextina é uma forma poética em 6x6, em que a última palavra de cada verso é repetida na estrofe seguinte, conforme um esquema complexo atribuído a Arnaut Daniel, um trovador Provençal do século XII. A Sextina foi adoptada em Itália e praticada por poetas como Dante e Petrarca, e cá por Luís de Camões.

Bishop consegue escrever um poema comovente sem que nos demos conta dessa estrutura rígida, tanto mais que é autobiográfico. É o único que conheço que se constrói à volta de um almanaque.



Cai a chuva de Setembro sobre a casa.
Na luz trémula, a idosa avó
senta-se na cozinha com a criança
junto ao calor do pequeno fogão,
a ler as anedotas do almanaque,
rindo e falando para esconder as lágrimas.

Acha ela que essas equinociais lágrimas
e a chuva a bater no telhado da casa
foram ambas previstas no almanaque,
mas apenas as experimenta uma avó.
A chaleira de ferro canta sobre o fogão.
Ela corta algum pão e diz à criança,

Agora é hora do chá; mas a criança
está a ver a chaleira vertendo lágrimas
que dançam loucas sobre o escaldante fogão,
tal como a chuva dança ao cair sobre a casa.
Tratando de arrumar, a velha avó
Vai pendurar o sábio almanaque

na sua corda. Como um pássaro, o almanaque
pende meio aberto sobra a criança,
pende por cima da velhinha avó
e a sua chávena de chá com escuras lágrimas.
Estremece e diz que lhe parece a casa
fria, e leva mais madeira para o fogão.

Assim tinha de ser, diz o pequeno fogão.
Eu cá bem sei, diz o almanaque.
Com lápis a criança desenha uma sólida casa
E um caminho ondulante. Depois a criança
faz um homem com botões como lágrimas
E mostra-o com vaidade à velha avó.

Mas secretamente, enquanto a avó
Se ocupa a tratar do fogão,
As luazitas caem como lágrimas
De entre as páginas abertas do almanaque
Para o canteiro florido que a criança
Com esmero colocara à frente da casa.

Tempo para plantar lágrimas, diz o almanaque.
avó velhinha canta para o fabuloso fogão
e a criança desenha mais uma insondável casa.

                                                  Elizabeth Bishop, 1965


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Esquema da Sextina:
1. ABCDEF
2. FAEBDC
3. CFDABE
4. ECBFAD
5. DEACFB
6. BDFECA
7. (envoi) 3 versos, incluindo as 6 palavras (3 terminais) -
    - neste poema: lágrimas. almanaque, avó, fogão, criança, casa
.
O intrincado padrão matemático da Sextina


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Arte Norte, Arte com Árvores


                                                                                             By leaves we live.”
                                                                                                    Patrick Geddes

'Art North' é uma publicação sobre a cena artística nos países nórdicos, desde o Alasca e o Canadá até à Escócia e Escandinávia. Do que já tenho lido, é uma cena relativamente pobre, com muito amadorismo do tipo folclore-a-querer-passar-por-arte, e uma orientação vanguardista ao gosto do dia algo irritante.

Mas deste artigo e desta arte gostei: arte inspirada pelo mundo vegetal, em particular as árvores. Sou defensor convicto da plantação de árvores e da protecção e ampliação da floresta endémica, assim com da criação de numerosos espaços verdes urbanos. Mais, muito mais que as espécies animais, são as vegetais (anteriores na História) que precisam de ser acarinhadas - não por nenhum credo ambientalista, mas para o nosso prazer e bem-estar. Se esta simpatia se traduz em arte, melhor.

Chamaram "arborealismo" à corrente artística inspirada em florestas. Muitos destes artistas referidos na revista são escoceses, um é irlandês.

Kenris MacLeod, de Edimburgo, usa o bordado. As obras dela são bordadas na máquina Bernina sobre tecido.
You, bordado e tinta sobre chita de algodão.

Fourteen trees yellow.

Diz Kenris:
"Não me consigo afastar das árvores. São sempre fascinantes, com infinitas possibilidades, e sinto tanta ligação com elas como seres com que partilho  o planeta. Sou sobretudo uma ilustradora, por isso sinto-me próxima do trabalho de artistas como Ivan Bilibin and Carl Larsson."

Falling Summer, 2018

The path, 2018

Jonathan Dickson é outro exemplo. Artista gráfico de Dublin, carrega mais nos tons das suas pinturas a óleo, onde floresta e mistério andam juntos.

You can say the sun is shining if you really want to, óleo s/ tela

'Shattered beautiful forever, before dark bleeds', 2019óleo s/ tela

Shona Grant é escocesa, das ilhas Hébridas.

September in my local wood. "A fallen birch tree is adorned with moisture laden cobwebs as mist rolls in."

'Tree line' book

Sarah Mackenzie Smith
You Breathe I Breathe We Breathe, giclée sobre papel mate, 2019.

"One day, a few years ago, the sun captured this moment in time spent amongst trees with my young daughter. We lived on the edge of Kemback Woods in Fife and passed many of our days together deep in the woods. I am fascinated by our symbiotic relationship with trees. They breathe out the oxygen we need and we breathe out the carbon dioxide they need. We literally breathe each other.”

Anna Russell é de Dundee, Escócia

Magnolia Stellata

Mais:
http://www.facebook.com/SocietyofScottishArtists/posts/3494672113879836

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   Havia na floresta um roble cheio de anos,
   Vestido de hera anciã, decano entre os decanos
   Dos bosques do arredor. Raízes colossais
   Prendiam-no à terra; ao ar descomunais
   Os braços elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia
   Que aos outros vegetais as bênçãos estendia.

   Velho, e ainda a primavera o vinha requestar;
   O outono desfolhava-o em último lugar;
   Opunha ao sol do estio a fronde espessa e bela;
   Respeitava-o no inverno o raio da procela. 

                                                  Júlio Dinis

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Khatia Buniatishvili, Porto - Casa da Música, Sonatas de Beethoven assim-assim


A pianista Khatia Buniatishvilli deve ter a maior corte de admiradores e fan club Facebook de sempre na música clássica. Nem a Callas, nem a Joyce, nem a Netrebko. A verdade é que ela cultivou o estrelato, a sua imagem tanto quanto os seus talentos, tirando proveito da bela figura e de roupagens vistosas tanto quanto do virtuososmo pianístico.

Resultado: é chamada para quase todas as salas, festivais e comemorações. Ainda há pouco esteve ao vivo em Paris frente à Notre Dame num concerto de homenagem. Acham Ronaldo popular e um chamariz de povinho? Nem imaginam como é Khatia na natal Geórgia ! Dedicam-lhe um culto de diva, um culto frenético de multidão (sobretudo jovens), quase como eram os Beatles na era da beatlemania.

Claro que Khatia é uma grande pianista, e eu aguardava com expectativa a oportunidade de a ouvir ao vivo. Vamos à música que ela produziu na Casa, com sala esgotada.

O programa compunha-se de quatro sonatas de Beethoven:

- nº 17, op.31 nº 2, “A tempestade
- nº 14, op.27 nº 2, “Ao luar
- nº8, op.13, “Patética
- nº23, op.57, “Appassionata


A Khatia não lhe falta técnica, agilidade, força expressiva. O que lhe falta, e nota-se muito, é saber deixar respirar a música, deixar respirar a escrita do compositor. É geralmente excessiva nos contraste dinâmicos - pianíssimos quase inaudíveis, fortes tão bruscos e violentos que as notas se atropelam e deixa de se ouvir o dedilhado ou o contraponto. Os tempos também são algo frenéticos, ora como se houvesse pressa e urgência - não há sobretudo pausas onde são necessárias para dar fôlego, ênfase, pathos - ora exagerando no sentido contrário nos movimentos lentos, com um vagar lânguido que faz perder toda a expressão mesmo que as teclas apenas afloradas possam criar algum ambiente de contricção interior. No conjunto, o que sobressai é alguma rudez e impolidez, no mínimo. A nº14 "Ao Luar" foi um desconsolo.

Mas pode parecer que foi um concerto falhado. Não, houve bons momentos; gostei muito por exemplo da nº 23 "Appassionata" - belíssimo andante - em que a georgiana construiu uma filigrana delicada e intensa. Haverá ainda alguma imaturidade, mas Khatia está na casa dos 30, pode vir a ser bem melhor pianista, assim a aspereza actual seja amaciada com sensibilidade.

Por enquanto, assim-assim.
Deixo uma grande (outonal!) interpretação do genial Andante da nº 23: Evgeny Kissin