domingo, 28 de agosto de 2022

Ilha de Chappaquiddick, 41° N, é só navegar em frente...


Para onde olho em frente do outro lado do Atlântico ?

Quando estou na varanda ou no passadiço do outro lado da rua a caminhar junto à praia, divago às vezes sobre o que estará além-mar em frente, se navegasse numa imaginária linha 'recta' em direcção a poente. Para onde vai o sol quando o vejo desaparecer 'no mar' ? Será um lugar mágico?

Ao fim de algumas tentativas de procura, o que me pareceu mais provável é que o leme rumando a poente me levaria à ilha de Chappaquiddick ! Excelente nome, para começar.


A ilhazita é às vezes, na maré baixa,  península de Martha's Vineyard, da qual está separada por um pequeno estreito; o nome "Chappaquiddick" deriva do algonquin cheppiaquidne = "ilha separada"; foi território dos Índios Wampanoag, uma confederação que outrora chegou a englobar 24 tribos e está agora reduzida a cinco. 

O acesso à ilha é principalmente por mar, num pequeno ferry. Lá chegados, espera os visitantes um território plano de praias pristinas, dunas, línguas de areia, pântanos de marés e salinas.



Administrativamente, 'Chappy' é considerada uma extensão da cidade de Edgartown, a super-luxuosa estância de férias de Martha's Vineyard onde em todas as ruas se alinham moradias e mansões dos super-ricos. Chappaquiddick é para eles uma das escapadas possíveis, em barco (que todos têm) ou em todo o terreno para rolar a 200 sobre a areia de East Beach.

Quanto a locais especiais, imagine-se, o mais visitado é uma ponte tosca, mal acabada, que liga a ilha a uma estreita língua de areia chamada Dyke. Foi ali, em 1969, que um incidente marcou a política americana: um carro caiu à agua numa manobra desastrada (?), ao volante ia Edwar Kennedy, Senador. A acompanhante não sobreviveu, o escândalo foi grande.

A ponte dá acesso ao areal onde os ATVs e 4WD fazem rally.

Parece-me bem mais interessante outro local: os Jardins Mytoi, um pequeno parque intensamente arborizado que foi desenhado no estilo de jardim japonês.


Depois da travessia atlântica no meu barquinho, sabia bem a verdura e a sombra. 



Vamos finalmente até ao extremo Norte:


De lá para cá, é em Cape Poge que alguém pode estar a olhar na minha direcção, e a perguntar-se o mesmo...

Farol de Cape Poge

Olá!



Não vale a travessia, não. Fico mais consolado.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Canção para as primeiras horas, de Nancy Campbell


Na edição do Spectator de 13 de Agosto, um novo poema de Nancy Campbell que merece ficar aqui.
(tradução minha).

          Canção para as primeiras horas

          Que haja sempre um amigo
          a quem escrever uma carta -

          sempre um momento de silêncio
          entre os compassos da música -

          sempre mais histórias,
          mais música -

          sempre um bando de aves
          a voar sobre o rio -

          sempre mapas antigos
          que prometem novas jornadas -

          sempre uma ilha onde acostar
          e a sombra das árvores.

          Que a solitária rotina
          traga novidade para outros -

          Que cada estreito quarto
          se abra a vastos mundos -

          Que todos os anos
          sejam gráficos desenhados a tinta clara 

          e nenhuma das nuvens que vêm
          esconda a vista do cume.

                   

                             

Song for the small hours 

May there always be a friend 
to write a letter — 

always time for silence
between bars of music — 

always more stories, 
more music — 

always a flock of birds 
over the river — 

always old maps 
promising new journeys — 

always an island at which to moor 
and shade of trees. 

May the lonely routine 
bring wonder to strangers — 

may every little room 
open on wide worlds — 

may all the years 
be charts drawn in clear ink 

and none of the clouds to come 
veil the view from the summit.

                                                          Nancy Campbell

sábado, 20 de agosto de 2022

Tecla, a cidade de Calvino que nunca acaba, como o Universo


[tradução minha]

Quem chega a Tecla, pouco vê da cidade, por trás dos tapumes de tábuas, as protecções em tela de saco, os andaimes, as armações metálicas, as pontes de madeira suspensas por cabos ou apoiadas em cavaletes, os escadotes, as treliças. E à pergunta: “Porque continua a construção de Tecla assim tão demorada ?” – os habitantes, sem parar de içar baldes, de largar fios de prumo, de mover para cima e para baixo longas trinchas, “Para que não comece a destruição”, respondem. E questionados se temem que mal os andaimes sejam retirados a cidade comece a rachar e a cair em pedaços, reagem muito depressa, em surdina: – “E não só a cidade”. 

Se, insatisfeito com as respostas, alguém se aplica a espreitar pela frincha de uma vedação, vê gruas que levantam outras gruas, andaimes que revestem outros andaimes, traves que escoram outras traves. “Que sentido faz o vosso estaleiro?”, pergunta. “Qual é o fim de uma cidade em construção se não uma cidade? “. “Onde está o plano que vocês seguem, o projecto?” “Mostramos-te assim que o dia termine; agora não podemos interromper”, respondem. O trabalho cessa ao pôr do sol. Cai a noite sobre o estaleiro. É uma noite estrelada. “Aí está o projecto”, dizem.

 

Chi arriva a Tecla, poco vede della città, dietro gli steccati di tavole, i ripari di tela di sacco, le impalcature, le armature metalliche i ponti di legno sospesi a funi o sostenuti da cavalletti, le scale a pioli, i tralicci. Alla domanda: “Perché la costruzione di Tecla Napoli continua così a lungo?”- gli abitanti senza smettere di issare secchi, di calare fili a piombo, di muovere in su e in giù lunghi pennelli – “Perché non cominci la distruzione, rispondono. E richiesti se temono che appena tolte le impalcature le città cominci a sgretolarsi e a andare in pezzi, soggiungono in fretta, sottovoce: – Non soltanto la città.

Se, insoddisfatto delle risposte, qualcuno applica l’occhio alla fessura d’una staccionata, vede gru che tirano su altre gru, incastellature che rivestono altre incastellature, travi che puntellano altre travi.- “Che senso ha il vostro costruire?-domanda .-Qual è il fine di una città in costruzione se non una città? Dov’è il piano che seguite, il progetto?” – “Te lo mostreremo appena terminata la giornata; ora non possiamo interrompere” – rispondono.Il lavoro cessa al tramonto. Scende la notte sul cantiere. E’ una notte stellata. “Ecco il progetto” – dicono.

Nunca nada está acabado neste mundo, nem com a morte. Toda a obra é obra em progresso, para onde? para quê? está escrito nas estrelas, mas não sabemos ler a resposta.

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Grato ao Biblioteca na Floresta por me relembrar este conto de Calvino

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Música para este Verão


Ainda vai a tempo, não vai?

Música bem alegre ! Merci, M. Rameau. Uma abertura genial, e não há coro melhor que este. A bela gravação de William Christie é mais consensual, mas esta de Christophe Rousset  com Les Talents Lyriques é electrizante.


E Carolyn Sampson acompanhada ao alaúde? Maravilha.


Have you seen the white lilly grow


Beethoven, sonatas para violoncelo
com Filipe Quaresma e Antonio Rosado


Dois dos nossos melhores solistas numa gravação que se ouve repetidamente com prazer.

Outras coisas

Finalmente, uma obra que nunca dei atenção, Strings of Light de Anthony Phillips, ex-guitarrista dos Genesis, publicado em 2019. É um álbum a solo, na guitarra de 12 de cordas. com a sonoridade que já se ouvia no grupo. É tão calmo, suave, repetitivo, que se pode dizer chato e pobre; mas sabe bem ouvir em fundo no Verão, é como água a correr ou o folhedo a fazer sussurar o vento. Sempre a mesma coisa, narcótico, mas agradável.

Days gone by, uma das favoritas:


Gosto também de Song for Andy, com variantes inesperadas.



quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Serhii Vasylkivsky (Sergey Vasylkovsky) de Kharkiv, pintou as terras da Ucrânia no declínio da monarquia czarista


Kharkiv e Kherson são as cidades mártires depois de Mariupol,  e Mykolaiv também está cada vez mais sob ameaça. Kharkiv era uma cidade grande com tradições europeias de arte e cultura, como no seu Museu se pode verificar perante os quadros de Vasylkivsky.


Serhii Vasylkivsky (ucr. Сергій Васильківський) nasceu em Izium de uma família cossaca, morreu em Kharkiv, e foi um dos artistas ucranianos de maior projecção europeia na passagem do século XIX para o XX. Sob o absolutismo corrupto do czar Nicolau I, enquanto na Europa vencia o liberalismo,  renascia em Kiev por volta de 1845 o sentimento nacional ucraniano impulsionado pelo poeta Shevchenko, e violentamente reprimido por Moscovo.

Depois da sua infância na região de Izium e Kharkiv, aos 22 anos Vasylkivsky foi para S Petersburgo frequentar a Academis de Belas Artes, de onde partiu em viagens de estudo pela Europa, em particular Paris onde descobriu Corot e se ligou à escola Barbizon. Voltou em 1888 e estabeleceu-se definitivamente em Kharkiv. Pintou a estepe, as florestas e os prados, os caminhos através dos campos, os rios e os lagos, as aldeias e as igrejas, as cabanas (khatas), rebanhos e manadas, os cossacos.

Fora da estrada, 1900

Rio ao entardecer

Paisagem

Casa rural cossaca


A Maré

Desenho para Batalha dos Cossacos contra os Tártaros do Dnieper


Uma das mais conhecidas:

Pôr do sol no lago

A sua primeira grande exposição, cento e vinte obras, teve lugar em Kharkiv em 1900.



quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Uma espécie de Ultima Thule na Irlanda: Lough Derg, no Donegal

Férias, viagem, escapada...

É tão raro referir-me aqui à Irlanda, desde que lá estive há 11 anos, que não resisti a esta inverosímil ilha no pequeno Lago Derg, no extremo noroeste. Pouca gente viaja para County Donegal, zona pobre, deprimida e esvaziada pela emigração, isolada lá no Norte nas costas da outra Irlanda, a britânica.

O lago Derg fica entre a cidade de Donegal e a fronteira com o território britânico.

Será a primeira vez que aqui descrevo um santuário?


Quando vi a primeira foto julguei que estava em Itália, ou pelo menos na região do Adriático; afinal fica a uns 2000 km para noroeste. A ilha no lago Derg é desde o século XII local de peregrinação a St. Patrick - tinha de ser. Nessa época foi construído um modesto santuário, em torno do famoso Purgatório.

A Basílica octogonal de 1931, arquitectura eclética de base neo-românica.

Uma arcada ao estilo normando.

É verdade ! Uma crença popular medieval,  mais ou menos herética, faz situar o Purgatório em caves no centro da Terras, cujo acesso está situada nesta ilha, a ilha do Purgatório de St. Patrick. Incrível. E eu a julgar que  isto era um paraíso... 


Os homens acreditam em cada coisa, realmente. Não ha ciência que valha a esta humanidade fraca de princípios e de débil razão. Nem admira que se atire para guerras a defender crenças destas, ou apavorada com ameaças fantasmagóricas. 

Bom, St. Patrick não tem culpa. Como o sítio é fora do comum e muito longe de quase tudo, prefiro vê-lo como uma Ultima Thule na ilha verde, com a sua solitude e um mistério ainda mais carregado sob o peso do pecado dos homens.

As construções são em granito escuro do fundo do lago reforçadas com cimento, que só os relvados e ajardinados suavizam. 

Os blocos de alojamento de peregrinos do século XIX (Hospice).

O sítio religioso data do século V, segundo a lenda: St. Patrick foi trazido à ilha onde Cristo himself lhe mostrou as grutas ou poços ('Caverna'), que seriam a entrada do Purgatório, provando a verdade dos textos sagrados. Isto é referido desde 1185 em documentos medievais que se encontram por toda a Europa, associando o culto a St. Patrick à peregrinação que se iniciou por essa altura, com partida de Dublin. O segundo mosteiro datará do século XV, auge da importância da ilha sagrada, ao ponto de ser o único local assinalado nalguns mapas da Irlanda dessa época.

Peregrinação a St Patrick's, W. Frederick Wakeman, 1876.

As ditas caves foram definitivamente encerrados em 1632, e demolido o mosteiro original; terminou o dito purgatório, e foi então construída uma pequena igreja franciscana (Sta Maria dos Anjos) que é actualmente o que há de mais antigo na ilha. E assim se manteve o santuário durante três séculos.

Só em 1936 foi construída a actual Basílica em estilo românico revivalista inspirado em  San Vitale de Ravenna mas com influência do pesado estilo normando ! Alguns elementos interiores em mármore policromático, outros de inspiração bizantina, fazem uma miscelânea única mas falha de carácter.

Na verdade, o efeito cénico espectacular da ilha é enganador; tudo é destinado a peregrinos que fazem as suas penitências descalços pelos jardins, numa oração colectiva deprimente, como estas coisas da fé sempre são.

Um dos nichos ao lado esquerdo do altar.

Os jardins foram decorados em 2004 com um labirinto relvado, símbolo do percurso dos peregrinos na sua demanda do santuário e também símbolo recorrente nas culturas pré-cristãs da Irlanda.

Um melhoramento do século XXI.


Falta só dizer que as águas do pequeno lago são riquíssimas de peixe, têm sido pescados lúcios com vários quilos de peso.


Deste sítio nunca tinha tido conhecimento, não figura nos guias turísticos, só uns poucos podem o visitar de cada vez. Só é preferível evitar a época de peregrinação - de Maio a Agosto.