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domingo, 9 de junho de 2024

Um poema do 'The New Yorker' sobre vida sem 'fé' mas com alegre assombro

Numa recente edição do The New Yorker, encontrei um belo poema com que me identifico completamente. Chama-se The Call to Worship (Apelo ao Culto) e o autor é Bob Hicok.
[tradução minha]

Apelo ao Culto, de Bob Hicok

A possibilidade de o zero ter sido origem do universo,
de todas as nossas coisas virem do nada, o medo
de sermos de tal modo solitários, filhos do acaso, órfãos
até aos nossos átomos, é a mãe da ideia de deus. Deus

é uma roupa que vestimos à solidão, uma máscara
para o encobrir o oblívio, um regulador num mundo
onde nenhuma flor, nenhum urso quer saber se estamos aqui
ou o que fazemos.

Prefiro uma teologia do silêncio, a escatologia
do encolher de ombros, a religião de dar a mão à minha esposa
por agora.

Mas, se o labor da Igreja foi o necessário
para me dar o toque dos sinos nas manhãs de domingo,
que às vezes faz levantar o voo dos corvos e volver as corças,
estou grato por um som que me tira de mim mesmo,
me ergue a cabeça para o Sol e as nuvens, para o acima
e o todo, o azul, o sempre e sempre de tudo, quando dobro
o único joelho que devo dobrar, me sinto
alegremente pequeno, contingente, e mantido, por quê
não sei dizer, privado de tudo.


Bem melhor, o original:

          The Call to Worship

            The possibility that the zero gave birth to the universe,
            that all our somethings come from nothing, the fear
            of being alone like that, children of chance, orphans
            down to our atoms, is mother to the idea of god. God

            is a dress we slip over solitude, a mask
            for oblivion to wear, a rule-giver in a world
            where no flower or bear cares that we are here
            or what we do.

            I prefer a theology of silence, the eschatology
            of the shrug, a religion of holding my wife’s hand
            for now.

            But, if the industry of the church is what it took
            to give me bells ringing Sunday mornings,
            to which crows sometimes rise and deer turn,
            I’m grateful for a sound that pulls me out of myself,
            lifts my head toward sun and clouds, into the up
            and all, the blue, the on and on of it, when I bend
            the only knee I have to bend, feel
            happily small, contingent, and held, by what
            I can’t say, short of everything,


[New Yorker, May 2024]

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Glicínias em festa e nós em luto


A nossa retirada das ruas trouxe muita cantoria de pássaros, é verdade, esta Primavera desastrosa conta pelo menos um ponto a favor. Podia dizer que não há ninguém para os ovir, mas não é verdade - não só os ouço da janela e da varanda, como os ouço durante o 'passeio higiénico' que as autoridades virais (eh eh) autorizam. Melros, então, é uma festa.

Já o mesmo se não pode dizer das flores. Estão todas a abrir, promete ser uma primavera colorida e perfumada, mas sem poder visitar parques e jardins é uma tristeza. Ora acontece que o Parque da Cidade tem estado aberto pela porta das traseiras, que nem toda a população conhece; dá acesso à mercearia Seramota, que já aqui mostrei, e daí acesso a todo o Parque.

Consegui assim visitar o cantinho das glicínias, mesmo 'vedado' com fita para evitar abusos. Ficam aqui fotos a ver se alegram um bocadinho esta recta final do confinamento, pois parece que vamos passar ao estado todos-na-rua-de-máscara. E todos-separados-por-dois-metros. E nada de festivais, futebol, bares nocturnos e são-joões. Que é o estado que devia ter vigorado desde início.

Valham-nos as glicínias, mesmo que vindas da China.




Sua excelência o gato do parque, indiferente a pandemias, satisfeito no seu trono olhando um reino agora vazio de gente.




quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Kristina Hammarström, uma mezzo para suceder à Joyce ?


Ainda não abundam gravações com a mezzo-soprano sueca Kristina Hammarström, mas do que tenho ouvido parece-me uma promessa para os próximos anos. Alguns exemplos:

1. Ao vivo com 'Se cresce un torrente', do Orlando Furioso de Vivaldi.



2. Vivaldi tem sido um dos compositores a que Hammerström mais se tem dedicado. Também dele, a ária 'Sol da te', com o Concerto de' Cavalieri, disco que já referi e tenho ouvido com frequência.


Sol da te, mio dolce amore,
questo core
avrà pace, avrà conforto.

Le tue vaghe luci belle
son le stelle
onde Amor mi guida in porto.


3. Magnífica Hammerström também numa das marítimas Sea Pictures de Elgar, a canção 'The swimmer' :

I would ride as never man has ridden
To gulfs foreshadowed through straits forbidden

...

Música ajuda sempre a refrescar do cansaço, que é muito, tudo cansa, não é ? mas a estupidez é o pior, cansa, desgasta, corrói.



segunda-feira, 13 de março de 2017

Repousando nos aposentos do mar, e a envelhecer ouvindo as sereias...
com T. S. Eliot.


Um excerto do poema 'The Love Song of J. Alfred Prufrock':
..........

I grow old ... I grow old ...
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.

Shall I part my hair behind?   Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the beach.
I have heard the mermaids singing, each to each.

I do not think that they will sing to me.

I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.
We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown
Till human voices wake us, and we drown.
                                                                              T. S. Eliot


Estou a ficar velho... estou a ficar velho...
Hei-de usar a dobra das calças revirada.

E se fizesse risca no cabelo atrás? Ainda me atreverei a trincar um pêssego?
Hei-de vestir calças de flanela branca, e passear na praia.
Já ouvi as sereias, a cantar umas para as outras.

Não creio que cantem para mim.

Tenho-as visto a cavalgar as ondas para o largo
Penteando os fios brancos das ondas encrespadas
Quando o vento sopra as águas em branco e negro.
Temos repousado nos aposentos do mar
Entre as ondinas enroladas em algas rubras e castanhas
Até que vozes humanas nos despertam, e naufragamos.


[muito agradecido à jovem que me facultou a citação :)]

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Dolce vita na minha ♥casinha de praia



Está-se bem no nosso refúgio à beira-mar, sobretudo quando uma mudança de tempo traz a paragem do vento, tardes suaves com nuvens esfiapadas ou aos cordeirinhos e pores-do-sol bíblicos.


Nunca tinha observado com tanta atenção os fenómenos atmosféricos e o modo como transformam a paisagem, as incidências da luz ou da sombra ou da penumbra, as diversas cores da luz, do azul ao amarelo, laranja, vermelho; os matizes das dunas com luz rasante, e as texturas que as paliçadas desenham entre a areia e a vegetação...



... e o modo como ventos diversos levantam as ondas, enfunando-as ou, pelo contrário, fazendo espumar as cristas. E as aves sentadas na praia ao crepúsculo, enfileiradas contra o vento ?  e as formações em linha ou em V da passarada que voa ao fim do dia para a reserva do Cabedelo, na foz do Douro ? tem tudo a ver com o vento e a direcção da luz.

Tenho aprendido, portanto, a observar.

Cores fortes de fim de Verão

Luz cor-de-areia

Azul-cinza de névoa no mar

Luz azul de fim de tarde




Dama Lua a enfeitar a noite...



Os homens também têm graça, sobretudo de bicicleta, e ainda mais se forem mulheres :) . Esforçadinhos, esbaforidos, a gingar com o esforço de pedalar se vão contra a nortada; uns heróis da velocidade, peito levantado, em roda livre, se o vento está de favor por trás... a variedade de posições sobre o selim dava um tratado. Estrangeiros, muitos, a sorrir ao vento, vêm do Norte e isto não é nada...


Também dependem do vento e das marés os surfistas ! É uma animação, quando as ondas vêm quebrar certinhas numa barra de espuma, vê-los a deslizar rápidos, em zig-zags.



Ao lusco-fusco e noite adentro surgem, discretos, quase secretos, os pescadores. Gosto de os ver empoleirados nos rochedos - se bem que seja mais perigoso - e mais ainda se estiver um grupo em linha, mais acima e mais abaixo conforme o relevo da rocha. Em contra-luz dão uma imagem poética, ora de solidão corajosa ora de equipa de bravos, conforme.





Há profusão de barcos que passam - barquitos de pesca, pequenos veleiros, traineiras mais ao longe, e os enormes cargueiros de contentores no horizonte, à espera de entrar em Leixões ou já de partida, como nesta sequência de fim de tarde, com as cores reais como a máquina as registou:




e com gaivota:


Também não faltam irritações, claro.

A maior são as moto-4 de escape aberto, aos estouros. Por mim podiam ter 4 furos, era bem feito. Depois há os cavalos, de uma escola perto que vem treinar em passeio. Deixam marcas insuportáveis, seja na pista, no passadiço ou na areia. Gente queque mal-educada. Dão um trabalho ingrato à equipa que todas as manhãs limpa a pista.

Ah, aquela tábua empenada onde às vezes tropeço...

Há ainda um (e só um) bar com volume de som para ser ouvido a dez quilómetros; felizmente, é só à vezes, quando tem disc-jockey e encontro de motards, por exemplo. ou casamentos. Deixa de se ouvir o mar de todo; já bastava o ruído incómodo das camionetas, faltava só o bum-bum da banda sonora electro ou lá o que é.


Durante a semana é mais sossegado, valha-nos isso. Pista vazia, mim de bicicleta... ir tomar café lá adiante ao "Cremosi", ou ao "De'licious", é um must, se o tempo está de feição. Agora abriu um que serve Musetti, aromático, excelente. O croissant matinal sabe pela vida - ainda não entrei em nenhuma dieta especial, tenho de aproveitar ;). Almoçar na varanda ao ar livre tornou-se nossa regra, e um sonito pelas 4 ou 5 da tarde, banhado pelo sol na espreguiçadeira, é um daqueles privilégios que me fazem sentir imensamente rico e sortudo. Mesmo que sejam atributos desmentidos pelos factos e pelas atribulações da vida.


Agora está o Inverno à porta, e chuvadas puxadas de Sul não se costumam aguentar - a casa é virada a poente e a sul. Mas vai saber bem ficar dentro à lareira, com a Pure Classic a encher o espaço de música boa e talvez a surpresa de uma fugidia aberta a encarnar as paredes, ou de relâmpagos caindo no mar.


Entretanto ainda vai havendo preciosas horas de sol.





Decididamente, dantes não via nada disto com olhos de ver.





sexta-feira, 22 de maio de 2015

Delenda est Palmyra


Foi preciso esperar vinte séculos para que a barbárie se invertesse. É de certa maneira a vingança de Cartago. Os novos bárbaros, cansados de matar pessoas para nada, descobriram que a cultura preza mais as pedras da História do que as vidas deste ou daquele lado da guerra, que as razias contra o património construído doem mais que as balas contra peitos humanos.


Estranha civilização, que dá mais valor às pedras que aos vivos. E contra mim falo: porque tendo a lamentar tanto a morte da romana Palmyra, e pouco me diz mais um ou menos um guerrilheiro abatido? Ou mesmo civil ? Já nem é notícia...

A bela Palmyra foi construída por uma multidão de escravos maltratados e serviu de estância de luxo ao que hoje chamaríamos uma corja de patifes romanos, invasores e imperialistas; pior, fartaram-se de matar nativos, que se defendiam legitimamente. Como é bela, contudo, a Palmyra que nos chegou numa elegância arruinada, numa memória esplendorosa de calhaus alinhados, no testemunho mudo dos gritos e risadas que soavam no Teatro.


Lamento a helenística, a romana Palmyra, terei saudades, talvez chore. Não lamento nem terei saudades de Abdul ou Yasmin, de Palmyra,  derrubados em combate. Alguém me ajuda ? Não vejo saída deste dilema.





sábado, 3 de janeiro de 2015

2015, nada de novo sob a roda do Sol, suponho


Parece um título de ficção futurista, 'Dois Mil e Quinze'.


Nos anos 80, digamos, nunca me veio à ideia que um dia estaria a viver em 2015. Parece uma coisa tão longínqua, inverosímil, e contudo...

Que há de novo, entretanto? Sim, afinal, neste futuro de ficção inimaginável, que coisas fantásticas se vivem assim tão diferentes dos anos 80 ?

Há computadores e telemóveis;  e de resto ? modos de vida ?

Nada, ou quase nada. Ouve-se tantas vezes falar da mudança vertiginosa e acelerada que o tempo moderno introduziu na nossa vida, mas vai-se a ver, e em 40 anos não mudou quase nada.

Continua a haver povos civilizados e povos bárbaros; doenças curáveis e doenças incuráveis; gente obesa e gente com fome; cidades limpas e cidades sujas; escassa boa literatura e vasto lixo publicado; ditaduras e não-ditaduras (democracias ?) ; presos sem culpa e patifes livres; ricos e pobres, ladrões e falidos.

Nem sequer tivemos nenhuma aventura nova, que motivasse multidões - o cometa e a Philae duraram dois dias; nem nenhuma nova moda que mudasse hábitos em larga escala. Cartões em vez de notas: isso mudou estilos de vida ? Já havia as 'letras' de crédito.

Se mudança há, é suave e em aspectos de pequeno detalhe. Nas grandes coisas, a humanidade tem-se mostrado particularmente resistente à mudança. Pior que tudo, a violência, em variedade de formas, e a guerra, a pior delas, não mostram tendência de abrandamento.

Pouco espero deste 2015, e sobretudo não espero qualquer utopia. O mais certo é ser um ano igual aos outros. Já não é mau se for encontrada alguma nova vacina, alguma nova cura, ou algum progresso real nas fontes de energia. Bater recordes, só se for o de mínimo número de atentados, de baixas, de mutilações e de lapidações.

Citando Emil Cioran,

Tudo é possivel, e afinal nada é. Tudo é permitido, e mais uma vez, nada é. Seja por que caminho seguirmos, não é melhor do que qualquer outro. Não há nada que valha a pena, mais do que qualquer outra coisa. Todo o ganho é uma perda, toda a perda é um ganho.


Sê um floco de neve bailando no ar, uma flor flutuando na corrente pela encosta.

[adaptado]

sábado, 27 de dezembro de 2014

2014:
Não tem graça, mas não tem mesmo gracinha nenhuma


Morreste ? não ?
Excelente.
Passaste fome ? não ?
Excelente.
A tua casa foi assaltada? não ?
Excelente.
E o teu carro, jacking ? não ?
Excelente.
Cortaram-te a luz ? não ?
Excelente.
Estiveste internado com ébola ? não ?
Excelente.
Viste muita TV, telejornais...? não ?
Excelente.
Compraste um iPad, um Tablet ? não ?
Excelente.
Tinhas acções no BES ? não ?
Excelente.
Ainda estavas a contar com subsídio de Natal ? Já não ?
Excelente.
Leste 'Alabardas' do Saramago ? não ?
Excelente.
Choraste pelo cãozinho da enfermeira espanhola ? não ?
Excelente.

Esperas um 2015 melhor que este 2014 ? sim ?

De que te queixas, tiveste um excelente 2014.
Oxalá 2015 não seja pior.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Era uma vez uma alegre moscazita, por W. Blake


William Blake me faria sentir mosca, num poema logo anterior ao célebre 'Tiger, Tiger' de 1794. 
Há muito mais do que enxotar ou ser enxotado.


The Fly

  Little Fly,
  Thy summer's play
  My thoughtless hand
  Has brushed away.

  Am not I
  A fly like thee?
  Or art not thou
  A man like me?

  For I dance,
  And drink, and sing,
  Till some blind hand
  Shall brush my wing.

  If thought is life
  And strength and breath, 
  And the want 
  Of thought is death;

  Then am I
  A happy fly.
  If I live,
  Or if I die.




          Ó Moscazita           
          teus jogos de Verão
          varridos foram
          pela minha mão.

          Não serei eu
          Mosca igual a ti ?
          Ou tu um homem
          igual a mim ?           

          Pois eu gosto de dançar,
          de cantar, e de beber,
          até vir a cega mão
          a minha asa varrer.

          Se pensar é viver,
          e respirar, e ser forte,
          E se a falta
          do pensar é morte;

          Mosca feliz
          eu hei-de ser.
          Se fôr vivo,
          ou se morrer.


---------------------

in Songs of Experience, 1794
- ilustração original da 1ª edição -

[tradução minha]


terça-feira, 25 de novembro de 2014

' Rest, rest, seize the dying of the light '


Gosto muito do poema de Dylan Thomas  "Do not go gentle into that good night", citado no filme Interstellar como inspiração para os exploradores do cosmos não desistirem, lutarem pela vida até ao extremo. É um poema de raiva e luta contra a fatalidade, escrito por um jovem inconformado com a tragédia da morte do pai: "rage, rage against the dying of the light".

É lindíssimo, e certamente bem conhecido.

Mas eu, agora, tentando ser um "wise man", apetece-me transformar o poema no seu contrário, o que certamente o poeta detestaria, por isso humildemente lhe peço que me ignore. Porque eu não sou poeta, e muito menos revoltado, sou mais, mediocremente, assim:

        Yes, do go gentle into that good night,
        Old age should softly quiet at close of day;
        Rest, rest, and seize the dying of the light.

        Because wise men at their end know dark is right,
        and though their words had forked no lightning, aye,
        they do go gentle into that good night.

        Good men, the last wave by, crying how bright
        Their frail deeds might have danced in a green bay,
        Rest, rest, seize the dying of the light.

        Wild men who caught and sang the sun in flight,
        And learn in time they grieved it on its way,
        now do go gentle into that good night.

        Grave men, near death, who see with blinding sight
        Blind eyes could blaze like meteors, but they
        now rest, rest, seize the dying of the light.





quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Nuno Crato, o Indefensável


Sim, lembro-me bem, festejei aqui com optimismo a nomeação de Nuno Crato para ministro da Educação. E, bem sei, não faltou quem estivesse de pé atrás, ver para crer. Tinham razão, eu não.

A minha ingenuidade apoiava-se na atitude de seriedade e respeito que Nuno Crato tinha até então demonstrado, tanto nos escritos como no discurso publicado nos media. O contraste com a personalidade indescritível das suas antecessoras era tão grande que me deixei iludir pelas aparências. Afinal, já tínhamos tido ministros sérios e capazes, como Roberto Carneiro ou David Justino.

O ministério de Nuno Crato é um desastre, uma catástrofe sem fim à vista. Destruir totalmente a confiança no sistema educativo é obra. É verdade que já tinha herdado uma bela herança, e bastou-lhe subir aos ombros dos anteriores obreiros para ter sucesso quase garantido. Mas reconheço que não é para qualquer um gerir de forma tão maquiavélica, tão diabólica, tão demolidora, o sistema educativo de um país ao ponto de juntar contra ele todos os sectores envolvidos no processo.

Nao sei se foi intencional ou cabotino no modo como implementou erro atrás de erro. Se calhar os exames podiam trazer benefício, ou a autonomia, ou a renovação do processo de colocações, ou o retoque nos programas. Mas foi tudo, tudo, sempre, sempre, mal feito, por equipas incompetentes, com erros de planeamento e de execução, nunca claramente assumidos, somente varridos envergonhadamente para debaixo do tapete.

E depois há a questão do carácter. Bem sei que quem está no governo fica sob escrutínio dos media,  nem todos terão blindagem suficiente e podem vacilar sem demérito. Mas Crato deu provas seguidas e consistentes para merecer toda a desconfiança. A aura que tinha como académico desvaneceu-se, é afinal tão incapaz, enredado em manobras e artimanhas, presumido mesmo no erro, integrado nos sistema partidário de influências e amiguismos, como qualquer outro Relvas.

Não lhe perdoo, conseguiu fazer de mim parvo :(



sábado, 18 de outubro de 2014

Rose complète


Sobre um poema de Rainer Maria Rilke, Morten Lauridsen compôs este belíssimo canto a capella :


J’ai une telle conscience de ton
être, rose complète,
que mon consentement te confond
avec mon coeur en fête.

Je te respire comme si tu étais,
rose, toute la vie,
et je me sens l’ami parfait
d’une telle amie.


---------
(para contraponto à fealdade que por aí vai)
bom fim de semana


sábado, 11 de outubro de 2014

Planos



Um humano e um planeta, assim, parece uma imagem de um deus no paraíso.



Muito ao perto, uma flor, um poema, o mundo ainda é fabulosamente lindo.



O pior é a meia distância, o plano intermédio.



Neste, vivemos o dia a dia. Se o real se reduz à nossa percepção, poderá este ser o plano ilusório ?

[wishful thinking]


domingo, 7 de setembro de 2014

Muito mal tratado(s) na Ryanair, para que conste


Já tinha assistido a coisas desagradáveis, mas nada como o que me/nos aconteceu no vôo Ryanair para Rennes. Não vou aqui relatar, porque não é esse o estilo do Livro, fazer queixa ou reclamação de algo ou de alguém e esmiuçar detalhes mais ou menos privados.

Diz-se que tratam os passageiros como gado, foi mais ou menos como me senti tratado. Alguns amigos contrariavam, que é só maldizer de uma companhia barata, que a Ryanair é impecável e competente; pois não senhor, pelo menos emprega gente com elevado nível de grosseria e incompetência.

Por mal de mim, terei de recorrer a essa empresa porque domina quase completamente a oferta de rotas a partir do Porto. É aliás isso que lhe dá a prepotência de que abusa com a maior das impunidades: que me adianta reclamar ? Toda a gente precisa e recorre à Ryanair, e eles podem dispensar passageiros como eu, não precisam de ser sequer decentes, já nem digo afáveis. Basta-lhes ser baratos e pontuais.

Fica aqui este vago desabafo, para que conste, sem nomes nem detalhes. Para mim, a Ryanair nunca mais será 'pessoa de bem' - é uma reles espelunca de saldos.

Às vezes, não terei outro remédio senão lá entrar.



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Canção do entardecer, de Zoltán Kodály: beleza incómoda ?



Canção do Entardecer (Esti Dal) de Zoltán Kodály


Como muitas outras obras, este cântico levanta o eterno e estéril problema de se apreciar devidamente obras de referência religiosa explícita, sendo um ateu irredutível como eu.

Na maioria dos casos, ignoro o texto, só tomo conhecimento dele se for indispensável (Mahler, por exemplo, ou Brahms), tentando colocar as coisas em perspectiva histórica e civilizacional. Em regra aprecio a música-pela-música, o que basta por completo se for genial. Mas no caso de um poemazito de paixão cristã como este ? A obra é de 1938, já não havia 'necessidade' histórica,  a não ser como contraponto ao nihilismo centro-europeu. Tal como sucede com a música de Arvo Pärt, ainda mais recente, a minha dificuldade de lidar com esta religiosidade aumenta na medida em que a obra é contemporânea (mas a música de Pärt é genial).

Não tem explicação porque me arrepio todo com esta Canção do Entardecer num "flash mob" filmado em Budapeste (no fim deste post).  Sinto que o momento deve ter sido único, sublime, fora deste mundo, cósmico. E contudo, se o texto fosse em português, quanto me incomodaria ! Compor obra de fé nos dias de hoje é mesmo estranho.

Cioran escreveu que, sem Bach, Deus seria um tipo de terceira ordem. Mas Bach certamente não pensava asssim - e compôs toda a sua obra para a glória de Deus. Handel, Vivaldi, Mozart, Beethoven, Bruckner, e agora Gorecki, Gubaidulina ou Pärt, escreveram algumas das mais inspiradas, empolgantes e entusiásticas odes à fé e à divindade cristã.

Os maçons iludem esta questão com um ersatz - veneram uma inteligência divina abstracta, espécie de causa primeira, sem a nomearem Deus. Um recurso manhoso que os dispensa de rezar ou prestar culto. Mas o que todos esses compositores sempre compuseram em honra a Deus foram justamente rezas e cânticos de culto. Liturgias. O Deus deles é aquele mesmo que é representado na Terra pela igreja e pelo clero. Isso torna as coisas mais dificeis, mesmo para maçons.

Há um grupo islandês que faz música aparentada com a dos Pink Floyd - os Sigur Rós (que aliás gosto de ouvir) - e que recorreu a outro truque para a sua música celestial, cósmica, planante e de sonoridade litúrgica: inventou uma linguagem fictícia. Com base nos antigos escritos nórdicos (sagas), criou palavras e frases sem significado que valem como 'tra la la' mas são articuladas como frases verdadeiras, É como ouvir esperanto. Assim, a música vale por si, o canto vale como música, o texto é só mais um elemento sonoro.

Uma solução, para mim, pode ser: ouvir os Requiems e as Oratórias e as Missas como se fossem cantados dessa maneira, numa linguagem cifrada desse tipo. Sem significado. Et incarnatus est é o mesmo que tse sutanracni te. The Lord is My Shepherd equivale a drehpehs ym si drol eht.

Não faltará quem pense que assim não se pode apreciar a obra na sua globalidade, no seu contexto, na sua identidade, na sua 'alma'. Tal como na pintura, onde um Rafael só pode ser apreciado por quem domina e compreenda a mensagem bíblica. Discordo, a atitude ateia é também cultural, é uma conquista de cultura e civilização de que não abdico, e é perfeitamente compatível com a compreensão dos textos sagrados. Eu não acuso os crentes de não serem capazes de apreciar Paul Klee.

Portanto, reivindico todo o direito de me emocionar e maravilhar com Rafael ou a Missa Solene, sem precisar de deus para nada.

Esti Dal de Kodály em Budapeste, 2013




segunda-feira, 23 de junho de 2014

Ars - no meio de salinas de Ré, um porto e a torre sineira mais alta da ilha.


Há certamente aldeias ou vilas mais merecedoras da classificação "plus belles villages de France" do que esta Ars-en-Ré; embora a ilha tenha sido invadida e saqueada por ingleses e holandeses, falta a Ars fazer-nos sentir História ou Arte. Mas é certamente airosa, florida, de arquitectura coerente e ainda autêntica ao longo das ruas e vielas ("venelles"). Casas de um a três pisos no máximo, fachadas brancas ou branco-sujo, janelas com portadas ou venezianas de madeira à boa maneira mediterrânica em cores suaves - azul, verde, cinzento.

E, claro, as omnipresentes bicicletas, às centenas.

A entrada da vila, junto ao porto, bordada de esplanadas.

Aquele edifício junto ao cais, à esquerda, foi em tempos a estação de combóio que serviu a ilha até 1935.

Lá dentro da vila é assim: caminhando ou pedalando, sempre um gosto.

Portadas venezianas e rosas tremedeiras, o bilhete postal.

O centro é a Place Carnot: tem a igreja de St. Étienne e a Maison do Sénéchal, com o seu torreão muito peculiar.

O portal da Igreja, romano-gótica (séc XI-XV)

A invulgar torre sineira, em flecha octogonal de 40 metros.

Esta casa já foi uma mercearia (épicerie) durante anos, agora é uma épicerie gourmande - ou seja: serve também comidas e bebidas. O pratinho de gambas estava excelente !

A Maison du Sénechal, único exemplar de edifício renascentista em pedra, começou por ser a sede do governador da ilha - o colector de impostos para o Rei e para a República.

Não faltam ângulos bonitos na Place Carnot.

Mas há surpresas modernas, como esta galeria de arte que muito me agradou:

Gilles Candelier - Paradoxes

O passeio à noite - e eram mornas as noites de Junho - sabia pela vida, depois de bem comido e regado.


La doulce vie. É difícil encontrar mais luminosa e harmoniosa suavidade.