segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Canção do entardecer, de Zoltán Kodály: beleza incómoda ?



Canção do Entardecer (Esti Dal) de Zoltán Kodály


Como muitas outras obras, este cântico levanta o eterno e estéril problema de se apreciar devidamente obras de referência religiosa explícita, sendo um ateu irredutível como eu.

Na maioria dos casos, ignoro o texto, só tomo conhecimento dele se for indispensável (Mahler, por exemplo, ou Brahms), tentando colocar as coisas em perspectiva histórica e civilizacional. Em regra aprecio a música-pela-música, o que basta por completo se for genial. Mas no caso de um poemazito de paixão cristã como este ? A obra é de 1938, já não havia 'necessidade' histórica,  a não ser como contraponto ao nihilismo centro-europeu. Tal como sucede com a música de Arvo Pärt, ainda mais recente, a minha dificuldade de lidar com esta religiosidade aumenta na medida em que a obra é contemporânea (mas a música de Pärt é genial).

Não tem explicação porque me arrepio todo com esta Canção do Entardecer num "flash mob" filmado em Budapeste (no fim deste post).  Sinto que o momento deve ter sido único, sublime, fora deste mundo, cósmico. E contudo, se o texto fosse em português, quanto me incomodaria ! Compor obra de fé nos dias de hoje é mesmo estranho.

Cioran escreveu que, sem Bach, Deus seria um tipo de terceira ordem. Mas Bach certamente não pensava asssim - e compôs toda a sua obra para a glória de Deus. Handel, Vivaldi, Mozart, Beethoven, Bruckner, e agora Gorecki, Gubaidulina ou Pärt, escreveram algumas das mais inspiradas, empolgantes e entusiásticas odes à fé e à divindade cristã.

Os maçons iludem esta questão com um ersatz - veneram uma inteligência divina abstracta, espécie de causa primeira, sem a nomearem Deus. Um recurso manhoso que os dispensa de rezar ou prestar culto. Mas o que todos esses compositores sempre compuseram em honra a Deus foram justamente rezas e cânticos de culto. Liturgias. O Deus deles é aquele mesmo que é representado na Terra pela igreja e pelo clero. Isso torna as coisas mais dificeis, mesmo para maçons.

Há um grupo islandês que faz música aparentada com a dos Pink Floyd - os Sigur Rós (que aliás gosto de ouvir) - e que recorreu a outro truque para a sua música celestial, cósmica, planante e de sonoridade litúrgica: inventou uma linguagem fictícia. Com base nos antigos escritos nórdicos (sagas), criou palavras e frases sem significado que valem como 'tra la la' mas são articuladas como frases verdadeiras, É como ouvir esperanto. Assim, a música vale por si, o canto vale como música, o texto é só mais um elemento sonoro.

Uma solução, para mim, pode ser: ouvir os Requiems e as Oratórias e as Missas como se fossem cantados dessa maneira, numa linguagem cifrada desse tipo. Sem significado. Et incarnatus est é o mesmo que tse sutanracni te. The Lord is My Shepherd equivale a drehpehs ym si drol eht.

Não faltará quem pense que assim não se pode apreciar a obra na sua globalidade, no seu contexto, na sua identidade, na sua 'alma'. Tal como na pintura, onde um Rafael só pode ser apreciado por quem domina e compreenda a mensagem bíblica. Discordo, a atitude ateia é também cultural, é uma conquista de cultura e civilização de que não abdico, e é perfeitamente compatível com a compreensão dos textos sagrados. Eu não acuso os crentes de não serem capazes de apreciar Paul Klee.

Portanto, reivindico todo o direito de me emocionar e maravilhar com Rafael ou a Missa Solene, sem precisar de deus para nada.

Esti Dal de Kodály em Budapeste, 2013




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