[Vou quebrar a sequência de publicações de viagem com este 'ensaio'.]
Nunca ninguém foi capaz de definir o tempo, já se sabe. Rios e rios de tinta foram gastos desde pelo menos os pensadores da antiga Grécia. Podia aqui listar centenas, milhares de citações, a maioria hoje disparatadas, como a do tempo como "eternidade", uma duração sem fim em que estamos mergulhados. A mais genial e eterna,
Aristóteles, “O tempo é o número do movimento", ou "o tempo é a medida da mudança" - (conforme as traduções)
estabeleceu a base para a filosofia do tempo como ilusão dos sentidos, construção da mente sem correspondente realidade física. Quem deu cabo desta abordagem, cerca de um milénio mais tarde, foi Isaac Newton, quando descreveu com precisão de relógio o movimento dos planetas, baseado num tempo absoluto e universal, um tempo matemático (a variável contínua t), que havia de reinar por vários séculos - foi a era da Ciência positiva e determinística. Perdurou até à Relatividade de Einstein, que fez uma síntese dos dois e veio dar novo significado ao tempo matemático: ele depende de cada observador, da sua posição no espaço e no campo de forças gravitacionais. O tempo de A nos Himalaias não é o tempo de B no fundo do Canyon do Colorado, mesmo que a diferença seja mínima. O tempo de A, em órbita num satélite próximo do Sol, não é o tempo de B, pousado em Marte. Os tempos pessoais aproximam-se entre vizinhos quietos, afastam-se entre viajantes longínquos. O tempo é movimento, sim, Aristóteles, mas também obedece à Matemática, Newton.
Ora bem: agora, nem isso ! Nem um, nem outro. E pouco adiantam os argumentos filosóficos: o tempo não é um conceito, nem um fenómeno, não é uma realidade, não é uma ilusão; as últimas notícias da Ciência dizem simplesmente que "o tempo não existe", ou melhor, "não é necessário, não faz falta" ao nível da Física de partículas, da Física Quântica. No mais profundo e íntimo que se alcança do nosso mundo, não há passagem do tempo, os acontecimentos podem suceder de trás para a frente, tudo o que existe são "campos interactivos", uma dinâmica de relações e interferências que não têm passado nem futuro, que só existem conosco, quando são observadas, redes de sobreposições de flutuações quânticas probabilísticas. Quite a mess, I'd say.
Quânticas ? Sim, descontinuas, granulares, por pequenos 'saltos', numerados; numa escala tão minúscula que não admira que as 'Leis da Física' deixem de se aplicar, que o tempo deixe de fazer sentido ! Isso ajuda alguma coisa a compreender o tempo à nossa escala ? Bom, também não existe 'tempo' à escala máxima: tanto quanto sabemos, o Universo também não tem história temporal; simplesmente existe (?), e pronto. Mais uma vez, campos de forças múltiplos - gravítacionais, magnéticas - em infinitas camadas sobrepostas que não têm passado nem futuro... mas neste caso aparentemente contínuas, devido à escala que desfoca, torna 'baça' a estrutura quântica. O nosso problema com o mundo, com o conhecimento do mundo, é termos dele uma visão míope, baça, estrábica ! Ah, tivéssemos olhos quânticos, que Universo tão diferente teríamos à vista !
De tudo isto, resulta estar a correr vulgarmente de novo a velha ideia de que o tempo é uma ilusão, uma construção da mente humana para descrever e poder agir na sua pequena paróquia do Universo. Mas isso não pode também ser verdade: que nascemos, crescemos, adormecemos e acordamos, até finalmente morrer, não é uma ilusão, e pior que isso, tem uma direcção única e irreversível. Isso está relacionado com um conceito físico fundamental chamado Entropia: a Entropia nunca diminui num dado sistema isolado, aumenta sempre. A Natureza, num sistema restrito do nosso mundo, tende sempre a desorganizar-se, vai no sentido do caos, da indiferenciação, e é esse grau de (des)organização que a Entropia indica.
Quando se refere "sistema", neste caso, refere-se uma parte do Universo isolada ou fechada a influências externas. Por exemplo, o Sol vai no caminho irreversível da desagregação e do caos: não é alimentado, não recebe energia do exterior. Um ser humano enterrado vivo numa urna hermética vai no mesmo sentido: pó... Uma vela que vai ardendo consome-se até ser cinza. Uma nave espacial com as baterias e painéis solares mortos, só pode desagregar-se, tão lentamente como um calhau de granito, por muitos biliões de anos (neste caso, se a nave "ardesse" seria até uma diminuição de entropia, resultante de calor externo). Caso a Entropia pudesse diminuir nestes sistemas, teríamos uma vela eterna e cada vez mais brilhante, um cadáver ressuscitado, as baterias dos carros cada vez mais carregadas... enfim, "disparates" que o senso comum já interiorizou sem saber que se trata de Entropia.
"O tempo é em si mesmo causa de destruição mais do que de geração."
Aristóteles de novo, precursor !
Neste nosso "sistema" onde vivemos, o Universo conhecido, não se pode voltar atrás por força da inflexível Lei da Entropia. Será essa Lei que nós traduzimos na nossa mente por "tempo" ? Acontece que pode haver (em geral há) perturbações externas que diminuam a Entropia. Um exemplo bonito que li é este: precisamos de energia para viver; mas se fosse só de energia, bastava estarmos ao Sol a receber fotões, como um painel, e não precisávamos de alimento. Na verdade, o que precisamos, como seres altamente complexos e organizados e de baixa entropia, para mantermos baixa a nossa entropia ! Por isso comemos alimentos que, eles próprios. são coisas vivas, portanto fontes de baixa entropia. Também por isso é que nunca ninguém se podera alimentar só de comprimidos ou produtos feitos em laboratório: temos de ingerir coisas vivas que nos restituam baixa entropia ... ou seja, nos dêem mais TEMPO ! Pois é, estar débil ou moribundo é um sinal de aumento da entropia do nosso corpo...
Num "pequeno" mundo à nossa volta, a entropia cresce, e o tempo como variável é indispensável e não tem nada de ilusório. Não se poderia enviar naves e satélites em rotas interplanetárias sem entrar com a variável tempo, que é intrínseca às equações relativistas do espaço-tempo que Einstein escreveu. Equações que mostram por outro lado que o tempo não é único e universal - cada um tem o seu tempo, o tempo do astronauta que regressa não é o de quem cá ficou. Nuns casos a décalage é ínfima, difícil de detectar; noutros já é significativa, tanto maior quanto maior for a distância e as diferenças de forças gravitacionais. Talvez as forças gravitacionais e outras sejam a única "coisa" que realmente existe, os tais campos de forças, e talvez o tempo seja uma manifestação em simultâneo dos campos de forças e da Entropia. E ainda também da limitação da velocidade da luz. Mas o que é velocidade se não houver tempo? Sem tempo, a propagação é instantânea, "velocidade" não tem sentido...
Foi aliás com base numa diferença de tempo real, mensurável, que decorreu a recente experiência que conduziu à detecção de ondas gravitacionais: a diferença dos tempos prórios de cada onda/ partícula é que tornou possível detectá-las.
As certezas sobre o tempo são portanto escassas. É certo que: 1) ao nível fundamental das partículas constituintes da matéria, não existe tempo, nem entropia. Mas se recuarmos no "zoom" afastando-nos para escalas maiores, a certa altura, em certa situação, quando o mundo das partículas fica desfocado, vago, indistinto, começa a haver entropia e tempo. E é também certo: 2) que as equações que eram indiferentes à variável t passam então a reflectir a "flecha" do tempo, os fenómenos deixam de ser comutativos, ou seja, deixam de poder suceder num sentido ou no seu inverso temporal.
Portanto, a concluir, se ilusão houvesse não era humana, mas sim uma ilusão (tipo miopia) provocada pela nossa escala de observação, e é a mesma escala de observação de qualquer ser vivo no Universo, porque não existe vida ao nível das particula quânticas... Quando Schopenhauer escreve "Ninguém viveu no passado e ninguém viverá no futuro. Apenas o presente é a forma de toda a vida.", está afinal a descrever o mundo quântico, não o mundo humano. "Ninguém" será um fotão ou um gravitão. Para o Homem, mais acertado seria dizer que toda a gente vive no passado, o passado é o modo de toda a forma de vida, e não o presente: tudo o que a nossa mente abarca é já passado (ou melhor: várias camadas de passado), o presente em si mesmo é não-existente, sem sentido. Nem começou e já foi. O meu presente não é o teu. O presente, sim, é uma ilusão.
O tempo, então.
Concluo eu, o tempo seria, por exemplo, talvez, o modo como cada um, à sua escala no Universo, e na sua posição relativa aos campos gravitacionais, assume a sua entropia. Quer dizer, afinal, a sua História. Nesse sentido, é um tempo também psicológico... Bom, escrevi isto agora, depois de muita leitura ao longo de anos. Serve como "minha" definição, relativa a eu estar sentado aqui ao computador, neste estado de entropia, a 41.1579° N, 8.6291° Wº, no planeta Terra, Sistema Solar, sessenta e tal milhões de anos depois da extinção dos dinossauros, mais coisa menos coisa (só não devo dizer "agora", nem as horas que são no meu relógio !). Qualquer outro terá uma outra definição mais a seu gosto, mas para nenhum de nós o tempo é apenas ilusão.
E depois, também para mim, há sempre um argumento definitivo: então e a Música ?! Se o tempo é uma ilusão, se o passar do tempo não existe, como é possível a Música ?
Leitura 'obrigatória' - foi este livro que desencadeou o meu texto:
Carlo Rovelli, L'Ordre du Temps , Flammarion
trad: A Ordem do Tempo, ed. Objectiva
(cuidado com as traduções de artigos científicos).
------------------------------------
Nota: todas as imagens são "artísticas", não procuram ilustrar qualquer fenómeno científico.
Sem comentários:
Enviar um comentário