quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

o Aleph, de Borges a Ridley Scott


Nem perto estive de ver o Aleph, mas vi muito mundo. Afinal, a cave é escura e com o esquecimento (que Borges agradecia como benção) perduram no tempo apenas sombras e sfumatos.

    " Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; logo compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem redução de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto rompido (era em Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-se em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajes que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma quinta de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, num só tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava admirar-me de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto de dormir sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam infinitamente, vi cavalos de crina em turbilhão, numa praia do mar Cáspio ao amanhecer, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões postais, vi numa montra em Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marés de tempestade e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me estremecer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente tinha sido Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, desde todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural, cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem observou: o inconcebível universo.
à Senti infinita veneração, infinita lástima."
                                                                                           
                                                                                               J. L. Borges, O Aleph

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Nas suas últimas palavras, o replicant Roy de Blade Runner também descreveu cenas do seu Aleph único - talvez o autor dessas frases se tenha inspirado em Borges:
à ' Vi Feixes de Raios-C cintilando na escuridão junto ao Portal de Tanhauser' (...)


Porque será que estas coisas descritas em palavras têm mais poder imagético que uma cena observada ? Tantas vezes a descrição lida de um lugar supera o que mais tarde olharemos numa visita há muito ansiada. Nunca imagem nenhuma, foto ou vídeo, atingirá o poder sugestivo e evocativo da palavra escrita.


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