terça-feira, 3 de março de 2020

Auyuittuq, uma utopia da Natureza na ilha ártica de Baffin



Não deve haver outro local no nosso planeta onde pareça tanto estarmos longe dele, noutra dimensão, algures no Cosmos. O vale de Akshayuk e as suas montanhas habitadas por deuses Asgard, Odin e Thor compõem um panorama utópico, e dão um arrepio mesmo que estejamos passeando só a vista por imagens fotográficas. Nos relatos de aventureiros sortudos que lá foram aprendi que uma coisa impressionante que as fotos não mostram é a brutal intensidade do silêncio, um silêncio que ecoa nos cumes e nas encostas, só o silvo do vento a soprar num monumental vazio de rocha e gelo. Mais de cem quilómetros à volta sem ninguém.


Auyuittuq significa "terra que nunca degela" em inuktituk, a língua dos inuit; isso deve-se à enorme calote glaciar Penny Ice Cap, com 6000 km2, que podia quase ser considerada um manto de gelo. Fica a norte do Círculo Polar Ártico e no interior da ilha canadiana de Baffin.


A povoação que dá entrada para o Parque é Qikiqtarjuaq, uma comunidade tradicional inuit, situada numa baía da Ilha de Broughton, no Estreito de Davis.


População: ~ 520
Coordenadas:  67° 33’ N64° 01’ W


Qikiqtarjuaq está situada em frente da fronteira norte do majestoso

Auyuittuq National Park

Vista sobre o Akshayuk Pass e o Lago Summit.

Com uma extensão de mais de 20 000 km2 e 800 km de costa recortada de fiordes, o Parque Nacional de Auyuittuq é conhecido pelos imponentes picos e falésias de granito salpicadas de gelo e neve cintilante, pelos glaciares, lagos e cascatas. A zona mais cénica é o Akshayuk Pass, que segue o vale do Rio Weasel, ladeado por três montanhas invulgares - Mount Asgard, Mount Odin‎ e Mount Thor; e contém ainda uma grande calote de gelo - Penny Ice Cap‎ que cobre quase 25% da área (~ 6000 km2).

O Rio Weasel nasce no centro da ilha, no Lago Summit, e corre para sul até desaguar em Pangnirtung (aldeia onde houve um posto da Hudson Bay Company); alimenta-se sobretudo com águas do degelo que podem formar uma corrente violenta.


Comecemos pelo Monte Asgard

O Monte Asgard é uma dupla torre quase a pique, de topos achatados.

Com 2015 metros, o Monte Asgard oferece paredes verticais muito procuradas para escalada. A designação vem do 'Olimpo' nórdico: Ásgarðr é o recinto ou moradia dos deuses.





Quase em frente ao Asgard fica o Monte Odin, nome também inspirado na mitologia nórdico-germânica (o Wothan de Wagner) - Odin é um dos deuses fundadores.

Reflexos no rio Weasel


Quase sempre rodeado de névoa, o Odin atinge 2 147 metros, e tem o seu glaciar próprio - Weeping Glacier, o glaciar que chora - em curva descendente.  Ao longe já se vê Mount Thor.


Equipa em trenó no sopé do Monte Odin.


Penetrando mais no Pass, começa a aproximar.se o Monte Thor, sempre acompanhado em baixo pelo rio Weasel e depois o lago:


Apesar da falta de floresta, é um panorama avassalador.


O Parque foi criado em 1976; o terreno é basicamente tundra ártica em vales glaciares, e era usado desde há milhares de anos pela população inuit como corredor de passagem nordeste - sudoeste, entre duas costas. A fauna é limitada - coelhos, corujas brancas, falcões, arminhos, raposas, e raramente caribous ou algum urso polar.

Monte Thor
Coordenadas: 66°32′ N, 65°19′ W

A curvatura negativa, quase em boomerangue, do Monte Thor.


O Thor tem o maior desnível vertical do planeta - 1 250 m em pura queda, num ângulo próximo de 105 graus; é também a mais alta face rochosa ininterrupta, com mais de 1 km. A primeira escalada foi em 1953.

Apesar da localização remota, é procurado por montanhistas pela maior descida em 'rappel' do mundo, realizada pela primeira vez em 2006. Thor é o bem conhecido deus nórdico do trovão (origem de thunder e thursday), da força e fertilidade.

Penny Ice Cap


Muitas designações nesta zona provêm de exploradores britânicos (Davis, Baffin) ou capitães baleeiros; este foi o caso do escocês William Penny, que por aqui aportou no séc. XIX.

Um dos glaciares que correm na Penny Ice Cap. O gelo, com espessura até 300 m,  cobre o vale e cadeias montanhosas de granito.


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Um poema de Grace Wells:

                                  No Museu do Silêncio

                                  Para completo efeito encorajámos
                                  que ouças primeiro o oposto -
                                  nesta sala temos gavetas de ruído.

                                  Trânsito na estrada. Rezinguice de
                                  crianças. Um festival rock.
                                  Uma ala prisional.

                                  Passando esta dupla porta
                                  encontrarás o sussurro
                                  que cai com a neve.

                                  No andar de cima, replicámos 
                                  a Biblioteca Britânica
                                  e uma catedral de Espanha.

                                  E a mostra continua,
                                  ouvirás as diferentes qualidades
                                  do silêncio, a variedade do seu alcance.

                                  O nosso arquivo tem gravações
                                  de lugarés por todo o globo:
                                  Quietude ártica de Baffin, o escaldante Sahara.

                                  Oferecemos amostras do fundo do oceano
                                  e de grutas escavadas na Terra.
                                  E do espaço exterior.

                                  A nossa última câmara está ligada em directo
                                  dos Himalayas. Recomendamos
                                  que te deites e escutes.

                                  Os visitantes podem assinar o livro
                                  antes da saída.

                                                                                                                    in Dark Mountain, vol. 6

Um filminho aqui:
https://ultima0thule.blogspot.com/2019/10/fabulous-baffin-island-auyuittuq-video.html


3 comentários:

Arnaldo Leles disse...

Grato por mais esta revelação. Tenho certeza que não quero morrer antes de conhecer este lugar. Mesmo que eu também morra de hipotermia... terá valido a pena. O vídeo já me emocionou. Eu fico imaginando o que é estar neste paraíso inóspito e silencioso. Minha filha esteve na Islândia que é também um local maravilhoso. Eu nunca fui a um Glaciar, mas acho que toda aquela região dos fiordes com a discreta fauna, está seriamente ameaçada pela ação antrópica. Esta é a última chance de quem tem "alma OUTSIDER", de ver de perto o paraíso.

Mário R. Gonçalves disse...


Não seja pessimista, temos décadas, para não dizer séculos, para visitar sítios como este. O problema é só saúde e vida curta.

SilverTree disse...

Não só o lugar é impressionante (e eu ando particularmente desejosa destas imensidades, nem que seja só através de um ecran), como gostei tanto, mas tanto do poema da Grace Wells (vou levar emprestado para o meu canto, espero que não se importe).