sexta-feira, 24 de maio de 2019

Com Matt Gaw, a remar e nadar no rio Granta ( Cam ) - 2ª parte


Tem sido mesmo uma das melhores leituras dos últimos tempos, "The Pull of the River" de Matt Gaw. Quase fiquei a conhecer o 'carácter' desses  rios que Matt e James percorrem na Pipe, a canoa em kit-pack. A côr da água, variando de todos os tons de azul e verde até aos castanhos e ao negro; as cortinas que os salgueiros-chorões atravessam sobre o leito, os meandros, os moínhos e açudes, as rampas, as encostas de relva e trevo; os pequenos lagos naturais ou de represa, onde se pode mergulhar e nadar; a passarada diurna e nocturna - garças, guarda-rios, piscos, pilritos, melros, galinha-de-água, cotovias, corujas; os ciclistas e os corredores de jogging matinais pelos trilhos ao longo da margem; tudo isso a decorrer como cinema nas páginas de The Pull of the River, é uma permanente e animada viagenzita vista numa perspectiva nova, da água para a terra. Um rio é um pequeno cosmos.

E está tão bem escrito. Gaw tem um vocabulário rico, variado, uma grande fluência narrativa, sentido de humor, inventa neologismos, cria expectativas e vai ao céu com pequenos-grandes sucessos, às vezes apenas escassos momentos. Resultado: voltei atrás e reli vários trechos. Saltando os rios Thames e Colne, foram sobretudo o Granta (Cam), o Severn e o Caledonian que mais me seduziram, e deles deixarei alguns trechos traduzidos.  Hoje vamos pelo Granta, conhecido por Cam desde que se avizinha de Cambridge, de onde tirou o nome (ao contrário do que é costume) pois a cidade chamava-se 'Grantebrycge'.

Quando estive em Cambridge, ainda este blog não existia; falta portanto no Livro de Areia o rio Cam urbano, pelas traseiras da Universidade, punting. Mas a canoa Pipe só está à vontade "in the wild", como dizem Matt e James, os canoístas.


Um meandro apertado e a seguir entramos num bosque, permitindo descansar do sol alto da primavera que faísca sobre a água. O rio aqui tem um cheiro doce, talvez da relva e das árvores, da lenta decomposição vegetal ou simplesmente da própria água. Inclino-me deitado para trás e deixo os dedos trilhar ao longo da superfície da água, vendo-os mudar de cor conforme os mergulho mais ou menos fundo. Tinha sentido a água espessa e lenta contra a pá do remo, mas contra a pele sinto-a leve e sedosa; um suave e fresco bálsamo. A luz, filtrada pela lente verde dos ramos de árvores e arbustos, dá uma sensação de feérico crepúsculo, mesmo que ainda nem seja meio-dia. Deslizamos e sussuramos, embalados quase para dormir, mas logo somos de novo aturdidos pelo clarão do sol na água, ou pelo grito meio coaxado de uma galinha de água.

As nossas gargalhadas, as chapinadas e brincadeiras, ecoam nas margens levantando grunhidos e protestos dos melros.
(...)


Byron's Pool

É um alargamento do rio Cam, como uma lagoa ou barrinha sem muro *, recatada, onde a boémia estudantil da época vitoriana costumava banhar-se, sendo particularmente apreciado mergulhar nu quando a água era iluminada pela lua cheia. Virgínia Wolf com Rupert Brooke foi um dos casos mais celebrados. O nome 'piscina de Byron' deriva do grande romântico inglês mas nunca se encontrou documento comprovativo de que ele lá tenha mergulhado. Fica um pouco antes de o rio entrar na área urbana, numa zona que agora é Reserva Natural.


Voltando a Matt Gaw:

Há gente a ver-nos agora, desconfiados destes estranhos que agem como catraios. Contamos até três e saltamos, braços enrolados a volta dos joelhos dobrados contra o peito, uma bomba-criança - dificilmente uma ideia aproveitável por um poeta romântico.

O ponto de imersão é sempre o momento em que o tempo se suspende. Primeiro o splash, a sensação de lodo sob os pés, depois o frio galopante. Suga-me o fôlego, os terminais nervosos aos gritos enquanto a pele se contrai. Ambos rasgamos a superfície ofegantes, inspirando ar e rindo. A tentação é saltar para fora, mas em vez disso vou atrás do James que bate braços em direcção ao açude, a minha pele reluzindo sob o barro translúcido da água. De início atabalhoado, nadando à cão, passo a braçadas vigorosas, com pontapés de rã em direcção aos juncos na margem direita, e depois rodando para o salgueiro chorão. Como um pinguim, salto para fora desajeitado, sentindo a macieza da água através dos arrepios.

Enquanto me movimento, sinto o peito aquecer, um foco de calor nascido da adrenalina e da intensa euforia.
(...)


Não devo ficar por aqui. Este livro é uma viagem preciosa, não tenho adormecido sem (re)ler uma páginas. A seguir, o Wye e o Severn.


Ah, Cambridge!

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* recentemente fizeram um muro de barragem e uma plataforma de madeira. Parece que estragaram tudo. Agora a água é choca.


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