quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Três poemas de Ana Hatherly , sobre: o Saber, a Análise, os Portugueses.

Poemas extraídos de "Um Calculador de Improbabilidades", de Ana Hatherly, ed. Quimera, 2001.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

                                      sobe o sabor do saber
                                      acima da indiferença

                                      por onde passa
                                                                o saber
                                                      passa
                                                                o sabor da diferença

                                                                                                          [de O Cisne Intacto]


A Análise

Peguei numa agulha bem fina,
enterrei a sua ponta na parte inferior
da cabeça do dedo indicador esquerdo.
Extraí uma gota de sangue. Coloquei-a
sobre a pequena lâmina de vidro, estendi-a
bem e examinei-a ao microscópio, aumentada
200 vezes, vi uns discos brilhantes como sóis.
Comecei a contar mas desisti. Eram em número
excessivo. A gota devia conter cerca de
5.000.000 de discos. Aumentei portanto
a potência do microscópio para 1.000 e
colori uma das células. Vi uma armação em
forma de rede de qual pendia um grânulo de
estrutura complicada rodeado por muitos outros
mais delicados. Aumentando a potência do
microscópio para 5.000 os cordéis que formavam
a rede revelaram-se como fios de pérolas. 
Elevei então a potência do microscópio para
100.000, seu máximo. Nas pérolas apareciam 
desenhos semelhantes aos de cristais de
neve.
Nesse momento minha irmã abre a porta e diz:
Olha que a banheira está a transbordar.


                    Balada do Português que dói

                      O barco vai
                      o barco vem

                      português vai
                      português vem

                      o corpo cai
                      o corpo dói

                      português vai
                      português cai

                      o barco vai
                      o barco vem

                      português vai
                      português vem

                      o país cai
                      o país dói

                      o tempo vai
                      o tempo dói

                      português cai
                      português vai

                      português sai
                      português dói


-----------------------------------------
Tão actual.

domingo, 2 de novembro de 2025

Um paraíso no meio da guerra - o parque Shevchenko em Kharkiv


Já aqui publiquei post sobre Kharkiv, a cidade mais mártir da Ucrânia, constantemente bombardeada. Falei também do seu excelente Museu e da magnífica arquitectura. Uma publicação de há alguns dias no Threads mostrou-me uma perspectiva do Parque Shevchenko admirável de paz e elegância.


Fundado em 1804 como Jardim da Universidade, é também Jardim Botânico e encerra um Observatório Astronómico  com cúpula de observação e um museu. 

Só quero ilustrar o jardim das fontes, que se prolonga na base de uma monumental escadaria:




É um dos sítios onde os habitantes gostam de vir esquecer as noites de terror, de rebentamentos e de casas esventradas a arder e de zumbidos inimigos sobre as cabeças que podem cair aqui ou ali em qualquer momento. Quando não há sinais de alerta e o sol ajuda, o mundo parece melhor no Parque Shevchenko.


Água a jorrar contribui para o bem estar. Rimei.


Um dos mais bonitos parques urbanos do mundo, parece-me.

Aqui vê-se a Catedral da Assunção.

Uma fonte recentemente restaurada.


Taras Shevchenko foi um poeta nacionalista Ucraniano, nacionalista no sentido de melancolia e messianismo patrióticos. Numa época como a que se vive agora, compreende-se que seja objecto de culto.

Fica aqui um poema dele de que gostei, apesar do desânimo:

                                Refulgem as luzes, há música a tocar,
                                a música chora, uiva;
                                Como um belo e valioso diamante,
                                os olhos dos jovens brilham de alegria,
                                à luz da esperança, à chama do prazer;
                                lampejam os olhos, pois à vista
                                de inocentes tudo parece bem.

                                E todos riem, riem,
                                E todos dançam. Só eu,
                                triste maldição, olho
                                e em segredo choro, choro.

                                Por que estou a chorar? Talvez lamente
                                que, sombria como um dia de chuva,
                                a minha juventude, inútil, já passou.

[tradução livre minha]



Kharkiv, grande cidade de Cultura, capital europeia da coragem.


sábado, 25 de outubro de 2025

'O Liberty thy choicest treasure' : luta pela liberdade segundo Handel / Morell


Na ópera Judas Maccabaeus de Handel, chamou-me a atenção esta quadra:

O liberty, thou choicest treasure
Seat of virtue, source of pleasure!
Life without thee knows no blessing,
No endearment worth caressing 

             Ó liberdade, mais precioso tesouro 
             Lugar da virtude, fonte de prazer! 
             A vida sem ti não conhece alegria 
             Nem afecto que peça carinhos.

Isto escreveu Thomas Morell, libretista de alguma das mais belas óperas de Handel, em 1747, exaltando a libertação da população da Judeia - os Israelitas - da ocupação Síria Helenística (= Império Selêucida) em 134 AC, a chamada Revolta dos Macabeus. Muito actual portanto. Ouçamos então O Liberty, em 3 versões:

Nuria Rial, Rolf Beck

Susan Gritton, uma soprano mais poderosa, com o King's Consort

Para uma versão 'fora de moda' com uma voz sublime à maneira antiga:
Janet Baker , com a English Chamber Orchestra, dir. Mackerras
------------------------------------------------------------

Já mais para o fim do Judas Maccabaeus, conseguida a vitória e a paz, Handel oferece um novo hino:

O Lovely peace

O lovely peace, with plenty crown'd, 
Come, spread thy blessings all around. 
Let fleecy flocks the hills adorn, 
And valleys smile with wavy corn. 
Let the shrill trumpet cease, nor other sound 
But nature's songsters wake the cheerful morn

          Ó paz querida, premiada de fartura,
          Vem, espalha as tuas graças em redor.
          Que os montes se adornem de rebanhos felpudos,
          E os vales sorriam com o milho a ondular.
          Que as trombetas se calem, e nenhum outro som
          Só o canto da natureza ao despertar a manhã.

Nuria Rial de novo, em dueto com Lucia Duchonova e com a Elb Barockorchester,  Rolf Beck 


Sarah Connolly, Rosemary Joshua
Uma versão mais pausada da Scottish Chamber Orchestra com William Christie