domingo, 23 de março de 2025

Primavera, dois poemas de Maya C. Popa


Para já a Primavera é um Inverno prolongado, se há flores estão murchas da chuva e do vento, se há sol e calor é noutras paragens. Ouvem-se tambores de guerra, cada vez mais fortes. É a Primavera do meu descontentamento. A poeta romeno-americana Maya C. Popa (n. 1989) é, nesta situação, um braço de apoio para a melancolia.

Spring

Time persists, yes, I can see there are new branches.

The grass, first in a line of transformations,
seemingly risen overnight.

Color is pouring back into the hours,
or forgiveness, whatever the case may be.

With one decisive tug at the earth, the robin’s drawn forth
a shimmering worm,

with such precision, it is almost a cruel pleasure.

This, the nightmare we dreamed but did not wake from.

Time is passing, I concede. A squirrel leaps
from one branch to another.

A hawk studies the field at dusk.

The park announces the season over and over
to no one,

and the silence cranes to listen.

Terraces of light now that the day is longer.

When joy comes, will I be ready, I wonder.

[in 'Wonder is the origin of Wound']

                 Primavera 

O tempo persiste, sim, posso ver que há ramos novos.

A relva, primeira de uma sequência de mudanças,
parece ter crescido durante a noite.

A cor derrama-se de novo com o passar das horas,
ou o perdão, conforme seja o caso.

Com um puxão decisivo na terra, o tordo extraiu
um verme cintilante,

com tanta precisão, é quase um prazer cruel.

Este, o pesadelo que sonhámos, mas do qual não acordámos.

O tempo vai passando, admito. Um esquilo salta
de um galho para outro.

Um falcão estuda o campo ao anoitecer.

O parque anuncia a estação uma e outra vez
para ninguém,

e o silêncio prolonga-se para ouvir.

Terraços de luz agora que o dia é mais longo.

Quando a alegria chegar, estarei eu capaz, questiono.




February Clear

Sky rinsed blue above the yellow grass and wind-shorn clouds as thin as mist - how often I have failed to look when looking would have changed me. I can't name much beyond the obvious handful of features of the patient whole, branches poised for next month's bloom, triangle of geese, the peat set low against the largest rock formations the wind interrupts repeatedly against, and the tree that grows at such a slant it tests the verdict of the eye, sending mind down roots as serious and sure and green as sunlight's own renewing. 


               Limpeza de Fevereiro

Céu lavado de azul acima da erva amarela e nuvens tosquiadas pelo vento tão finas quanto névoa - quantas vezes deixei de olhar quando olhar poderia ter-me mudado. Não consigo referir muito para lá do punhado óbvio de características deste sereno todo, galhos prontos para a floração do mês que vem, triângulo de gansos, o mato rasteiro junto às maiores formações rochosas que o vento interrompe sem cessar, e a árvore que cresce numa inclinação tal que desafia o veredicto dos olhos, enviando a mente a descer para raízes tão sérias e firmes e verdes quanto a própria renovação da luz do sol.


sábado, 15 de março de 2025

'Dedicação', de Robert a Clara Schumann, canta Siân Griffiths , e mais


Widmung , de Robert Schumann
Siân Griffiths, mezzo-soprano e Florent Mourier, piano


          Tu minha alma, tu meu coração
          Tu minha alegria, tu minha dor,
          Tu meu mundo, onde eu vivo,
          Tu meu céu, onde flutuo,
          Ó meu túmulo, onde verti
          Com ternura a minha dor.
          Tu és repouso, tu és paz,
          Foste para mim dádiva do céu,
          Que tu me ames, dá-me virtude
          O teu olhar transfigurou-me
          Elevas-me com amor acima de mim mesmo,
          Meu espírito bom, meu melhor Eu!

Widmung é um famoso lied de Robert Schumann, uma dedicatória apaixonada à sua mulher Clara. Devia ter boas razões, ele, percebo isso quando ouço por exemplo este Ich stand in dunklen Träumen  que Clara compôs para um poema de Heinrich Heine:

Katharina Konradi, soprano, com Eric Schneider, pianoano

Clara Wieck-Schumann desencadeava paixões pela sua sensibilidade de exímia pianista, e depois de Robert não lhe faltaram amigos e admiradores, entre eles Paganini e Brahms. Os seus concertos eram aplaudidos entusiasticamente, e uma récita com o concerto nº 4 de Beethoven chegou a inspirar um poema "Clara Wieck und Beethoven"



A acabar, uma interpretação diferente (masculina) da Widmung:   

Andrew Goodwin, tenor, e Daniel de Borah, piano.

sábado, 8 de março de 2025

Nous irons comme en barque à travers le brouillard


O meu mundo é pequenino, aqui uns quintais à minha volta, e anda estralhaçado por tendências conflituosas e decadentistas que me deixam um bocado "dans la m***e", como talvez desabafasse o general Cambronne aqui e hoje. É verdade que há muito outro mundo para lá das minhas fronteiras - para lá dos Oceanos e noutros hemisférios - onde talvez reine uma despreocupação ou um optimismo que aqui sumiu desde pelo menos 2014. Talvez antes, mas não se sentia a ameaça de um veneno que alastra como agora.

Eu até gosto e tenho (às vezes) orgulho no meu mundo, é cada vez mais raro mas às vezes sim. Durante a maior parte da minha vida senti-me privilegiado, num quase paraíso terreste. Só que um lento mas rápido apodrecer espalhou-se como cinza vulcânica sobre a Europa, a Greco-romana, a do Renascimento e das Luzes, a da União, e sobre o outro lado que os Vikings descobriram. E está tão rápido esse apodrecimento nestes dias, tão intenso, numa vertigem de apocalipse, que é muito difícil acreditar ou confiar nos resistentes (em que me revejo). Le monde continue d'être sans cesse plus brutal (*) , a frase do ano.

Fui buscar a 1897, em plena Belle Époque - 40 anos de 'joie de vivre' entre guerras - um antídoto para me consolar um pouco. Bem sei que sonhar é o que resta aos desgraçados, e quando a desgraça é muita, o pobre agradece o sonho, mesmo que seja modesto: passar além da neblina:

                       Le brouillard

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles de beauté où les femmes
Sont belles comme des arbres et nues comme des âmes ;
Nous irons vers les îles où les hommes sont doux
Comme des lions, avec des cheveux longs et roux.
Viens, le monde incréé attend de notre rêve
Ses lois, ses joies, les dieux qui font fleurir la sève
Et le vent qui fait luire et bruire les feuilles.
Viens, le monde innocent va sortir d'un cercueil.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles où il y a des montagnes
D'où l'on voit l'étendue paisible des campagnes,
Avec des animaux heureux de brouter l'herbe,
Des bergers qui ressemblent à des saules, et des gerbes
Qu'on monte avec des fourches sur le dos des charrettes.
Il fait encore soleil et les moutons s'arrêtent
Près de l'étable, devant la porte du jardin,
Qui sent la pimprenelle, l'estragon et le thym.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles où les pins gris et bleus
Chantent quand le vent d'ouest passe entre leurs cheveux.
Nous écouterons, couchés sous leur ombre odorante,
La plainte des esprits que le désir tourmente
Et qui attendent l'heure où leur chair doit revivre.
Viens, l'infini se trouble et rit, le monde est ivre :
Nous entendrons peut-être, en rêvant sous les pins,
Des mots d'amour, des mots divins, des mots lointains.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Remy de Gourmont, Simone, 1897.


   Simone, veste o casaco e calça as socas negras
   Vamos como em barco através da neblina.

   Iremos às ilhas onde pinhais azul e cinza
   Cantam se o vento poente lhes penteia os cabelos.
   Vamos, o infinito atrapalha-se e ri; o mundo está ébrio:
   Ouviremos talvez, ao sonhar sob os pinhos
   Palavras de amor, palavras divinas, palavras distantes.


   Simone, veste o casaco e calça as socas negras
   Vamos como em barco através da neblina.



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* E. Macron