segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Saltinho a Zurique, com o 'opus magnum' de Verdi por Gardiner, mais ainda o Cantus de Arvo Pärt



Nos ensaios

Foi na Tonhalle Maag de Zurique, onde estive quatro dias cinzentos, frios, ventosos, chuvosos e nunca nevados, hélas. Um clima taciturno adequado a Requiems, e assisti a dois: o de Verdi dirigido por John Eliot Gardiner, com a Tonhalle e o coro Monteverdi; e o Cantus in Memoriam for Benjamin Britten, de Arvo Pärt, por Paavo Järvi e a orquestra da Estónia. Um programa em cheio, com o brinde de Mullova a tocar o esfuziante concerto para violino de Sibelius. A sala é quase nova, ainda cheira a madeira, um antigo armazém a substituir temporariamente a casa da Tonhalle.


O Requiem de Verdi é uma explosão de intensidade dramática, uma quase-ópera onde o sagrado é contraposto ao laico de forma esplendorosa, sem prejuízo da reverência ao cânone espiritual do género. Precisa de uma orquestra bem expressiva, conduzida com entusiasmo vibrante, e de um coro generosamente dimensionado capaz de lhe dar arrepios de espinha, tudo isto numa sala espaçosa onde o som se solte para o alto.

Não há melhor que o coro Monteverdi: foi magnífico, portentoso de sonoridade e espacialidade. Bem conjugado com a secção de metais  - trombetas, trombone e cimbasso (um trombone à italiana, a substituir a tuba germânica) - produziu um Dies Irae tonitruante e ao mesmo tempo bem articulado e definido. Também ajudou muito o tambor baixo, que Gardiner deixou soar forte, felizmente.

O que não ajudou foi a sala: que saudades da Casa da Música ! Comprimia fortemente o som, por vezes agressivo ou empastelado devido a uma acústica deficiente. Penso que o tecto era demasiado baixo, talvez precisasse de uma painel deflector inclinado. Só se notava com os fortissimi do coro, de resto transmitiu bem o fantástico pianíssimo - como nunca ouvi  - com que Gardiner iniciou o Requiem.

A direcção de Gardiner foi mais expressiva e obteve mais amplitude dinâmica e fluência do que aquilo a que nos habituou no barroco e romântico alemão. Nitidamente quis fazer jus ao italianismo da obra. Em parte conseguiu um compromisso com o bom gosto e precisão à inglesa: os desmandos foram sempre controlados - mesmo os mais loucos trovões do Dies Irae foram dirigidos com calculado dinamismo, e bem, ouvindo-se cada parte distintamente. O belíssimo Sanctus foi absolutamente divinal.
Eis a gravação de Gardiner em 1995:
https://www.youtube.com/watch?v=EE2tLULbwfs

Quanto aos solistas, a maior desgraça foi a substituição por doença de Luba Orgonasova por Corinne Winters, que foi bem fraquinha - também deve ter sido chamada à última hora, o programa até já estava impresso, precisando de adenda correctora. Também o baixo foi substituido, mas o turco Tareq Nazmi surpreendeu pela potentíssima voz, bem colocada, troando acima dos seus colegas. Mariana Pizzolato foi a melhor em palco, perfeita, uma excelente mezzo que o público premiou com uma grande ovação. Sala cheia.
 
Não voltarei a ouvir outro Requiem desta qualidade.

Verdi, Requiem
Tonhalle Maag, Zürich, 19 de Janeiro

dir. Sir John Eliot Gardiner,  
Coro Monteverdi, Orquestra da Tonhalle de Zurique

Corinne Winters - soprano
Marianna Pizzolato - mezzo-soprano 
Michael Spyres - tenor
Tareq Nazmi - bass

 
Winters, Pizzolato, Gardiner, Spyres, Nazmi

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No dia seguinte, o novo titular da orquestra, Paavo Järvi, dirigiu a 'sua' orquestra da Estónia em obras de Arvo Pärt, Sibelius e Shostakovich. Tivemos de gramar uma introdução à boa maneira portuguesa, com discurso de propaganda do ministro da cultura da Estónia, ufa... 

O Cantus in Memoriam of Benjamin Britten foi lindo, lindo de morrer, nos seus breves 7 minutos. Começa também num quase inaudível pianíssimo, vai crescendo até a um tutti de cordas da orquestra em ondas de som de efeito cinematográfico, de uma beleza estranha, não terrestre, decrescendo até ao toque de sino final, o toque redentor. Genial e executado na pefeição.


Depois veio Mullova, Viktoria Mullova, a starlet russa do violino, dar show com o concerto de Sibelius. Deixou muito a desejar. Fez fogacho de artífício q.b. mas foi pouco expressiva, parecia tocar o Stradivarius de forma quase mecânica, fria e indiferente, como a fazer um frete. O adagio saiu mais ou menos, o fantástico allegro em 3/4 final foi uma decepção.

A seguir ao intervalo, antes do chato pastelão que é Shostakovitch e uma das suas epopeias leninistas, ainda tivemos o Fratres de Arvo Pärt; julgava eu que, com a Mullova presente, teríamos direito à versão com o solo de violino, versão que prefiro a qualquer outra; mas foi só em orquestra de cordas, mais pobre e repetitiva, sem a intensidade dramática que aprecio no violino frenético e trágico que Arvo Pärt compôs no andamento principal.

Outras alegrias tive, como a de ver Maria João Pires abundantemente divulgada na capa do Magazin da Tonhalle Orchester que decorava várias prateleiras. Dedicada ao seu derradeiro concerto, Mozart com Haitink, também ali, na Tonhalle Maag.

Sabe bem ver que, além de CR, há outros heróis de cá admirados por lá.

Impossível terminar sem música. O Cantus de Arvo Pärt dirigido por Paavo Järvi nos Proms 2013:



O público de Zurique tem concertos deste nível dia sim, dia não. Poucas cidades desta dimensão (não maior que o Porto) têm tanta sorte.


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