Nos ensaios
Foi na Tonhalle Maag de Zurique, onde estive quatro dias cinzentos, frios, ventosos, chuvosos e nunca nevados, hélas. Um clima taciturno adequado a Requiems, e assisti a dois: o de Verdi dirigido por John Eliot Gardiner, com a Tonhalle e o coro Monteverdi; e o Cantus in Memoriam for Benjamin Britten, de Arvo Pärt, por Paavo Järvi e a orquestra da Estónia. Um programa em cheio, com o brinde de Mullova a tocar o esfuziante concerto para violino de Sibelius. A sala é quase nova, ainda cheira a madeira, um antigo armazém a substituir temporariamente a casa da Tonhalle.
O Requiem de Verdi é uma explosão de intensidade dramática, uma quase-ópera onde o sagrado é contraposto ao laico de forma esplendorosa, sem prejuízo da reverência ao cânone espiritual do género. Precisa de uma orquestra bem expressiva, conduzida com entusiasmo vibrante, e de um coro generosamente dimensionado capaz de lhe dar arrepios de espinha, tudo isto numa sala espaçosa onde o som se solte para o alto.
Não há melhor que o coro Monteverdi: foi magnífico, portentoso de sonoridade e espacialidade. Bem conjugado com a secção de metais - trombetas, trombone e cimbasso (um trombone à italiana, a substituir a tuba germânica) - produziu um Dies Irae tonitruante e ao mesmo tempo bem articulado e definido. Também ajudou muito o tambor baixo, que Gardiner deixou soar forte, felizmente.
O que não ajudou foi a sala: que saudades da Casa da Música ! Comprimia fortemente o som, por vezes agressivo ou empastelado devido a uma acústica deficiente. Penso que o tecto era demasiado baixo, talvez precisasse de uma painel deflector inclinado. Só se notava com os fortissimi do coro, de resto transmitiu bem o fantástico pianíssimo - como nunca ouvi - com que Gardiner iniciou o Requiem.
A direcção de Gardiner foi mais expressiva e obteve mais amplitude dinâmica e fluência do que aquilo a que nos habituou no barroco e romântico alemão. Nitidamente quis fazer jus ao italianismo da obra. Em parte conseguiu um compromisso com o bom gosto e precisão à inglesa: os desmandos foram sempre controlados - mesmo os mais loucos trovões do Dies Irae foram dirigidos com calculado dinamismo, e bem, ouvindo-se cada parte distintamente. O belíssimo Sanctus foi absolutamente divinal.
Eis a gravação de Gardiner em 1995:
https://www.youtube.com/watch?v=EE2tLULbwfs
Quanto aos solistas, a maior desgraça foi a substituição por doença de Luba Orgonasova por Corinne Winters, que foi bem fraquinha - também deve ter sido chamada à última hora, o programa até já estava impresso, precisando de adenda correctora. Também o baixo foi substituido, mas o turco Tareq Nazmi surpreendeu pela potentíssima voz, bem colocada, troando acima dos seus colegas. Mariana Pizzolato foi a melhor em palco, perfeita, uma excelente mezzo que o público premiou com uma grande ovação. Sala cheia.
Não voltarei a ouvir outro Requiem desta qualidade.
Verdi, Requiem
Tonhalle Maag, Zürich, 19 de Janeiro
dir. Sir John Eliot Gardiner,
Coro Monteverdi, Orquestra da Tonhalle de Zurique
Corinne Winters - soprano
Marianna Pizzolato - mezzo-soprano
Michael Spyres - tenor
Tareq Nazmi - bass
Winters, Pizzolato, Gardiner, Spyres, Nazmi
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No dia seguinte, o novo titular da orquestra, Paavo Järvi, dirigiu a 'sua' orquestra da Estónia em obras de Arvo Pärt, Sibelius e Shostakovich. Tivemos de gramar uma introdução à boa maneira portuguesa, com discurso de propaganda do ministro da cultura da Estónia, ufa...
O Cantus in Memoriam of Benjamin Britten foi lindo, lindo de morrer, nos seus breves 7 minutos. Começa também num quase inaudível pianíssimo, vai crescendo até a um tutti de cordas da orquestra em ondas de som de efeito cinematográfico, de uma beleza estranha, não terrestre, decrescendo até ao toque de sino final, o toque redentor. Genial e executado na pefeição.
Depois veio Mullova, Viktoria Mullova, a starlet russa do violino, dar show com o concerto de Sibelius. Deixou muito a desejar. Fez fogacho de artífício q.b. mas foi pouco expressiva, parecia tocar o Stradivarius de forma quase mecânica, fria e indiferente, como a fazer um frete. O adagio saiu mais ou menos, o fantástico allegro em 3/4 final foi uma decepção.
A seguir ao intervalo, antes do chato pastelão que é Shostakovitch e uma das suas epopeias leninistas, ainda tivemos o Fratres de Arvo Pärt; julgava eu que, com a Mullova presente, teríamos direito à versão com o solo de violino, versão que prefiro a qualquer outra; mas foi só em orquestra de cordas, mais pobre e repetitiva, sem a intensidade dramática que aprecio no violino frenético e trágico que Arvo Pärt compôs no andamento principal.
Sabe bem ver que, além de CR, há outros heróis de cá admirados por lá.
Impossível terminar sem música. O Cantus de Arvo Pärt dirigido por Paavo Järvi nos Proms 2013:
O público de Zurique tem concertos deste nível dia sim, dia não. Poucas cidades desta dimensão (não maior que o Porto) têm tanta sorte.
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