Terceira visita a um dos meus museus preferidos: a Kunsthaus de Zurique. Sem filas, sem multidão em frente aos quadros, e com máximas comodidades, o acesso a uma vasta colecção de obras-primas ao longo de corredores, espreitando por portas e janelas.
Começo pela exposição temporária de Janeiro, ilustrando o que se via e fazia no Salon de l'Académie de Paris no século XIX - desde o admirável ao ridículo, como diz o
título da exposição, Gefeiert und verspottet .
Muitos pintores que ficaram com nome grande para a História frequentaram esses salões, mas também mutos medíocres e outros injustamente esquecidos ou menorizados. Não vou aqui perder tempo e espaço com o 'ridículo' e o 'menor' ; deixo só o que me deu mais gosto ver, com prejuizo do tal diálogo. A mostra começa com uma escultura em bronze da suíça Adèle d'Affry (Friburgo, 1836-1879 ) que expôs no Salão de 1863 sob o pseudónmo "Marcello".
Marcello, Pythia, 1870.
Estamos entre 1820 e 1880, os anos de ouro do Salão. Várias correntes se cruzam, guerreiam, influenciam; Géricault, Delacroix, Corot, Millet, Courbet, Manet, Sisley, Monet e Renoir voltam as costas ao academismo neo-clássico, fazendo nascer uma corrente que seria chamada "modernismo", Contudo, ainda uma vez por outra revisitam os grandes temas clássicos. Outros pintores, mais acomodados ao regime e à moda, não deixam por isso de inovar à sua maneira, e com o mérito de alimentar a polémica nos salões. São estas tensões que a exposição quer mostrar.
Monet, Sur la plage de Trouville, 1870
Renoir, Au café, 1877
Provavelmente o Guerbois. Pertence à Kunsthaus.
Corot, La liseuse, 1845-50
Fantin-Latour, Oeillets, 1880
Um daqueles poucos casos em que a moldura beneficia o quadro.
Retorno à mitologia clássica:
Corot, Orfeu trazendo Euridice dos Infernos, exposto no Salão em 1861
Grande obra de Corot, onde o 'realismo mágico' das suas florestas se conjuga com uma das mais frequentadas histórias das divindades gregas.
O Styx e as almas no Hades
A trágica escapada.
Corot viu a ópera de Gluck em Paris, em 1859, que o deve ter emocionado.
Jules Dalou, Eva, 1866
Vinda do Petit Palais de Paris, era a peça central da exposição, à volta da qual se dispunham as várias 'salas'. Um belo mármore.
Um dos quadros que mais apreciei - e não conhecia - foi esta obra de Degas, pintada duranta a sua estadia em Nova Orleães :
Degas, La garde-malade, 1872-73
Degas viajou para Nova Orleães em 1872, para visitar um ramo da família. Ficou por lá seis meses, e pintou coisas muito diferentes das habituais danseuses. Neste guache, uma enfermeira vigia um quarto de doente (invisível) de onde emana uma luminosidade coada que lhe ilumina o perfil calmo mas preocupado. Está sentada numa cadeira no corredor em frente ao quarto, e tudo o que se vê como décor são linhas verticais, mais ou menos sombrias, acentuando a tensão. Contrastam com o branco e redondo da touca e da fralda da robe da enfermeira.
O quadro esteve fechado ao público durante 40 anos; agora pertence à Kunsthaus.
Foi na Tonhalle Maag de Zurique, onde estive quatro dias cinzentos, frios, ventosos, chuvosos e nunca nevados, hélas. Um clima taciturno adequado a Requiems, e assisti a dois: o de Verdi dirigido por John Eliot Gardiner, com a Tonhalle e o coro Monteverdi; e o Cantus in Memoriam for Benjamin Britten, de Arvo Pärt, por Paavo Järvi e a orquestra da Estónia. Um programa em cheio, com o brinde de Mullova a tocar o esfuziante concerto para violino de Sibelius. A sala é quase nova, ainda cheira a madeira, um antigo armazém a substituir temporariamente a casa da Tonhalle.
O Requiem de Verdi é uma explosão de intensidade dramática, uma quase-ópera onde o sagrado é contraposto ao laico de forma esplendorosa, sem prejuízo da reverência ao cânone
espiritual do género. Precisa de uma orquestra bem expressiva, conduzida com entusiasmo vibrante, e de um coro generosamente dimensionado capaz de lhe dar arrepios de espinha, tudo isto numa sala espaçosa onde o som se solte para o alto.
Não há melhor que o coro Monteverdi: foi magnífico, portentoso de sonoridade e espacialidade. Bem conjugado com a secção de metais - trombetas, trombone e cimbasso (um trombone à italiana, a substituir a tuba germânica) - produziu um Dies Irae tonitruante e ao mesmo tempo bem articulado e definido. Também ajudou muito o tambor baixo, que Gardiner deixou soar forte, felizmente.
O que não ajudou foi a sala: que saudades da Casa da Música ! Comprimia fortemente o som, por vezes agressivo ou empastelado devido a uma acústica deficiente. Penso que o tecto era demasiado baixo, talvez precisasse de uma painel deflector inclinado. Só se notava com os fortissimi do coro, de resto transmitiu bem o fantástico pianíssimo - como nunca ouvi - com que Gardiner iniciou o Requiem.
A direcção de Gardiner foi mais expressiva e obteve mais amplitude dinâmica e fluência do que aquilo a que nos habituou no barroco e romântico alemão. Nitidamente quis fazer jus ao italianismo da obra. Em parte conseguiu um compromisso com o bom gosto e precisão à inglesa: os desmandos foram sempre controlados - mesmo os mais loucos trovões do Dies Irae foram dirigidos com calculado dinamismo, e bem, ouvindo-se cada parte distintamente. O belíssimo Sanctus foi absolutamente divinal.
Eis a gravação de Gardiner em 1995: https://www.youtube.com/watch?v=EE2tLULbwfs
Quanto aos solistas, a maior desgraça foi a substituição por doença de Luba Orgonasova por Corinne Winters, que foi bem fraquinha - também deve ter sido chamada à última hora, o programa até já estava impresso, precisando de adenda correctora. Também o baixo foi substituido, mas o turco Tareq Nazmi surpreendeu pela potentíssima voz, bem colocada, troando acima dos seus colegas. Mariana Pizzolato foi a melhor em palco, perfeita, uma excelente mezzo que o público premiou com uma grande ovação. Sala cheia.
Não voltarei a ouvir outro Requiem desta qualidade.
Verdi, Requiem
Tonhalle Maag, Zürich, 19 de Janeiro
dir. Sir John Eliot Gardiner, Coro Monteverdi,
Orquestra da Tonhalle de Zurique
No dia seguinte, o novo titular da orquestra, Paavo Järvi, dirigiu a 'sua' orquestra da Estónia em obras de Arvo Pärt, Sibelius e Shostakovich. Tivemos de gramar uma introdução à boa maneira portuguesa, com discurso de propaganda do ministro da cultura da Estónia, ufa...
O Cantus in Memoriam of Benjamin Britten foi lindo, lindo de morrer, nos seus breves 7 minutos. Começa também num quase inaudível pianíssimo, vai crescendo até a um tutti de cordas da orquestra em ondas de som de efeito cinematográfico, de uma beleza estranha, não terrestre, decrescendo até ao toque de sino final, o toque redentor. Genial e executado na pefeição.
Depois veio Mullova, Viktoria Mullova, a starlet russa do violino, dar show com o concerto de Sibelius. Deixou muito a desejar. Fez fogacho de artífício q.b. mas foi pouco expressiva, parecia tocar o Stradivarius de forma quase mecânica, fria e indiferente, como a fazer um frete. O adagio saiu mais ou menos, o fantástico allegroem 3/4 final foi uma decepção.
A seguir ao intervalo, antes do chato pastelão que é Shostakovitch e uma das suas epopeias leninistas, ainda tivemos o Fratres de Arvo Pärt; julgava eu que, com a Mullova presente, teríamos direito à versão com o solo de violino, versão que prefiro a qualquer outra; mas foi só em orquestra de cordas, mais pobre e repetitiva, sem a intensidade dramática que aprecio no violino frenético e trágico que Arvo Pärt compôs no andamento principal.
Outras alegrias tive, como a de ver Maria João Pires abundantemente divulgada na capa do Magazin da Tonhalle Orchester que decorava várias prateleiras. Dedicada ao seu derradeiro concerto, Mozart com Haitink, também ali, na Tonhalle Maag.
Sabe bem ver que, além de CR, há outros heróis de cá admirados por lá.
Impossível terminar sem música. O Cantus de Arvo Pärt dirigido por Paavo Järvi nos Proms 2013:
O público de Zurique tem concertos deste nível dia sim, dia não. Poucas cidades desta dimensão (não maior que o Porto) têm tanta sorte.