"O Infinito num Junco" de Irene Vallejo é um excelente livro, mesmo que desigual. É um relato, em parte histórico, em parte ficcional, em parte pessoal, da aventura do Livro e das Bibliotecas, desde os papiros Egípcios e Gregos. São emocionantes as páginas sobre a Biblioteca de Alexandria, mas também páginas como estas em que Irene Vallejo relembra a infância, quando adormecia ao som da mãe a ler histórias para ela.
A minha mãe lia-me livros todas as noites, sentada na beira da minha cama. Ela era a rapsoda; eu, o público fascinado. O lugar, a hora, os gestos e os silêncios eram sempre os mesmos, a nossa liturgia íntima. Enquanto ela procurava com os olhos o sítio onde tinha ficado na leitura e recuava a frases anteriores para recuperar o fio da história, a suave brisa da narração afastava todas as preocupações do dia e os medos intuídos da noite. Aquele tempo de leitura parecia-me um paraíso pequeno e provisório - mais tarde aprendi que todos os paraísos são assim, humildes e transitórios -.
A voz dela. Eu escutava a voz dela e os sons do conto que ela me ajudava a ouvir com a imaginação: o chapinar da água contra o casco de um barco, o suave ranger da neve, o choque de duas espadas, o silvo de uma flecha, passos misteriosos, uivos de lobo, cochichos atrás de uma porta. Sentíamo-nos muito unidas, a minha mãe e eu, juntas em dois lugares de uma só vez, mais juntas que nunca mas divididas em duas dimensões paralelas, dentro e fora, com um relógio que fazia tic-tac no quarto durante meia hora e anos interios que transcorriam na história, sozinhas mas ao mesmo tempo rodeadas de muitas pessoas, amigas e espias dos personagens.
Nesses anos, fui perdendo os dentes de leite, um a um. O meu gesto favorito enquanto ela me contava contos era abanar um dente frouxo com o dedo, senti-lo desprender-se das raízes, bailar cada vez mais solto e, quando finalmente se partia soltando uns fios salgados de sangue, pousá-lo na palma da mão para o observar - era a infância que se estava a quebrar, deixava vazios no meu corpo e cacos de esmalte branco pelo caminho, e o tempo de escutar histórias acabaria em breve, ainda que eu não soubesse -.
E quando chegávamos a episódios especialmente emocionantes - uma perseguição, a aproximação do assassino, a iminência de uma descoberta, o sinal de uma traição - a minha mãe pigarreava, fingia uma comichão na garganta, tossia; era o sinal combinado para a primeira interrupção. Já não posso ler mais. Então cabia-me suplicar com desespero: não, não pares aqui, continua mais um bocadinho. Estou cansada. Por favor, por favor. Éramos actores de uma pequena comédia, e depois ela continuava a leitura. Eu sabia que ela estava a fingir, claro, mas assustáva-me sempre. Por fim, uma das interrupções seria a valer, e ela fechava o livro, dava-me um beijo, deixáva-me sozinha na obscuridade e ia-se entregar a essa vida secreta que vivem os adultos à noite, as suas noites apaixonantes, misteriosas, desejadas; esse país estrangeiro e proíbido aos meninos. O livro fechado ficava na mesa de cabeceira, calado e teimoso, expulsando-me dos acampamentos no Yukon, ou das colinas do Mississipi, ou da fortaleza de If, da estalagem Almirante Benbow, da Montanha da Alma, da selva das Missões, do lago de Maracaíbo, do bairro de Benia Kirk em Odessa, de Ventimiglia, da Perspectiva Nevski, da Ilha de Barataria, do antro de Laracna na fronteira de Mordor, da charneca junto à casa dos Baskerville, de Nijni Nóvgorod, do Castelo de Irás-e-não-voltarás, do bosque de Sherwood, do sinistro laboratório de anatomía de Ingolstadt, do arvoredo do barão Cósimo em Ombrosa, do planeta dos baobabs, da misteriosa casa de Yvonne de Galais, do covil de Fagin, da ilha de Ítaca. E mesmo que eu abrisse o livro no sítio certo, assinalado por um marcador, não serviria para nada, só veria linhas cheias de patas de aranha que se recusariam a dizer-me uma mísera palavra. Sem a voz da minha mãe, a magia não se tornava realidade. Ler era um feitiço, sim, conseguir que falassem esses estranhos insectos negros dos livros, que nessa altura me parecíam imensos formigueiros de papel.
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Identifiquei assim as citações:
- acampamentos do Yukon: The Call of the Wild, Jack London
- colinas do Mississipi: Tom Sawyer, de Mark Twain
- fortaleza de If: Conde de Montecristo, de Alexandre Dumas
- estalagem Almirante Benbow: Ilha do Tesouro, R. L. Stevenson
- Monte das Almas: Monte de las Ánimas, Gustavo A. Becquer
- selva das Missões: Contos da Selva, Horácio Quiroga
- lago de Maracaíbo : talvez Café con el Dictador, de Milagros Socorro,
ou La Canaan del petróleo de Franz Taut
- bairro Benia Kirk de Odessa: Cuentos de Odessa, Isaak Bábel
- Ilha de Barataria: D. Quixote de Cervantes
- antro de Laracna (Shelob) - O Senhor dos Anéis de Tolkien
- charneca dos Baskerville - O Cão dos Baskerville de Conan Doyle
- Nijni-Novgórod : Miguel Strogoff de Jules Verne
- o bosque de Sherwood : Robin dos Bosques, Howard Pyle (?)
- o laboratório de Ingolstadt: Frankenstein, Mary Shelley
- o barão Cósimo de Ombrosa : O Barão Trepador, de Italo Calvino
- o planeta dos baobabs: O Principezinho de Saint-Exupéry
- casa de Yvonne de Galais: Le Grand Meaulnes, Alain Fournier
- covil de Fagin: Oliver Twist, Charles Dickens
- ilha de Ítaca: Odisseia, Homero
Porque não, começar assim a biblioteca de nossa casa?
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