domingo, 11 de junho de 2023

Sob o reino dos ventos a bordo de um veleiro à mercê dos mares - lendo Joseph Conrad


'Acabei' de ler O Espelho do Mar.

Conrad é um mestre da descrição de navios, do mar e da navegação. Neste livro invulgar de 1906, uma espécie de autobiografia enquanto homem do mar, são várias as páginas de antologia em que relata apaixonadamente episódios que viveu quando servia em navios veleiros, ainda jovem. O amor ao seu navio, seja  grande ou pequeno, o casco de madeira ou de ferro, fácil ou difícil de manobrar, é uma das marcas mais fortes do livro; estar no convés sob os mastros e o velame, navegando em bonança ou tempestade, preenche completamente as aspirações do genuíno marinheiro.


Sobre a malvadez dos mares:

"O oceano tem o temperamento sem escrúpulos de um autocrata selvagem estragado por muita adulação. Não consegue tolerar a mais leve tentativa de desafio, e tem permanecido inimigo inconciliável de navios e de homens, desde que navios e homens tiveram a inédita ousadia de juntos irem flutuar em frente da sua carantonha.  Desde esse dia ele desatou a engolir frotas e homens sem que o seu ressentimento seja saciado pelo número de vítimas - por tantos navios naufragados e vidas afogadas.  Hoje, como sempre, está pronto para seduzir e atraiçoar, esmagar e afundar o incorrigível optimismo dos homens que, apoiados na lealdade dos navios, estão a tentar arrancar dele a fortuna da sua casa, o domínio do seu mundo, ou apenas uma colheita de alimento para a sua fome. Se nem sempre está com o cálido feitio de esmagar, está sempre furtivamente pronto para um afogamento. A mais admirável maravilha das profundezas é a sua  insondável crueldade."

Neste outro trecho, Conrad refere-se aos ventos do quadrante Oeste dominantes na costa ocidental britânica.

"Anunciada pela crescente ferocidade das rajadas, por vezes pelo tímido clarão de um relâmpago como se fosse o sinal de uma tocha acesa acenada de longe por trás das nuvens, a reviravolta do vento chega por fim, o momento crucial em que a violência velada e sombria da ventania de Sudoeste dá lugar à ardente, cintilante, cortante, penetrante cólera do Rei do Noroeste.

Assiste-se a outra fase da sua paixão, uma fúria decorada com estrelas, porventura exibindo o crescente da Lua na sua fronte, sacudindo os restantes vestígios do retorcido manto de nuvens em rajadas de negro, com saraiva e flocos de neve caindo como chuveiros de cristal e pérolas, ressaltando das vergas, tamborilando nas velas, percutindo as capas de oleado, branqueado os conveses dos navios que regressam a casa. Débeis e pálidos clarões de relâmpagos faíscam sob as luzes das estrelas, por cima do topo dos mastros. Um golpe gelado de vento vem zumbir entre o cordame retesado, fazendo estremecer o navio até mesmo à própria quilha, fazendo os homens no seu convés tiritar de frio nas roupas encharcadas até à medula dos ossos. Antes que uma borrasca mais venha voando e se despeje sobre a amurada leste, a crista de outra já espreita acima do horizonte a oeste, correndo rápida, informe, como um saco preto de água gélida pronto a rebentar sobre a vossa preocupada cabeça. O humor do regente do oceano mudou. Cada rajada do estado nublado que parecia aquecida pelo calor de um coração flamejante de cólera cedeu à contraparte dos sopros frios que parecem expelidos de um peito feito de gelo com um súbito sentimento de repulsa. Em vez de cegar os olhos e esmagar a alma com uma terrível ostentação de núvens e neblinas e marés e chuva, o Rei do Ocidente dirige o seu poder humilhante para vos metralhar as costas com agulhas de gelo, fazer os vossos olhos exaustos lacrimejar de sofrimento, e a vossa carcassa exangue estremecer desditosamente."

E a terminar um dos capítulos:


"E contemplei o verdadeiro mar - o mar que brinca com os homens até ficarem com o coração despedaçado, e corrói navios corruptos até os destroçar. Nada pode apiedar o soturno azedume do seu coração. (...) A promessa que mantém perpetuamente é grandiosa; mas o único segredo em sua posse é a força, a força - a invejosa, incansável força de um homem que guarda um cobiçado tesouro dentro dos seus portões."

É uma escrita intensa, arrebatada, retrato de uma época passada em que os homens se aventuravam ingenua e fragilmente através dos oceanos, e que se lê com um prazer incomparável. Actualmente sabemos que, bem pior que os mares e as tempestades, o inimigo do homem é ele próprio, a sua natureza.


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imagens ©New York Times

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