domingo, 10 de setembro de 2023

À espera dos Bárbaros, agora mais que nunca


O poema de Constantin Cavafy era uma metáfora, que o meu título acima retoma. Os Bárbaros tanto podem vir de Leste como de Sul, podem ser outras tribos ou mesmo vir de dentro da nossa tribo. Há esta sensação que tenho de que algo de mau está para nos atingir em breve, e há muitos candidatos a maus. Felizmente nenhum ainda é poderoso ao ponto de brutalmente destruir o nosso mundo de conforto, e as nossas múltiplas defesas ainda impõem respeito. Mas que há monstros no horizonte, ou uma nuvem de tártaros, ou uns arsenais à espera de ser usados - há, sim. O maior perigo é, como diz o poema, que se transformem num desejo nosso - venham, venham lá de vez e acabem com este medo permanente.

Há quem prefira a outra face da metáfora - inventamos medos de ameaças que não existem para esquecer os nossos falhanços e frustrações. Que pena não existam, essa até era uma boa solução.

Voltando à poesia: deixo a tradução de Marguerite Yourcenar do poema de Cavafis, e depois uma minha em que também consultei uma tradução inglesa.(*)

En attendant les barbares

Sena, mas francamente não gosto.


"Qu'attendons-nous, rassemblés sur l'agora?
     On dit que les Barbares seront là aujourd'hui.

Pourquoi cette léthargie, au Sénat?
Pourquoi les sénateurs restent-ils sans légiférer?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui.
   À quoi bon faire des lois à présent?
   Ce sont les Barbares qui bientôt les feront.

Pourquoi notre empereur s'est-il levé si tôt?
Pourquoi se tient-il devant la plus grande porte de la ville,
solennel, assis sur son trône, coiffé de sa couronne?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que notre empereur attend d'accueillir
   leur chef. Il a même préparé un parchemin
   à lui remettre, où sont conférés
   nombreux titres et nombreuses dignités.

Pourquoi nos deux consuls et nos préteurs sont-ils
sortis aujourd'hui, vêtus de leurs toges rouges et brodées?
Pourquoi ces bracelets sertis d'améthystes,
ces bagues où étincellent des émeraudes polies?
Pourquoi aujourd'hui ces cannes précieuses
finement ciselées d'or et d'argent?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que pareilles choses éblouissent les Barbares.

Pourquoi nos habiles rhéteurs ne viennent-ils pas comme à l'ordinaire
prononcer leurs discours et dire leurs mots?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que l'éloquence et les harangues les ennuient.

Pourquoi ce trouble, cette subite
inquiétude? - Comme les visages sont graves!
Pourquoi places et rues si vite désertées?
Pourquoi chacun repart-il chez lui le visage soucieux?
 

   Parce que la nuit est tombée et que les Barbares ne sont pas venus
   et certains qui arrivent des frontières
   disent qu'il n'y a plus de Barbares.

Mais alors, qu'allons-nous devenir sans les Barbares?
Ces gens étaient en somme une solution."


                                                                 trad. Marguerite Yourcenar

 


À espera dos Bárbaros

De que estamos à espera, reunidos no fórum?
    Diz-se que os Bárbaros vão chegar hoje.

Porque nada se passa no senado?
Porque estão os  senadores sentados sem legislar?      

   Porque os Bárbaros vão a chegar hoje.66cc
   Para que se haviam de fazer leis agora ?
   Em breve serão os Bárbaros a fazê-las.

Porque se levantou tão cedo o nosso imperador ?
E porque está na Porta Grande da cidade, sentado solenemente no trono, usando a coroa ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e o Imperador espera receber o seu chefe.
   Preparou até um pergaminho para oferta
   onde lhe confere numerosos títulos, nomes imponentes.

Porque saíram hoje os nossos dois cônsules e pretores
vestidos das suas togas escarlate bordadas?
Porque usam braceletes com tantos ametistas
e anéis onde cintilam polidas esmeraldas ?
E porque levam preciosa bengalas
finamente ciseladas em prata e ouro ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e essas coisas deslumbram os Bárbaros.

Porque não vêm os nossos distintos oradores, como é hábito,
discursar e dizer o que têm para dizer ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e aborrecem-se com a retórica e o discurso público.

Porquê esta agitação, esta súbita inquietude ?
- como estão sérios os rostos das pessoas !
Porque se esvaziam tão depressa as ruas e praças,
e toda a gente regressa a casa, com ar preocupado ?

   Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
   E alguns dos nossos homens regressados da fronteira
   dizem que já não existem Bárbaros.

Mas então que vais de nós sem os Bárbaros?
Essa gente afinal era uma espécie de solução.

 

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Escreveu-se um livro, realizaram-se dois filmes baseados neste poema; mas fazem a metáfora bem mais pobre, panfletária, ora ant-fascista ora anti-colonial: os Bárbaros são concretamente tártaros, dentro de muros fala-se italiano ou alemão, junta-se um romancezito... muito mais que isso vale o poema. 

Estejamos prevenidos, eles já se preparam há muito.

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 (*) Há uma tradução de Jorge de Sena, mas francamente não gosto.


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