segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Prendas: livros, música e um filme.

O livro que eu gostava mais de oferecer como prenda era o Landstrykere de Kurt Hamsun, mas não está traduzido em português; há em francês (Vagabonds) e inglês (Wayfarers). Foi uma revelação, uma narrativa de permanentes peripécias em torrente que retrata a Noruega pobre do séc XIX/XX. Dois aventureiros irrequietos sempre de terra em terra, de mar em mar, fazendo negócios duvidosos, safando-se como podem. Uma saga de leitura compulsiva.

De Hamsun, também recomendo Victoria, já traduzido.

Outra prenda magnífica é Una Carta en Invierno, tradução do poema de Vasco Graça Moura. A edição portuguesa não está disponível, por isso esta edição bilingue (português primeiro, à esquerda) é o melhor que se pode conseguir. Ediciones Hyperión.

Para quem gosta de relatos árticos e antárticos como eu, The White Darkness, um livrinho bem apresentado e ilustrado sobre a excursão de Henry Worlsey a tentar refazer a travessia que o grande Shackleton, o seu herói, falhara 100 anos antes.

A terminar os livros, uma coisa mais leve para animar e distrair: o relato da aventura fluvial de três amigos na canoa 'bateau', pelo rio Sena de Paris até à foz. Roman Fleuve é "une expérience de lecture immersive" com humor, cheio de palavras caras e de verbos no passé simple !

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Na música, nenhuma novidade retumbante, mas há interpretações novas e recomendáveis.

A mais surpreendente é o disco de árias francesas cantado por Cyrille Dubois , colecção sob o título 'So Romantique', que diz quase tudo. Há pérolas pouco conhecidas , a voz é exquise, a orquestra de Lille nem tanto mas para o caso é menos relevante.


Belíssimo é o disco Mysterium de Anne Akiko-Meyers com versões para violino e coro, intensas e contemplativas, de obras bem conhecidas de Bach como o coral Wachet Auf e (a minha favorita) do Magnum Mysterium de Morten Lauridsen.



Completamente diferentes são as versóes para guitarra clássica do virtuoso Miloš Karadaglić de obras variadas:  Rameau (ah Rameau !) , Couperin, Weiss, Scarlatti, Vivaldi ... o CD chama-se


Para música não erudita, sugiro: 

-  Sinéad O'Connor , Sean-Nós Nua, para recorar e homenagear a cantora.

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O filme em DVD que sugiro é Ammonite, uma produção quase 100% feminina que para variar é muito bonita e sóbria. Na Lyme Regis da Cornualha há uma falésia sobre o mar e uma praia de calhau que é muito rica em fósseis - mais ainda que a nossa do Cabo Mondego. A realizadora Francis Lee filma num misto de realismo e ficção romanceada a vida da paleontóloga Mary Anning, que ali descobriu fósseis raros e valiosos e estabeleceu um pequeno negócio de venda na inóspita e bravia Lyme Regis. Kate Winslet e Saoirse Ronan constroem as personagens, com portentosa intensidade e contenção. Houve 'escândalo' mas o bom gosto e os afectos são o que mais conta.


Está aí a temporada 2024 da Casa da Música. O país a comemorar pelas grande Tradição em boa música é ... Portugal. Vai haver fado, baladas e marchas do 25 de Abril, acordeão, pop/rock do melhor (:D) , Emanuel Nunes, e alguma, pouca, música. Maria João Pires seria a única portuguesa digna de menção, mas já se sabe que os bilhetes esgotam ainda antes de serem postos à venda. Há uma remota hipótese de se conseguir uma assinatura para a série de Piano, nesse caso seria uma prenda razoável, que também inclui Sokolov e a revelação croata Martina Filjak.

Mais vale tentar ainda ouvir o Magnificat de Bach no dia 20, mesmo com a prata da casa.


domingo, 19 de novembro de 2023

Igreja Românica de Inndyr em Gildeskål , a 67º N

Na costa ártica da Noruega há uma igreja Românica do séc. XII. Ora bem, eu tinha de mostrar essa notável raridade. 


Inndyr, na região costeira de Gildeskål, é uma daquelas muitas povoações marinhas pitorescas da Noruega que nasceu e vive das pescas, um pouco a sul do arquipélago Lofoten.


O recentemente restaurado 'Tormodbrygga', típico cais piscatório no portinho de Inndyr.

O cais Tormodbrygga, construído nas ilhas Lofoten em 1900, foi comprado e transportado por um comerciante de Inndyr, onde serviu como armazém e loja. Depois foi gerido pelo filho Tormod, que também lá residiu, até a loja fechar em 1952. Agora vai ser lugar de clubes náuticos e lazer.



Mas o que faz Gildeskål merecer destaque é a igreja Românica nos arredores de Inndyr, a 67º 3' N, 14º 2' E, bastante acima do círculo polar ártico, e muito mais para norte que a Catedral Nidaros de Trondheim.

A Igreja de S. Tomás de Cantuária


Por volta de 1130, começou a ser construída uma igreja cerca de 2 km a norte de Inndyr, que em 1170 foi dedicada a St. Thomas av Canterbury (Thomas Beckett), morto nesse ano. Em 1710 o interior foi parcialmente destruído num incêndio, e o restauro foi ao gosto barroco do século XVIII.


Esta, estranhamente, foi construída em pedra mármore existente numa praia vizinha; é a única igreja em pedra mármore a estas latitudes. As lajes e as pedras do silhar não são polidas, estão grosseiramente talhadas.


Vieram certamente a Gildeskål pedreiros entre os melhores  da Europa medieval; e posteriormente a igreja foi decorada com um dos mais ricos interiores barrocos do país.





Todas as igrejas escandinavas (mas muitas francesas também) têm o seu barco votivo; este é de 1782, um modelo da fragata Joshua que naufragou em 1566 durante uma tempestade em Visby.

 
A outra igreja Românica logo dedicada a S. Thomas Beckett está... em Roma !

Só falta onde tomar um cafézito ? Talvez no Heimsjyen , por 3 €. 




Boa casa, para uma aldeia tão pequena.



Em Gildeskål  há outra maravilha - a ilha de Fugløya e a povoação de Sørfugløy


Num isolamento enorme devido à distância da costa continental, é um local idílico que vem atraindo gente rica que escapa da balbúrdia urbana e quer paz, segurança e recolhimento. O paraíso tem aqui uma filial.







Durante séculos um país pobre, ignorado e anulado, a Noruega não pára de me surpreender. E nas fotos não se sente o perfume de arenque , salmão e bacalhau a secar ! 

Midnattsol em Fugløya

(continuarei pela Noruega em breve)


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

No "City of Rhodos" pelo mar Egeu - Mikonos, Rodes, Knossos e Thera

Foi em 1990, século passado, que voámos ainda jovens até à Grécia e fizemos o incontornável cruzeiro pelas ilhas do mar Egeu. Tivemos a sorte (mais do que sabíamos) de nos meterem num navio 'antiquado', o City of Rhodos, daqueles onde abundam corrimões de madeira bem envernizados e latão dourado no interior. Era bonito mesmo, mas pelos vistos inseguro, tinha a quilha pouco profunda de navio fluvial que lhe dava alguma instabilidade em mar agitado. A nossa cabina era muito má, perto da casa das máquinas, mas caminhar pelos passadiços dos conveses e amuradas enchia-me de ilusões navegantes. 

O City of Rhodos fora construído nos estaleiros navais de Cádis, em 1966, por encomenda da Argentina, que o baptizou como "33 Orientales (*) ; destinava-se a fazer parte da Frota Fluvial para navegar no vasto Rio de la Plata. Acabou por servir como navio-prisão para políticos opositores, e degradou-se muito. A companhia grega Cycladic Lines comprou-o em 1979, modernizou-o, adaptou-o ao mar, e deu-lhe o nome da Cidade de Rodes. Mais tarde foi comprado pela K-Lines dos irmãos Kyrtatis.

Recém-restaurado, todo bonito, no Pireu.

O K é de Kykladikés e também de Kyrtatis...

A bordo comia-se malzito, ninguém falava Inglês. Querer saber "please, what fish is this, quel poisson, que pez ?" dava direito sempre à mesma resposta: bacalá. "Portugal is bacalá", diz o presidente.

A navegação levou-nos primeiro até Mikonos. Chegámos às 18.30, fim de tarde, quase hora de jantar. Foi uma corrida aflita para os barcos que nos levavam a terra, e uma corrida pelas ruelas brancas - não vimos quase nada, espreitámos os moínhos e gozámos um café razoável na esplanada frente ao Egeu.


E fomos repreendidos pelo nosso atraso - o nosso 'shuttle' foi o último ! - até porque o mar estava a ficar agitado. Noite de navegação para Rodes.

'Promenade' do convés das baleeiras.

Como o navio era relativamente pequeno, eu conseguia dar a volta pelos passadiços descobertos dos decks e tombadilho em pouco mais de meia hora, o que era uma boa passeata. Também me senti bastante livre de movimentos, excepto na proa e na ponte. 

E aportámos a Rodes.



Lembro-me de um calor pavoroso, deveria estar perto dos 40º.


A Atena de Lindos, a abrasar.

Três andares de convés de promenade, da proa à ré.

Em navegação, de Rodes a Creta :




Heraklion, Creta.

ΣITY οφ ΡΟΔΟΣ !

Foi a melhor escala da viagem: Knossos e o Museu de Heraklion são daquelas espantosas heranças historico-artísticas que quase fazem esquecer as malfeitorias da humanidade. Nunca me senti tão helénico.



Um dos momentos altos de todas as nossas viagens.

O Museu de Heraklion seria uma esplêndida surpresa: talvez mais rico que o da Acrópole, tivemos na visita o apoio de uma guia individual que sabia de História Grega como um Mestre, entusiasta e detalhadamente informada. Foi uma tarde de luxo hitorico-arqueológico.

O "Principe dos Lírios" de Knossos, XVI AC, o original no museu.


De volta por Thera / Santorini

Ancorado em Santorini

Gostei muito de ver cá de baixo a parede da cratera e o casario branco lá em cima na crista. 


Mas subir pela vereda dos jericos foi um suplício - além do declive, o cheirete e a sujidade eram de mais. E lá no alto não há nada de especial - parece um aldeamento turístico azul e branco com dourados, muito algarve-plástico e abundante em pedinchisse aos visitantes. 


O regresso teve um momento mágico - o pôr do sol no 'solar deck' da popa do navio, com a crista de Santorini já não branca mas dourada, e um sossego total, a muralha do vulcão pela frente e o sol meio afogado lá atrás no horizonte; não havia mais ninguém a aproveitar o momento.

Vimos um pôr do sol assim , mas do deck superior do 'Rodes'.


Por esta altura começava eu a balbuciar na Internet, havia o tímido Projecto Minerva nas Escolas, mas não havia blogs nem páginas pessoais nem Google nem Wikipedia. Mesmo o Yahoo foi só 4 anos depois. As fotos eram em película, reveladas em papel. As que tirei dentro do navio não estão mal, estão mais fracas as paisagens e os tesouros patrimoniais helénicos.

Adeus City of Rhodos

Passado dois anos a Cycladic Lines faliu, o naviu andou em bolandas pelo Chipre com outros nomes, e acabou desmantelado em Limassol em 2006. Só viveu 40 anos, coitado.

Há um vídeo fraquito com o City of Rhodos:

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(*) Os 33 Orientales é o grupo insurreccional que em 1825 tentou incorporar o território a norte do Rio de la Plata (hoje Uruguai) ) nas então 'Provincias Unidas' do sul.