segunda-feira, 17 de junho de 2024

Aldeia e Mosteiro de Ermelo, recônditos numa curva do Lima desde 1230. Passeio a 30º C.

Só passavam 47 anos desde que existe o país Portugal, e já monges Beneditinos se instalavam num sítio impensável, longe de tudo, quase invisível, nas margens do rio Lima já perto do Soajo - num belo mosteiro Românico. Estas coisas da nacionalidade e da igreja andaram sempre juntas e são um escolho para um tipo como eu, que nem vai com uma coisa nem com a outra; mas como sugere o poeta (para o caso, o poeta Bob Nik que aqui publiquei há poucos dias) basta-me o tocar do sino e as estrofes de Camões para ao menos me darem algum alegre assombro. É o melhor que posso no 10 de Junho.

Ermelo, Arcos de Valdevez

foto 'Evasões'
Ermelo fica no concelho de Arcos de Valdevez, por onde andei a passear. Encontra-se na estrada municipal 530, e só com atenção se evita passar adiante sem dar conta do desvio: aparece uma estreita mas muito íngreme rampa que se precipita encosta abaixo até ao Mosteiro e ao rio.


Ao fundo de uma encosta onde o Lima curva, frente a outra encosta intensamente florestada, Ermelo está ao mesmo tempo isolada e bem situada. Acessível por uma rústica ladeira, há uma dúzia de casas de pedra pobres (mas bonitas à sua maneira), à volta de uma Igreja que já foi Mosteiro, num terreno onde crescem laranjeiras e um percurso pedonal ribeirinho - a Ecovia do Ermelo. O meu espanto maior foi não se ver nem ouvir ninguém - quando lá cheguei estava deserta, nem padre, nem peregrinos, nem turistas, nem pastores (que os há !).

Bem mais difícil de descer !

No fim da ladeira, um pequeno núcleo de casas frente ao cruzeiro.



O cruzeiro é de 1260. Portugal nasceu mais ou menos assim, e o local é bem evocativo.


E do lado do rio Lima está o Mosteiro de S. Bento


O que resta é quase só a Igreja, mais algumas ruínas exteriores.

A porta principal é bem modesta, sóbria, com a cruz definida por quatro orifícios na pedra, simples e bonita.


Deve ter sido D. Teresa quem patrocionou a construção do mosteiro para a ordem Beneditina, no seu breve reinado ainda antes da nacionalidade; a ordem de Cister foi adoptada por ordem de D. Sancho II no final do século XIII, ficando na área de influência do Mosteiro de Fiães.
Não se vê ninguém, nem se ouve - mas a porta lateral está aberta !




Um dos capitéis interiores.

Na sua forma original seria uma igreja de três naves e cabeceira com três capelas; mas o plano original de Cister não foi concluído. A nave lateral foi suprimida, restando somente o arco triunfal da capela (visível no exterior). 

A porta lateral, por onde entrámos, e o arco românico que faria parte da nave direita.

Todo o plano arquitectónico geral da obra é exemplar do modelo típico utilizado pela ordem de Cister. 
É mais uma fresta que uma janela, mas nem por isso deixa de merecer elaborada decoração.

Um dos capitéis exteriores.

Sobre o telhado ainda é visível uma rosácea românica original do projecto cisterciense, que seria o elemento iluminador da nave central.



No século XVI, já empobrecido e pouco frequentado, passou brevemente a Santa Maria de Ermelo. Além de laranjas, nada produziu de notável, mas continua a haver romaria para uns poucos aficionados... e até é bonito à noite!


De resto, a aldeiazita...


Na verdade, é a aldeia que dá sentido à igreja conventual. São casitas tão improvisadas, tão a esmo, tão simplórias, que acabam por fazer um conjunto harmonioso. E em redor as laranjeiras. Cenário de filme.




As laranjas de Ermelo são afamadas desde que os monges do mosteiro iniciaram a plantação de laranjais. Ainda há muitas ao longo da Ecovia do Ermelo.

Com o Lima a brilhar ao sol de 30º, uma laranja vinha mesmo a calhar.

Com o que vi de turismo quase a zero (só nós), sugiro - sem estragar - uma lojinha de venda de laranjas com umas mesitas para beber sumo e tomar café. Claro.

Pela estrada EM530

Deve ser uma das mais 'verdes' do país, na Primavera. Pouco depois da saída dos Arcos, começa um regalo de verdura, atravessando uma área florestada de quase tudo menos eucaliptos. Abundam carvalhos e castanheiros, amieiros e oliveiras, muitos pinheiros; muros cobertos de hera, trepadeiras e 'caídeiras' verdes, e nos terrenos planos abertos algumas ramadas.
A não perder o desvio em rampa descendente até à Ecovia de Ermelo: 


De novo na EM530, ao aproximar de Ermelo, as vistas abrem-se do lado do rio. 

Na M530, o miradouro de Pedralta surge uns quilómetros antes de Ermelo.

Mas é depois do miradouro que se percorrem os quilómetros mais bonitos da M530, sempre a 'mirar' o Lima, até à ponte que o atravessa junto à foz do afluente Adrão, hoje lugar de luxuriante vegetação.

Ponte sobre o Lima junto à foz do Adrão e à antiga Hidroeléctrica.


E assim termina a passeata à volta de Ermelo nesta verde Primavera.












domingo, 9 de junho de 2024

Um poema do 'The New Yorker' sobre vida sem 'fé' mas com alegre assombro

Numa recente edição do The New Yorker, encontrei um belo poema com que me identifico completamente. Chama-se The Call to Worship (Apelo ao Culto) e o autor é Bob Hicok.
[tradução minha]

Apelo ao Culto, de Bob Hicok

A possibilidade de o zero ter sido origem do universo,
de todas as nossas coisas virem do nada, o medo
de sermos de tal modo solitários, filhos do acaso, órfãos
até aos nossos átomos, é a mãe da ideia de deus. Deus

é uma roupa que vestimos à solidão, uma máscara
para o encobrir o oblívio, um regulador num mundo
onde nenhuma flor, nenhum urso quer saber se estamos aqui
ou o que fazemos.

Prefiro uma teologia do silêncio, a escatologia
do encolher de ombros, a religião de dar a mão à minha esposa
por agora.

Mas, se o labor da Igreja foi o necessário
para me dar o toque dos sinos nas manhãs de domingo,
que às vezes faz levantar o voo dos corvos e volver as corças,
estou grato por um som que me tira de mim mesmo,
me ergue a cabeça para o Sol e as nuvens, para o acima
e o todo, o azul, o sempre e sempre de tudo, quando dobro
o único joelho que devo dobrar, me sinto
alegremente pequeno, contingente, e mantido, por quê
não sei dizer, privado de tudo.


Bem melhor, o original:

          The Call to Worship

            The possibility that the zero gave birth to the universe,
            that all our somethings come from nothing, the fear
            of being alone like that, children of chance, orphans
            down to our atoms, is mother to the idea of god. God

            is a dress we slip over solitude, a mask
            for oblivion to wear, a rule-giver in a world
            where no flower or bear cares that we are here
            or what we do.

            I prefer a theology of silence, the eschatology
            of the shrug, a religion of holding my wife’s hand
            for now.

            But, if the industry of the church is what it took
            to give me bells ringing Sunday mornings,
            to which crows sometimes rise and deer turn,
            I’m grateful for a sound that pulls me out of myself,
            lifts my head toward sun and clouds, into the up
            and all, the blue, the on and on of it, when I bend
            the only knee I have to bend, feel
            happily small, contingent, and held, by what
            I can’t say, short of everything,


[New Yorker, May 2024]

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Discos da minha vida: 1 - Mozart por Christopher Hogwood, Emma Kirkby e Anthony Pay


Este disco já rodou centenas de vezes (milhares?), foi a revelação para mim da Academy of Ancient Music de Christopher Hogwood e do modelo interpretativo que revolucionou a direcção musical da música barroca. É uma festa de música do princípio ao fim, a voz de Emma Kirkby no seu mais angélico período de pureza, o clarinete de Anthony Pay out-of-this-world, de leveza enebriante.

Só na Sinfonia 35 'Haffner' ouviria melhor, mais tarde, por Harnoncourt. Mesmo assim a dinâmica e a precisão são de arrepiar,, e tudo isto numa gravação dos anos 80 !

A Festival of Mozart



L'Oiseau-Lyre, 425 643-2, gravações entre 1983 e 1986:

          - motete Exultate Jubilate
          - Concerto para Clarinete [ainda hoje acho esta a melhor gravação de sempre]
          - Sinfonia #35, Haffner

Emma Kirkby:
Anthony Pay:
E a Haffner de Hogwood: