sábado, 2 de agosto de 2025

Os nossos chás memoráveis, de Madrid a Ystad , de Glasgow a Salzburgo

Nas nossas viajens, não havia grande orçamento para restaurantes; na sua maioria as refeições eram fraquinhas, a poupar. Mas no lanche não se poupava, chá com bolo, pastel, biscoitos ou scone era inevitável. Tornou-se um ritual.

A primeira vez foi numa casinha em Windsor. Não consegui documentar. Começo então pela ida à Escócia.

Glasgow, 1993 - Willow Tea Rooms


Na Buchanan Street, a rua comercial do centro de Glasgow, Charles Reiner Mackintosh desenhou uma Casa de Chá - Willow Tea Room



Um chá com Arte. Demos mais atenção aos pormenores da sala que ao resto.



O serviço foi lento e mau, mas de resto soube bem, e a louça azul agradou.


Bruxelas 1994 - Wittamer

Place du Grand Sablon, 12

Foi uma das nossas primeiras escapadas na Bélgica. Viagem e Hotel eram em conta, mas quando lá chegámos depressa demos conta de que tudo custava o dobro ou o triplo.


Desde os primeiros dias a Place du Sablon foi a nossa referência no centro, mais cómoda e agradável que a flamboyante Grand Place. Não havia scones, claro, mas fatias de bolo húmido em camadas e biscoitos 'pain d'Amande', uma estreia que cultivámos durante anos.


Em inglês, 'almond thins'. Acompanham chá ou café na perfeição.

Salzburgo 1997- Tomaselli


Nestes anos 90 o orçamento de férias era muito restritivo. Ficámos alojados numa espelunca longe do centro, os Hotéis bem localizados eram proibitivos. Os bilhetes para o Festival também. Este foi um dos poucos luxos que nos permitimos.


Uma senhora afável levava até à mesa um mostrador com os bolos disponíveis, a escolha era apontada a dedo.


Supremo requinte.


Ely 2005 - Peacock's Tearoom

Ely é uma pequena cidade do Cambridgeshire com uma grande Catedral, uma das mais belas que vi em toda a vida, deslumbrante. Ao lado, a poucos metros, está anunciado:

Estivemos por baixo desta janela.

Talvez eu eleja esta a melhor casa de chá de sempre. Um primor.

 

Tudo à mais gulosa maneira inglesa.

Mas nada que se compare à Catedral.



Uppsala 2007 - Linné Hornan 

Aqui estivemos num Julho que mais parecia Março, frio e ventoso. A chuva também veio estragar ainda mais, gelada.

Famintos, molhados e enregelados, entrámos no Linné Hornan para reconfortar. Felizmente acompanhámos o chá quentinho com uma deliciosa especialidade sueca.



Zurique 2018 - Péclard

Péclard (agora Café Schober ) era uma confeitaria requintada na cidade velha de Zurique, com fabrico próprio, e com uma esplanada muito concorrida.

Numa pracita da Altstadt, o exterior da Péclard não deixa adivinhar o luxo lá dentro.



Longa demora, serviço pouco simpático, mas finalmente soube muito bem. 

Madrid 2013 - La Pecera 

Circulo de Bellas Artes, Calle Alcalá


Queríamos sobretudo subir ao terraço pelas vistas, mas 'já agora', La Pecera serviu um belo chá.

Fica ao lado do palácio Metropolis.

E lá de cima do terraço, Madrid.

E no mesmo ano,

Rottingdean, Kent 2013 - The Trellis

A aldeia costeira de Rottingdean concorre sempre ao "Britain in Bloom", a competição pelo galardão de cidade mais florida do Reino. Subíamos a High Road quando, inesperada, surge a Trellis Tearoom


Um bocado parola (à maneira inglesa), num excesso de florido e cor de rosa.


Acabou por ser um dos melhores chás de sempre, os scones muito bons e bem servidos.


Chipping Campden, Cotswolds 2016 - Bantam Tea Room

Numa das aldeias mais bonitas dos Cotswolds, em frente ao Market Hall de 1627, demos com esta sala de chá very british.

Inesquecível.


Oxford 2017 - Vaults and Garden


Anexo à Igreja da Universidade, num edifício de 1320, está no coração da cidade, de frente para a Radcliffe Camera (a Biblioteca de Ciências).

Um dos locais mais animados de Oxford, onde todos os oxfordianos já alguma vez foram.

Um chá sábio.

Ystad, 2018 - Maria Caféet

Estávamos na Stortorget (Grande Praça) da bela Ystad, famintos, e o perfume de confeitaria era irresistível.




Kanelbullar ! Bem melhor que scones, os 'caracóis' de canela suecos são fofos, húmidos e docinhos, mesmo na versão básica. O primeiro nunca é o último.


Em Ystad termino. No Báltico, onde acontece tanta Europa.


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terça-feira, 22 de julho de 2025

Nigeraurak e a pequena Mugpi, a bordo do 'Karluk' e presos no Ártico Siberiano


Hoje, uma história com aventura, navegação, tragédia e uma gatinha entre o Alasca e o Norte da Sibéria.

Nigeraurak, a mascote do Karluk

Em 1913, partiu no navio 'Karluk' uma expedição ao Ártico Canadiano desde Barlow, no Alasca. Ia tentar atingir a Ilha de Herschel, ao encontro de outro navio (o 'Alaska') para juntos explorarem o Oceano Ártico e a região junto à foz do grande rio Mackenzie.


O Karluk (='peixe' en inupiak*) era um pequeno baleeiro a vapor e com dois mastros, recuperado para enfrentar mares gelados e comandado por Robert (Bob) Bartlett.


Navegando desde Nome, porto e vila mineira na costa do Alasca, fez escala mais a norte em Barrow (= Utqiagvik) onde embarcou a família nativa inupiaq (*) do caçador Kataktovik; nessa família havia uma criança de 3 anos, Mugpi (adaptado de Makpii)


Foi a 17 de Junho de 1913 que a expedição iniciou a aventura navegando para leste. A bordo seguia uma tripulação de 13 homens, uma equipa de 10 cientistas, um carpinteiro, e os 4 inupiaq. A mais-valia dos nativos era o conhecimento do território e de estratégias de sobrevivência no gelo, mas outra importante contribuição viria a ser a confecção de roupas e calçado com a pele das focas e dos ursos.

Uma mascote inesperada foi uma gatinha preta que alguém insinuou a bordo, baptizada Nigeraurak ('pretinha'). Adaptou-se muito bem ao frio e aos cães de trenó, que a respeitaram depois de um deles ter sido alvo de unhas felinas afiadas.


A viagem começou a correr mal pouco depois de Barrow, por causa do gelo oceânico que bloqueou rapidamente a navegação; o navio era de pouca solidez para a forte compressão do gelo, e foi levado à deriva para ocidente; em vez seguir a costa ártica para leste em direcção à ilha Herschel, foi empurrado no sentido oposto para o ártico siberiano. À mercê dos ventos e das correntes, atravessou o estreito de Bering e seguiu muito ao largo da costa da Sibéria, em direcção à ilha Wrangel, já então bem conhecida dos marinheiros, pelo menos desde 1881 quando foi visitada pelo explorador escocês John Muir numa expedição americana; descreveu-a como 'agrestemente desértica'.


Sob o comando do Capitão Bartlett, o Karluk quedou-se enclausurado numa placa de gelo um pouco a Norte da ilha Wrangel em Janeiro  de 1914. No final do Inverno o inevitável aconteceu:  a placa de gelo começou a rachar e recongelar sucessivamente, e as pressões laterais esmagaram o navio. Bartlett resistiu até ao fim mas quando chegou a hora deu ordem para abandonar.


Um acampamento tinha já começado a ser instalado com tendas e provisões; construíram-se mais igloos grandes e abrigos para cães e trenós. As provisões básicas, essenciais, eram os fogareiros a óleo, os enlatados de pemmican, chá, café, açúcar, bolachas e chocolates. Foi o "Shipwreck Camp", onde se refugiaram 22 homens, uma mulher, duas crianças , 16 cães e um gato encalhados na escuridão do inverno ártico, cerca de 60 km a norte de Wrangel.

A montar o Acampamento de Naufrágio, 'Shipwreck Camp'.

Pemmican é uma conserva à base de carne, utilizada em situações extremas de abandono no deserto gelado. Pode estar comestível ao fim de 120 anos, como já aconteceu, mas também pode tornar-se um veneno mortal.

Terminado o desembarque, já de noite, alguém deu pela falta da gatinha preta. Na manhã seguinte viram que o Karluk, muito inundado, ainda flutuava, e de lá saltou a Nigeraurak ! Foi instalada carinhosamente numa almofada de peles dentro de um cesto.


Seguiu-se uma penosa e longa luta pela sobrevivência. A  única esperança era conseguir chegar à ilha Wrangel, a 130 km, ilha desabitada mas terra firme onde poderiam caçar várias espécies. Para lá chegar a jornada era terrível - o gelo marinho acumulado junto à costa levantava agulhas, lâminas, lombas e fossas que dificultavam a progressão de trenós, e nas aberturas entre placas de gelo era preciso embarcar toda a gente e a carga num dos barcos salva-vidas, para voltar a desembarcar logo depois. 

O 'pack ice' balança, estala, abre fendas e fecha fazendo subir lâminas intransponíveis.

Bartlett planeou demorada e detalhadamente viagens de reconhecimeto por étapas, que deixavam mantimentos no percurso e voltavam ao acampamento, preparando assim aos poucos a futura avançada para a ilha. Mas entre os homens havia vontades diferentes, uns partiram de vez por conta própria, ou morreram ou foram parar a uma outra ilhota inóspita de onde não se conseguiram salvar. Os que chegaram à ilha Wrangel viveram meses de uma tragédia de frio, fome e doença, alimentando-se apenas de alguma ave que conseguiam caçar e de ovos - na ilha vivem colónias de gansos-da-neve e de kittiwake, uma gaivota do Ártico.


 A Ilha de Wrangel

A costa bravia e agreste a sul e poente.

Cape Waring, a leste, perto do acampamento onde se refugiaram os sobreviventes do Karluk.

A 'praia' de Rodgers Cove, aberta no relevo costeiro por um curso de água doce. Aqui acamparam os sobreviventes à espera do resgate.

Rodgers Cove no Verão Ártico. O único 'porto de abrigo' na ilha.



Entretanto Bartlett e Kakaktovik conseguiram chegar à Sibéria, e daí num navio baleeiro atravessaram o Mar de Bering. Mal chegou a Nome no Alasca, em Junho, Bartlett conseguiu que um navio tentasse o resgate; mas esta primeira tentativa falhou, o navio não conseguiu ultrapassar o gelo. Só em Setembro de 1914 chegou finalmente a Wrangel uma equipa de resgate, no pesqueiro canadiano 'King and Winge', uma pequena escuna baleeira mais sólida e bem preparada. Foi possível embarcar a salvo 13 sobreviventes, em diferentes acampamentos - e a gata Nigeraurak, por sinal bem gordinha.

A 'King and Winge', construída em 1914, tinha um casco mais robusto e um motor mais potente.

Contudo, muitos não tinham resistido - por doença, frio, acidentes ou envenenados pelo pemmican.

O resgate de 12 sobreviventes em Rogers Cove.

Quando os sobreviventes deixaram finalmente o acampamento, levaram a Nigeraurak num saco de pele de corça com uma alça para ir pendurada às costas. Era uma preciosidade. Habituara-se a farripas de pemmican, todos lhe queriam servir uma pitada. Ficou a cargo do seu grande amigo e protector Fred Maurer, quem mais a mimou e acarinhou durante a viagem até ao fim da tragédia. Ao todo, com Bartlett e Kakaktovik, sobreviveram 15 dos inciais 28 membros da expedição, 16 se contarmos a heróica gata. Mugpi/Makpii, de nome completo Ruth Makpii Ipalook, voltou a Barrow, Alaska, onde arranjou trabalho e viveu até aos 97 anos; faleceu em 2008 em Anchorage.

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The Lamp, the Ice and the boat called 'Fish'

A Lâmpada, o Gelo e um barco chamado 'Peixe'  é um livro ilustrado que narra aventura do Karluk , do ponto de vista dos nativos inupiaq que nele participaram. É justamente Ruth Makpii Ipalook, já adulta, quem conta a história que Jacqueline Briggs Martin adaptou a crianças e Beth Krommes ilustrou.

O Inverno chegou cedo em 1913,
e em breve o Capitão
dirigia o navio entre blocos de gelo

- alguns grandes como casas.

Marinheiros e Cientistas usvam caixas e barris
Para construir as paredes de um abrigo 
sobre uma grande placa de gelo
não muito longe do navio.

Olha a Nigeraurak !

Ela tinha de usar goggles, também. 
Senão, o sol e a neve
em breve causariam a cegueira. 
Alguns tinham goggles em vidro de âmbar.

Na capa, o dia em que chega a salvação.


[traduções minhas]
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(*) Os Inupiaq, ou Inupiat, são o povo nativo do Alasca, aparentados com os Inuit do Canadá e Gronelândia.