domingo, 23 de março de 2025

Primavera, dois poemas de Maya C. Popa


Para já a Primavera é um Inverno prolongado, se há flores estão murchas da chuva e do vento, se há sol e calor é noutras paragens. Ouvem-se tambores de guerra, cada vez mais fortes. É a Primavera do meu descontentamento. A poeta romeno-americana Maya C. Popa (n. 1989) é, nesta situação, um braço de apoio para a melancolia.

Spring

Time persists, yes, I can see there are new branches.

The grass, first in a line of transformations,
seemingly risen overnight.

Color is pouring back into the hours,
or forgiveness, whatever the case may be.

With one decisive tug at the earth, the robin’s drawn forth
a shimmering worm,

with such precision, it is almost a cruel pleasure.

This, the nightmare we dreamed but did not wake from.

Time is passing, I concede. A squirrel leaps
from one branch to another.

A hawk studies the field at dusk.

The park announces the season over and over
to no one,

and the silence cranes to listen.

Terraces of light now that the day is longer.

When joy comes, will I be ready, I wonder.

[in 'Wonder is the origin of Wound']

                 Primavera 

O tempo persiste, sim, posso ver que há ramos novos.

A relva, primeira de uma sequência de mudanças,
parece ter crescido durante a noite.

A cor derrama-se de novo com o passar das horas,
ou o perdão, conforme seja o caso.

Com um puxão decisivo na terra, o tordo extraiu
um verme cintilante,

com tanta precisão, é quase um prazer cruel.

Este, o pesadelo que sonhámos, mas do qual não acordámos.

O tempo vai passando, admito. Um esquilo salta
de um galho para outro.

Um falcão estuda o campo ao anoitecer.

O parque anuncia a estação uma e outra vez
para ninguém,

e o silêncio prolonga-se para ouvir.

Terraços de luz agora que o dia é mais longo.

Quando a alegria chegar, estarei eu capaz, questiono.




February Clear

Sky rinsed blue above the yellow grass and wind-shorn clouds as thin as mist - how often I have failed to look when looking would have changed me. I can't name much beyond the obvious handful of features of the patient whole, branches poised for next month's bloom, triangle of geese, the peat set low against the largest rock formations the wind interrupts repeatedly against, and the tree that grows at such a slant it tests the verdict of the eye, sending mind down roots as serious and sure and green as sunlight's own renewing. 


               Limpeza de Fevereiro

Céu lavado de azul acima da erva amarela e nuvens tosquiadas pelo vento tão finas quanto névoa - quantas vezes deixei de olhar quando olhar poderia ter-me mudado. Não consigo referir muito para lá do punhado óbvio de características deste sereno todo, galhos prontos para a floração do mês que vem, triângulo de gansos, o mato rasteiro junto às maiores formações rochosas que o vento interrompe sem cessar, e a árvore que cresce numa inclinação tal que desafia o veredicto dos olhos, enviando a mente a descer para raízes tão sérias e firmes e verdes quanto a própria renovação da luz do sol.


sábado, 15 de março de 2025

'Dedicação', de Robert a Clara Schumann, canta Siân Griffiths , e mais


Widmung , de Robert Schumann
Siân Griffiths, mezzo-soprano e Florent Mourier, piano


          Tu minha alma, tu meu coração
          Tu minha alegria, tu minha dor,
          Tu meu mundo, onde eu vivo,
          Tu meu céu, onde flutuo,
          Ó meu túmulo, onde verti
          Com ternura a minha dor.
          Tu és repouso, tu és paz,
          Foste para mim dádiva do céu,
          Que tu me ames, dá-me virtude
          O teu olhar transfigurou-me
          Elevas-me com amor acima de mim mesmo,
          Meu espírito bom, meu melhor Eu!

Widmung é um famoso lied de Robert Schumann, uma dedicatória apaixonada à sua mulher Clara. Devia ter boas razões, ele, percebo isso quando ouço por exemplo este Ich stand in dunklen Träumen  que Clara compôs para um poema de Heinrich Heine:

Katharina Konradi, soprano, com Eric Schneider, pianoano

Clara Wieck-Schumann desencadeava paixões pela sua sensibilidade de exímia pianista, e depois de Robert não lhe faltaram amigos e admiradores, entre eles Paganini e Brahms. Os seus concertos eram aplaudidos entusiasticamente, e uma récita com o concerto nº 4 de Beethoven chegou a inspirar um poema "Clara Wieck und Beethoven"



A acabar, uma interpretação diferente (masculina) da Widmung:   

Andrew Goodwin, tenor, e Daniel de Borah, piano.

sábado, 8 de março de 2025

Nous irons comme en barque à travers le brouillard


O meu mundo é pequenino, aqui uns quintais à minha volta, e anda estralhaçado por tendências conflituosas e decadentistas que me deixam um bocado "dans la m***e", como talvez desabafasse o general Cambronne aqui e hoje. É verdade que há muito outro mundo para lá das minhas fronteiras - para lá dos Oceanos e noutros hemisférios - onde talvez reine uma despreocupação ou um optimismo que aqui sumiu desde pelo menos 2014. Talvez antes, mas não se sentia a ameaça de um veneno que alastra como agora.

Eu até gosto e tenho (às vezes) orgulho no meu mundo, é cada vez mais raro mas às vezes sim. Durante a maior parte da minha vida senti-me privilegiado, num quase paraíso terreste. Só que um lento mas rápido apodrecer espalhou-se como cinza vulcânica sobre a Europa, a Greco-romana, a do Renascimento e das Luzes, a da União, e sobre o outro lado que os Vikings descobriram. E está tão rápido esse apodrecimento nestes dias, tão intenso, numa vertigem de apocalipse, que é muito difícil acreditar ou confiar nos resistentes (em que me revejo). Le monde continue d'être sans cesse plus brutal (*) , a frase do ano.

Fui buscar a 1897, em plena Belle Époque - 40 anos de 'joie de vivre' entre guerras - um antídoto para me consolar um pouco. Bem sei que sonhar é o que resta aos desgraçados, e quando a desgraça é muita, o pobre agradece o sonho, mesmo que seja modesto: passar além da neblina:

                       Le brouillard

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles de beauté où les femmes
Sont belles comme des arbres et nues comme des âmes ;
Nous irons vers les îles où les hommes sont doux
Comme des lions, avec des cheveux longs et roux.
Viens, le monde incréé attend de notre rêve
Ses lois, ses joies, les dieux qui font fleurir la sève
Et le vent qui fait luire et bruire les feuilles.
Viens, le monde innocent va sortir d'un cercueil.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles où il y a des montagnes
D'où l'on voit l'étendue paisible des campagnes,
Avec des animaux heureux de brouter l'herbe,
Des bergers qui ressemblent à des saules, et des gerbes
Qu'on monte avec des fourches sur le dos des charrettes.
Il fait encore soleil et les moutons s'arrêtent
Près de l'étable, devant la porte du jardin,
Qui sent la pimprenelle, l'estragon et le thym.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Nous irons vers les îles où les pins gris et bleus
Chantent quand le vent d'ouest passe entre leurs cheveux.
Nous écouterons, couchés sous leur ombre odorante,
La plainte des esprits que le désir tourmente
Et qui attendent l'heure où leur chair doit revivre.
Viens, l'infini se trouble et rit, le monde est ivre :
Nous entendrons peut-être, en rêvant sous les pins,
Des mots d'amour, des mots divins, des mots lointains.

Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.

Remy de Gourmont, Simone, 1897.


   Simone, veste o casaco e calça as socas negras
   Vamos como em barco através da neblina.

   Iremos às ilhas onde pinhais azul e cinza
   Cantam se o vento poente lhes penteia os cabelos.
   Vamos, o infinito atrapalha-se e ri; o mundo está ébrio:
   Ouviremos talvez, ao sonhar sob os pinhos
   Palavras de amor, palavras divinas, palavras distantes.


   Simone, veste o casaco e calça as socas negras
   Vamos como em barco através da neblina.



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* E. Macron

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Duas canções de Brahms, por Fatma Said, soprano egípcia


O ´lied' alemão não é uma das formas musicais que mais aprecio, apesar dos sublimes Vier Letzte de Strauss e dos Wesendonck de Wagner. Schubert ou Mendelssohn aborrecem-me bastante no lied. Ora Brahms compôs alguns que são de facto belas canções, leves, melodiosas, mais próximas da canção irlandesa e escocesa que também inspirou Haydn e Beethoven. 

A surpreendente soprano egípcia Fatma Said publicou agora um excelentíssimo CD com boa variedade de 'lieder', e como é habitual nela existe alguma heterodoxia interpretativa. A voz de Fatma Said está no auge, espantosa de precisão, poder e controle, conseguindo suavidade sem perda de expressão. Ainda exulto quando surge alguém vindo de outras paragens menos cultas e civilizadas que sublima a cultura europeia a este nível. Não resisto a publicar dois vídeos desse CD. Escolho Brahms, claro.

Lerchengesang (A canção da cotovia) é uma saudação à Primavera. A melhor interpretação até agora era de Dieter Fischer-Dieskau (barítono), mas Fatma Said é inexcedível.
O poema é de Karl August Candidus (tradução minha): 

Ätherische ferne Stimmen,
Der Lerchen himmlische Grüße,
Wie regt ihr mir so süße
Die Brust, ihr lieblichen Stimmen!

Ich schließe leis mein Auge,
Da ziehn Erinnerungen
In sanften Dämmerungen,
Durchweht vom Frühlingshauche.

          Etéreas vozes distantes,
          Celestes saudações das cotovias,
          Como docemente se comove
          o meu peito, vozes amáveis!

          Em silêncio fecho os olhos,
          vão passando recordações 
          de suaves entardeceres,
          Soprados pelo respirar da primavera.

Já agora, Fischer-Dieskau:

Da Untem im Tale (Ao fundo, no vale) é outra bela canção, esta de um amor sem esperança, poema de autor desconhecido.

  
Da unten im Tale läuft's Wasser so trüb,
Und i kann dir's nit sagen, i hab di so lieb.
Sprichts allweil von Lieb', sprichst allweil von Treu',
Und a bissele Falschheit is au wohl dabei!
Und wenn i dir's zehnmal sag', daß i di lieb,
Und du willst nit verstehen, muß weiter i gehn.
Für die Zeit, wo du g'liebt mi hast, dank i dir schön,
Und i wünsch', daß dir's anderswo besser mag gehn.

             Lá em baixo no vale corre a água tão turva,
             E nem te posso dizer, tanto amor sinto por ti.
             Falas sempre de amor, falas de lealdade,
             Mas há aí também alguma falsidade !
             E se te digo dez vezes que te amo,
             E se não queres compreender, devo seguir em frente.
             Pelo tempo em que me amaste, estou muito grata,
             E desejo que te corra melhor a vida noutro lugar.

Como bónus, para quem me aturou até aqui, deixo um outro lied famoso, mas de Schumann: Widmung (Dedicatória), poema apaixonado de Robert para Clara Schumann. Foi escrito para barítono, gosto mais ainda cantado por uma mezzo, mas Fatma Said é irresistível nesta última gravação: 


Outras versões admiráveis: Peter Schreier, e a minha favorita, mezzo-soprano Siân Griffiths  Fica para a próxima 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Os bonitos 'pueblos marineros' de emigração 'indiana' na ria de Ares, Galiza.


As muitas rias, altas e baixas, da Galiza são no conjunto lugares de riqueza paisagística e de património urbano que é uma imensa sorte ter por perto, embora nem sempre sejam de acesso rápido. Até as águas calmas e não-tão-frias e algumas bonitas enseadas de areia superam de longe a triste parolice nova-rica do Algarve, tanto mais que ainda se tem sossego, muito mais do que bulício. Para mim, só tem contra: a ventania, que só raramente dá tréguas, e o nevoeiro ou chuvita, demasiado frequentes .

Ao fundo da ria, Ares.

A ria de Ares é uma das menos apelativas para o turismo - acessos tortuosos, hotelaria fraquinha - mas muito popular pelas festas com comezainas, a maioria delas no Verão; e é lugar dos ' pueblos marineros ' , povoações fundadas por emigrantes de torna-viagem das Américas no início do século XX, alguns deles regressados com as finanças em alta; a arquitectura popular dos trópicos nota-se nas varandas, no colorido das casas. nas praças. Esta herança é conhecida como "Património Indiano", por serem assim conhecidos os povos das "Índias Ocidentais", neste caso Argentina, Uruguai, Cuba ou Florida. É um fenómeno bem mais vasto e valioso que o caso português das "casas de brasileiro", ou mais recentemente dos "chalés suíços".

As povoações de Ares e Redes são as mais interessantes.

Ares
É a 'sede' das comemorações anuais do Património Indianoem Agosto, que por mim evitaria a todo o custo. Mas é certamente um prazer passear pelas 'Caraíbas' poucos quilómetros a Norte de Portugal.

Plaza da Igrexa

A Igreja de San José de Ares data de 1721. A Torre do Relógio anexa tem uma cúpula cimeira em forma de pérgola. Um relógio de Sol moderno de mármore travertino foi instalado na fachada lateral.


Da Praça irradiam, frente à Igreja, a Rúa Real, Rúa os Anxos e Rúa María, onde se concentra quase todo o património 'indiano'.

A casa nº 2 , à entrada da Rúa Real

Casas irmãs Ramos Bugallo
Rúa Real, 64-66

Nos dois lados desta rua estreita alinham-se vivendas 'índianas' das décadas de transição de século XIX - XX, desde o início frente à Igreja até cerca do nº 80. Foi já após 1920 que as duas irmãs Bugallo, casadas com emigrantes em Cuba, fizeram na sua fachada estas galerías policromadas modernistas por onde a luz entra matizada.

Casa de Nicolás López Cancela
Rúa Real, 73

Vivenda familiar construída pelo emigrante Nicolás López Cancela. Destacam-se as duas galerias envidraçadas com varanda central em ferro forjado, e uma bonita sanefa corrida a decorar a cornija.


E pela rua adiante não faltam mais exemplos de varandas e galerias. Ares teve uma época áurea nas décadas anteriores a 1940, muito visível na Praza da Constitución, entre as rúas Real e os Anxos.


Rúa María

Nesta rua há várias frentes corridas de vivendas com varanda de madeira, como esta no nº 89.

No passeio marítimo junto à praia, outro invulgar edifício:

Casa de António Vilar
Rúa Fomento 2 / Av. Saavedra Meneses, 20



Antonio Vilar regressou à Galiza e decidiu converter uma fábrica de salga, de arquitectura italiana, numa moradia frente ao mar. Ficou pronta em 1884.

A "Sirena de las Mirandas", estátua em bronze, foi instalada na praia há poucos anos, frente à galeria envidraçada.

Recorda uma lenda local sobre uma sereia que vivia nos ilhéus Mirandas, na ria em frente a Ares.



Embora Ares tenha dado o nome e seja uma vila de 6 000 habitantes, o pueblo marinero mais vistoso é Redes, uma aldeia piscatória com menos de 300.

Redes


Mais pequena, parece uma aldeia para turistas quando de facto é uma vila piscatória, genuinamente 'marinera', onde a influência centro- e sul-americana ainda se faz sentir mais intensa.

Redes nasceu da ría, ainda há casas com acesso à água por escadaria; em frente, os mastros de estender redes.

O centro da vila é a Plaza do Pedregal, que se abre para a ria, pois ali se encontra o tradicional cais dos barcos de pesca.


Casa Azul , com um torreão de três pisos e cornija saliente, é a marca mais vistosa - e até excessiva - em todos os ângulos da Praça. Mas a casa mais bonita é a Casa de Concha Amado, na esquina da Av. Gaspar Rodrigues (nº 84).




É uma casa modernista de 1894, atribuída a dois arquitectos portugueses.


Toda esta praça é um regalo de arquitectura.


Há na aldeia quatro ruelas estreitas com casas 'indianas': as ruas Arriba, Media, Abaixo, Nova e Ribeira. Dessas não consegui fotografias com qualidade para mostrar... vamos deixar Redes por aqui.

Av. Gaspar Rodrigues, a abrir na Plaza do Pedregal.


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Turner e as poeiras do Monte Tambora : o ano em que não houve Verão

- 1816, o ano em que não houve Verão -

Era o primeiro ano de paz depois de Waterloo, que acabou com as multisseculares guerras anglo-francesas e em particular as Guerras Napoleónicas, e na Europa respirava-se alívio, contava-se com um bom ano agrícola e com melhoria da vida.

A 10 de Abril de 1815, uma erupção catastrófica eclodiu no Monte Tambora na ilha de Sumbawa, Indonésia. Os últimos 1500 metros de altura do cone foram pulverizados, num rebentamento de uma dimensão descomunal, ouvido a mais de 3000 km ! Seguiu-se  um tsunami, aumentando as vítimas para mais de 10 000, soterradas ou afogadas. 

A montanha perdeu 1500 m de altura, o seu pico (imagem AI)

Pelas 19 horas a erupção atingiu o máximo, quando três plumas vulcânicas se fundiram numa só, toda a montanha parecia um jorro de fogo líquido. Para a maioria dos cientistas, terá sido a mais destrutiva erupção vulcânica desde que há registos.

450 km3 de poeiras e calhaus foram expelidos, juntamente com 60 megatoneladas de enxofre. Ao subir e espalhar-se pela atmosfera, uma densa nuvem negra provocou o obscurecimento da luz solar, e um arrefecimento global entre 5 e 8 ºC no Hemisfério Norte. Sem luz solar, a produção agrícola foi arruinada, a fome e as doenças dizimaram as populações ainda durante esse ano; mas as poeiras finas abrangeram quase todo o Hemisfério Norte, causando prolongados crepúsculos e pores-do-sol, de cor intensa entre o alaranjado e o púrpura.

Caspar David Friedrich, Two men by the sea, 1817

Logo em 1815, um nevoeiro seco persistente e avermelhado cobriu parte dos Estados Unidos; em 1816 a Europa e América do Norte sofreram geadas e nevões em Junho, Julho e Agosto. 

O fenómeno, agora denominado "inverno vulcânico", foi agravado ainda por uma anormal redução da actividade solar, atingindo um mínimo de sempre de radiação em Maio de 1816.

Weymouth Bay, 1816 , John Constable

O "ano sem verão" arruinou todas as colheitas, sucessivas e violentas monções assolaram a Índia e a China, a fome, o frio e as epidemias alastraram pelo Hemisfério Norte. O pior ano do século XIX.

Semanas passaram a meses sem que o sol aparecesse a romper, havia só chuva torrencial e trovoadas. Na Irlanda registaram-se 8 semanas de chuva sem parar.

Lord Byron, a viver na Suíça (que foi severamente atingida),  descreveu no poema apocalíptico "Darkness" esses dias em que "as galinhas recolhiam à capoeira ao meio dia e tinha que se acender as velas como se fosse meia noite" :

     I had a dream, which was not all a dream.
     The bright sun was extinguish'd, and the stars
     Did wander darkling in the eternal space,
     Rayless, and pathless, and the icy earth
     Swung blind and blackening in the moonless air;
     Morn came and went—and came, and brought no day.

                    Tive um sonho, que não foi em tudo um sonho.
                    O luminoso sol extinguiu-se, e as estrelas
                    Vageavam sombriamente no espaço eterno,
                    Não irradiavam, não tinham rumo, e a terra gelada
                    Vacilava cega e enegrecida num ar sem lua;
                    A manhã veio e foi - e veio, e não trouxe dia.

Come era de esperar, as predições de "fim do mundo" abundaram, agravadas pelo aparente apagamento do Sol, e não faltaram citações bíblicas a fundamentar essa crença.


Do Monte Tambora resta hoje uma vasta cratera, que se inunda de água da chuva formando um lago de dimensões variáveis.


O Tambora tinha 60 km de diâmetro na base, são quase 3000 km2 ! O cone expelido de 1500m de altura tem que se juntar outro tanto do interior da cratera, e tudo a somar ao jactos piroclásticos. 

Para saber mais:
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Agora talvez perguntem porque fiz este post. Acontece que este quadro de Turner (uma reprodução) é justamente o que tenho à cabeceira da cama, e sempre estranhei aquela cor alaranjada do céu e do reflexo na água. Está tudo explicado: o quadro refere-se a 1817.

Chichester Canal, ca. 1828, J.M.Turner

Boa noite!

domingo, 26 de janeiro de 2025

Batumi, porto e cidade vibrante do Mar Negro, na admirável Geórgia

Há meses publiquei um post sobre a fascinante Mtskheta, agora dou a ver a Geórgia mais rica, moderna e europeia: uma cidade da Belle Époque renovada, animada, limpa e apetecível, a sul da indigente costa russa: Batumi.

Convém começar por insistir : a Geórgia fez parte do império romano alargado, foi bizantina e manteve-se europeia resistindo a persas, mongóis, turcos e russos. É um país de contrastes violentos entre as aldeias isoladas nas montanhas do Cáucaso e as cidades cosmopolitas da planície e do mar, cidades quentes de clima sub-tropical; e de contrastes também étnico-culturais - matriz cristã ortodoxa, fortes heranças turcas e russas, espírito aberto e civilizado europeu. Actualmente está em convulsão devido à situação geoestratégica; sente-se irmã de armas da Ucrânia e aspira à União Europeia - seria muito bem vinda, mas complicaria muito a gestão das relações com o império agressivo de Moscovo.

Batumi é desde os Gregos (Batumi <- Bathys, porto) um dos raros portos de águas profundas na costa leste do Mar Negro. Nos primeiros séculos da nossa Era mandavam os Romanos e o Imperador Adriano mandou fortificar o porto. Quatro séculos depois seria abandonado a favor do Forte de Petra mais a sul, já sob Justiniano. Mas a região Adjari, ou Adjara, era disputada também pelos Persas, que várias vezes a tomaram aos Romanos, até à vitória definitiva de Roma em 628; logo vieram turcos e árabes juntar-se à disputa. Durante o período Bizantino, é fortalecido o poder da Igreja Ortodoxa que seria consolidado no século XI. A cidade viveu um período de calma e expansão até à anexação pelo Império Russo e depois pela URSS de 1879 a 1991, instalando-se na Geórgia um regime fantoche corrupto que levou Batumi a uma quase ruína. Agora brilha como capital da Adjara.

A Praça da Europa



A sala de visitas de Batumi é a Praça Europa, e a sua incrível estátua de Medeia, homenagem ao passado Grego: esta é a cidade do Tosão de Ouro ! O rio Rioni que os Argonautas subiram fica um pouco mais a norte.


A praça central de Batumi recebeu o nome da aspiração Georgiana: a Europa. É um vasto espaço com arquitectura eclética em torno, mas o que sobressai é este 
prédio do antigo Banco Nacional, situado na principal rua da cidade ao passar pela Praça: a avenida Memed Abashidze

 
Também há fartura de fontes para amenizar os mais quentes dias sub-tropicais.

O Relógio Astronómico


Na Torre do antigo Banco Nacional, este relógio astronómico é uma modernice requintada, sinal de novo-riquismo entusiasmado com a Europa. Feito por encomenda na Alemanha em 2010, inspirado no famoso relógio histórico de Praga.


Ainda no edifício do Banco Nacional , a ' КНИГИ ' (= Livros) conhecida agora como restaurante BK, para casamentos e outras celebrações, tem uma janela em vitral com um caixilho redondo de madeira que não é nada vulgar.


O vitral representa cenas religiosas bíblicas.

É o nº 25 da Memed Abashidze.

Batumi foi visitada por escritores, artistas e exploradores nos séculos XIX e XX: para além do norueguês Knut Hamsun, que fez uma longa viagem por toda a Geórgia, também aqui estiveram por exemplo Alexandre Dumas, Vítor Hugo e John Steinbeck.

Quase todos referem que o pior de Batumi é o clima, quente e húmido (80-90%), muitas vezes desagradável - a roupa colada ao corpo. Os ventos do Mar Negro ficam bloqueados pelo Cáucaso, o que resulta numa extrema pluviosidade. Também era um problema até ao século passado a frequência de infecções e doenças tropicais.


Os quarteirões da cidade antiga, um quadriculado de ruas, são os que estão próximos do porto, com maior relevância para as ruas perpendiculares à costa, que correm leste-oeste e se inundam ao fim da tarde das cores quentes do pôr-do-sol. Abundam as varandas cobertas em ferro forjado, uma das características mais pitorescas da cidade.

Avenida Abashidze

Dessas ruas, a mais notável é a Memed Abashidze, com cerca de 4 km desde a promenade marítima, passando pela Praça Europa e a Torre do Relógio e continuando como longa rua comercial e residencial. No século XIX era o centro bulicioso da cidade, onde tudo se passava e onde moravam as famílias ricas; agora enche-se de esplanadas, de cafés e restaurantes.


O primeiro troço da rua para quem vem do lado do mar é o mais rico em varandas.


Memed Abashidze foi um leader independentista da Adjara, perseguido pelo regime soviético. Uma das casas onde viveu fica aqui:


A casa chama a atenção pela bela varanda metálica em azul celeste.


O Cinema Apollo


No nº 17 fica o Cinema Apollo, que o regime soviético demoliu; desde a independência, foi fielmente reconstruído, mantendo-se como sala de cinema.


A Memed Abashidze entra lateralmente pela Praça Europa. O nº 22 é o prédio de prestígio que ali faz esquina com a rua Gamsakhurdia, que se verá mais adiante.


Foi a Casa de Sabaev, de 1903-1904, localmente conhecida como Prédio dos Atlantes, os Titãs que sustentam o mundo.


É agora a sede administrativa do Governo Provincial de Adjara.



Ao longo da Praça Europa, a rua passa pela Torre do Relógio e sai em grande com mais dois prédios notáveis.

Há uma florista, um café e um restaurante.

O prédio nº 34-36 foi a primeira farmácia, construída no fin de siècle (XIX), o melhor período de toda a Batumi. O escritor norueguês Knut Hamsun, que visitou a cidade em 1899 durante a sua longa e atribulada viagem ao Cáucaso, relata que em estado febril procurou remédio nessa farmácia.


Arquitectura requintada de inspiração francesa.



Continuando pela Memed Abashidze, mais acima:


A casa nº 49 é o Teatro das Marionetas, ou Teatro Infantil, do início século XX, patrocinado pelo independentista Memed Abashidze. Como represália, foi fechado durante o poder russo e usado como a 'Casa dos Professores'.


Actualmente continua a oferecer espectáculos e actividades variadas para crianças.

Outra rua: A Konstantine Gamsakhurdia atravessa a Memed Abashidze numa das esquinas da Praça, no sentido norte-sul; é uma animada e agradável avenida, pela sombra das árvores ao longo dos largos passeios e pelas lojas de prestígio. É profundamente europeia no ambiente cosmopolita de comércio, cafés e restaurantes, como o Café Literaturuli !

No Café Literário.


Decididamente gostam de café e de livros, boa razão para que se vá a Batumi. Uma surpresa. Na esquina final com a Avenida Rustaveli fica o Coffeetopia, sítio chique com esplanada.

 K. Gamsakhurdia nº6



Tem vista para a Fonte de Neptuno, em frente, mais uma imitação de mau gosto (da fonte de Bolonha).


Ao aproximar-se do passeio marítimo, cruza-se com a grande avenida Rustavelli:

Konstantine Gamsakhurdia ao cruzar a Av. Rustaveli - cidade mediterrânica.

Na Rua Parnavaz, bem no centro histórico, a igreja mais bonita de Batumi ocupa uma esquina entre prédios modernos: St. Nikoloz, ou S. Nicolau.


Igreja ortodoxa grega de S. Nicolau

Foi construída pela comunidade grega da cidade, e terminada em 1865.


É a mais antiga de Batumi, obra de um arquitecto austríaco no estilo neo-bizantino, com as paredes exteriores pintadas em faixas vermelho e branco. 

Mosaico na esquina exterior.


O interior é rico em ícones do séc. XIX.




Ainda não disse, mas digo agora: infelizmente, Batumi está recheada de mamarrachos modernistas, muitos deles em forma de torre ao arranha-céus, que a desfeiam tanto mais quanto se encontram dispersas tanto pelas avenidas da beira - mar como pelas ruas da parte velha. Um novo-riquismo de gosto desagradável, como se tivesse havido ânsia de parecer moderna à força.

Museu  de Arte de Adjara

Um edifício de 1883, no século mais pujante de Batumi.


No cimo das escadas, a peça central é uma escultura.


Ninfa e um pequeno Fauno, 1853 , mármore de Emilio Santarelli , escultor de Florença.



Algumas obras, imagens obtidas no site:

"Velhos", de Gigo Gabaszwili, pintor Georgiano, 1862-1936

Radish Tordia, "Rapariga de branco", 1992

Zaur Tsudlaze, Porto de Batumi, 2003

Rusudan Petviashvili ´Regret´, 2000


Em Batumi há também um excelente Museu Arqueológico com os achados de escavações em sítios próximos - a colónia Grega de Pichvnari, a fortaleza Romana de Gonio, e na região de Kobuleti vestígios desde a Idade da Pedra.

Jardim Botânico de Batumi


O Jardim Botânico é um espanto; ocupando uma encosta íngreme sobre o Mar Negro, tem uma enorme variedade de flora, uma das mais extensas do mundo - árvores e plantas exóticas da Ásia (incluindo Himalaias), América do Sul, Oceânia, Mediterrâneo e Cáucaso.


Foi inaugurado em 1912 pelo botânico Andrey Krasnov (1862-1914), da Universidade de Kharkiv, tem mais de 1 km2, e visita-se a pé por uma rede de caminhos.



Em Batumi há animação e vontade de civilização, as gentes vivem em democracia mesmo que o regime seja fantoche e corrupto. Esta dualidade existe há muito na Geórgia, é quase um hábito, mas nestes dias os habitantes mostram uma crescente vontade de mudar para melhor.