Está no renascido Museu Jacquemart-André em Paris uma extensa exposição da obra da pintora renascentista italiana Artemisia Gentileschi (1593-1656), contemporânea de Caravaggio: nasceu em Roma e foi aclamada e admirada no seu tempo, o que lhe permitia viver das obras que vendia. Em 1612, deixou Roma para viver uma nova vida em Florença, libertada de um passado humilhante. Foi na Toscânia que teve o seu período mais criativo e se tornou uma figura notável no meio artístico da época, travou amizade entre outros com Buonarroti e Galieu Galilei. Depois de breves estadias em Génova onde conheceu Rubens, voltou a deslocar-se em 1630 com a família, agora para se realojar em Nápoles, na altura a terceira maior cidade da Europa, onde não faltavam oportunidades de negócio e lhe foi fácil integrar-se e tratar com mecenas ilustres como Filipe IV de Espanha. E em 1638 viajou, imagine-se, até Londres, numa altura em que o seu pai, pintor da corte, trabalhava na decoração da Casa da Raínha em Greenwich; Orazio viria a morrer no ano seguinte, e após algum trabalho a concluir a obra do pai Artemisia regressou a Nápoles.
O Museu Jacquemart-André exibe cerca de quarenta dessas obras, algumas das quais obras primas da Renascença italiana, onde Artemisia exprime tenazmente a vontade e determinação com que enfrentou os vexames sofridos como mulher: em 1611, aos 18 anos, foi violada por um aluno do pai e mestre, o pintor Orazio Gentileschi.
Começo pela obra que executou para Michelangelo Buonarroti, para decorar um tecto em Florença.
Allegoria dell' inclinazione, 1616 -Florença
Uma jovem de cabelo ruivo rebelde parece sentada sobre uma nuvem a pairar no céu estrelado, segurando uma bússula inclinada. A alegoria alude à inclinação artística, à orientação para o talento criativo. Artemisia, então com 23 anos, despiu-se sem pudor nesta encomenda de um dos seus mecenas toscanos.
"... a Allegoria dell'inclinazione, a alegoria de todas as propensões artísticas do divino Michelangelo. Com uma liberdade desconcertante, Artemisia retratou-se a si mesma, reivindicando na obra a beleza do próprio corpo, e o génio do seu pincel."
Mitologia cristã
Santa Catarina foi uma das mulheres-mártir que Artemisia escolheu como heroína. Representou-a várias vezes, uma está nos Uffizzi, esta está na National Gallery de Londres:
A bela Artemisia em auto-retrato como Santa Catarina de Alexandria (Florença, 1617) - ao lado a roda dentada com que sofreu tortura, a pluma na mão é um símbolo de mártir.
Artemisia também pintou várias vezes Maria Madalena, uma heroína com que se identificava pela sua liberdade e pela fatalidade da sua história de vida, sempre ressaltando com frescura a espiritualidade da santa, para o que recorreu a luz e sombra sobre uma intensa corporalidade,
Admirável
De olhos fechados, penteando sensualmente com os dedos um madeixa de cabelo ruivo, medita talvez nos seus pecados. Na sombra, à esquerda, um frasco de unguento; a pulseira e o brinco de pérola indicam a sua anterior vaidade mundana.
Mitologia da Antiguidade
O rosto, mais um vez, tem as feições do de Artemisia, frequente auto-modelo. Cores intensas, lápis-lazuli do lençol e carmesim do travesseiro debruado a ouro. Sendo o lapis-lazuli caríssimo, deve ter sido uma encomenda bem paga, na altura por algum mecena florentino.
Na mesma época, uma 'Morte de Cleópatra':
De 1635, já Artemisia estava em Nápoles.
Cleópatra, no seu triste destino de mulher heróica, é retratada com carinho na brancura da morte rodeada de tons de azul e amarelo. O uso do lápis-lazuli, o pigmento mais caro, a que só recorriam os artistas bem pagos, salta à vista no azul vivo do pano.
Também de 1635 é este auto-retrato enquanto musa da Pintura, a obra que mais me emociona e deslumbra de Artemisia, aqui na sua maturidade; digamos que vaidade não lhe falta, cuida-se bem nas roupas e vê-se muito ao espelho; mas que talento !
Allegoria della Pittura, 1635
Em 1637, fez para o cardeal de Nápoles um "Cristo e a Samaritana no poço" contrário às regras tradicionais: a Samaritana não está sentada modesta e passivamente a ouvir um monólogo, mas antes se inclina para a frente conversando de igual para igual:
Mas talvez a mais conhecida pintura de Artemisia seja outro seu auto-retrato, uma obra da maturidade - tem 46 anos quando pinta este Autoritratto come allegoria della Pittura :
Raffaello Sanzio não faria melhor
Raramente Artemisia pintou homens, e quando o fez foi para se vingar, seres repelentes ou decapitados. Escuso-me de reproduzir aqui essa arte feia e cheia de ressentimento, mas enfim, sou homem.
Museu Jacquemart-André
A famosa escadaria em dupla hélice.
O melhor do Museu está no cimo da escadaria: um grande fresco de Tiepolo trazido da Vila Contarini (Veneto) que representa a chegada de Henrque III a Veneza :