terça-feira, 22 de julho de 2025

Nigeraurak e a pequena Mugpi, a bordo do 'Karluk' e presos no Ártico Siberiano


Hoje, uma história com aventura, navegação, tragédia e uma gatinha entre o Alasca e o Norte da Sibéria.

Nigeraurak, a mascote do Karluk

Em 1913, partiu no navio 'Karluk' uma expedição ao Ártico Canadiano desde Barlow, no Alasca. Ia tentar atingir a Ilha de Herschel, ao encontro de outro navio (o 'Alaska') para juntos explorarem o Oceano Ártico e a região junto à foz do grande rio Mackenzie.


O Karluk (='peixe' en inupiak*) era um pequeno baleeiro a vapor e com dois mastros, recuperado para enfrentar mares gelados e comandado por Robert (Bob) Bartlett.


Navegando desde Nome, porto e vila mineira na costa do Alasca, fez escala mais a norte em Barrow (= Utqiagvik) onde embarcou a família nativa inupiaq (*) do caçador Kataktovik; nessa família havia uma criança de 3 anos, Mugpi (adaptado de Makpii)


Foi a 17 de Junho de 1913 que a expedição iniciou a aventura navegando para leste. A bordo seguia uma tripulação de 13 homens, uma equipa de 10 cientistas, um carpinteiro, e os 4 inupiaq. A mais-valia dos nativos era o conhecimento do território e de estratégias de sobrevivência no gelo, mas outra importante contribuição viria a ser a confecção de roupas e calçado com a pele das focas e dos ursos.

Uma mascote inesperada foi uma gatinha preta que alguém insinuou a bordo, baptizada Nigeraurak ('pretinha'). Adaptou-se muito bem ao frio e aos cães de trenó, que a respeitaram depois de um deles ter sido alvo de unhas felinas afiadas.


A viagem começou a correr mal pouco depois de Barrow, por causa do gelo oceânico que bloqueou rapidamente a navegação; o navio era de pouca solidez para a forte compressão do gelo, e foi levado à deriva para ocidente; em vez seguir a costa ártica para leste em direcção à ilha Herschel, foi empurrado no sentido oposto para o ártico siberiano. À mercê dos ventos e das correntes, atravessou o estreito de Bering e seguiu muito ao largo da costa da Sibéria, em direcção à ilha Wrangel, já então bem conhecida dos marinheiros, pelo menos desde 1881 quando foi visitada pelo explorador escocês John Muir numa expedição americana; descreveu-a como 'agrestemente desértica'.


Sob o comando do Capitão Bartlett, o Karluk quedou-se enclausurado numa placa de gelo um pouco a Norte da ilha Wrangel em Janeiro  de 1914. No final do Inverno o inevitável aconteceu:  a placa de gelo começou a rachar e recongelar sucessivamente, e as pressões laterais esmagaram o navio. Bartlett resistiu até ao fim mas quando chegou a hora deu ordem para abandonar.


Um acampamento tinha já começado a ser instalado com tendas e provisões; construíram-se mais igloos grandes e abrigos para cães e trenós. As provisões básicas, essenciais, eram os fogareiros a óleo, os enlatados de pemmican, chá, café, açúcar, bolachas e chocolates. Foi o "Shipwreck Camp", onde se refugiaram 22 homens, uma mulher, duas crianças , 16 cães e um gato encalhados na escuridão do inverno ártico, cerca de 60 km a norte de Wrangel.

A montar o Acampamento de Naufrágio, 'Shipwreck Camp'.

Pemmican é uma conserva à base de carne, utilizada em situações extremas de abandono no deserto gelado. Pode estar comestível ao fim de 120 anos, como já aconteceu, mas também pode tornar-se um veneno mortal.

Terminado o desembarque, já de noite, alguém deu pela falta da gatinha preta. Na manhã seguinte viram que o Karluk, muito inundado, ainda flutuava, e de lá saltou a Nigeraurak ! Foi instalada carinhosamente numa almofada de peles dentro de um cesto.


Seguiu-se uma penosa e longa luta pela sobrevivência. A  única esperança era conseguir chegar à ilha Wrangel, a 130 km, ilha desabitada mas terra firme onde poderiam caçar várias espécies. Para lá chegar a jornada era terrível - o gelo marinho acumulado junto à costa levantava agulhas, lâminas, lombas e fossas que dificultavam a progressão de trenós, e nas aberturas entre placas de gelo era preciso embarcar toda a gente e a carga num dos barcos salva-vidas, para voltar a desembarcar logo depois. 

O 'pack ice' balança, estala, abre fendas e fecha fazendo subir lâminas intransponíveis.

Bartlett planeou demorada e detalhadamente viagens de reconhecimeto por étapas, que deixavam mantimentos no percurso e voltavam ao acampamento, preparando assim aos poucos a futura avançada para a ilha. Mas entre os homens havia vontades diferentes, uns partiram de vez por conta própria, ou morreram ou foram parar a uma outra ilhota inóspita de onde não se conseguiram salvar. Os que chegaram à ilha Wrangel viveram meses de uma tragédia de frio, fome e doença, alimentando-se apenas de alguma ave que conseguiam caçar e de ovos - na ilha vivem colónias de gansos-da-neve e de kittiwake, uma gaivota do Ártico.


 A Ilha de Wrangel

A costa bravia e agreste a sul e poente.

Cape Waring, a leste, perto do acampamento onde se refugiaram os sobreviventes do Karluk.

A 'praia' de Rodgers Cove, aberta no relevo costeiro por um curso de água doce. Aqui acamparam os sobreviventes à espera do resgate.

Rodgers Cove no Verão Ártico. O único 'porto de abrigo' na ilha.



Entretanto Bartlett e Kakaktovik conseguiram chegar à Sibéria, e daí num navio baleeiro atravessaram o Mar de Bering. Mal chegou a Nome no Alasca, em Junho, Bartlett conseguiu que um navio tentasse o resgate; mas esta primeira tentativa falhou, o navio não conseguiu ultrapassar o gelo. Só em Setembro de 1914 chegou finalmente a Wrangel uma equipa de resgate, no pesqueiro canadiano 'King and Winge', uma pequena escuna baleeira mais sólida e bem preparada. Foi possível embarcar a salvo 13 sobreviventes, em diferentes acampamentos - e a gata Nigeraurak, por sinal bem gordinha.

A 'King and Winge', construída em 1914, tinha um casco mais robusto e um motor mais potente.

Contudo, muitos não tinham resistido - por doença, frio, acidentes ou envenenados pelo pemmican.

O resgate de 12 sobreviventes em Rogers Cove.

Quando os sobreviventes deixaram finalmente o acampamento, levaram a Nigeraurak num saco de pele de corça com uma alça para ir pendurada às costas. Era uma preciosidade. Habituara-se a farripas de pemmican, todos lhe queriam servir uma pitada. Ficou a cargo do seu grande amigo e protector Fred Maurer, quem mais a mimou e acarinhou durante a viagem até ao fim da tragédia. Ao todo, com Bartlett e Kakaktovik, sobreviveram 15 dos inciais 28 membros da expedição, 16 se contarmos a heróica gata. Mugpi/Makpii, de nome completo Ruth Makpii Ipalook, voltou a Barrow, Alaska, onde arranjou trabalho e viveu até aos 97 anos; faleceu em 2008 em Anchorage.

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The Lamp, the Ice and the boat called 'Fish'

A Lâmpada, o Gelo e um barco chamado 'Peixe'  é um livro ilustrado que narra aventura do Karluk , do ponto de vista dos nativos inupiaq que nele participaram. É justamente Ruth Makpii Ipalook, já adulta, quem conta a história que Jacqueline Briggs Martin adaptou a crianças e Beth Krommes ilustrou.

O Inverno chegou cedo em 1913,
e em breve o Capitão
dirigia o navio entre blocos de gelo

- alguns grandes como casas.

Marinheiros e Cientistas usvam caixas e barris
Para construir as paredes de um abrigo 
sobre uma grande placa de gelo
não muito longe do navio.

Olha a Nigeraurak !

Ela tinha de usar goggles, também. 
Senão, o sol e a neve
em breve causariam a cegueira. 
Alguns tinham goggles em vidro de âmbar.

Na capa, o dia em que chega a salvação.


[traduções minhas]
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(*) Os Inupiaq, ou Inupiat, são o povo nativo do Alasca, aparentados com os Inuit do Canadá e Gronelândia.








domingo, 20 de julho de 2025

Aasiaat, em Disko Bay (Gronelândia), Ártico civilizado


Está na altura de dar um salto até onde está fresquinho. A 68º N, Aasiaat ainda não é excessivamente polar.

Vermelho, azul e alguns amarelos, são os tons dominantes do casario de Aasiaat.


Aasiaat (antiga Egedesminde) é uma cidade na costa ocidental da Gronelândia, situada numa pequena ilha no sul de Disko Bay, a grande baía formada pela canal marítimo de Baffin Bay.


Disko Bay foi visitada pelos Vikings de Eric o Vermelho em 985, na sua procura de um lugar acolhedor ao longo da costa ocidental durante o Verão; a colónia Norðrsetur chegou a ter perto de 6000 caçadores de Verão, que se abasteciam de carnes, marfim de baleia, chifres, peles, falcões para exportação - uma expedição anual que se prolongou durante quase quatro séculos, até à Pequena Era Glacial tornar a Gronelândia inabitável (~1360-1400). Terá sido em Disko Bay que houve os primeiros encontros e confrontos entre os nórdicos da Islândia e os nativos Inuit que habitavam Saqqaq.

O último navio mercante Viking registado chegou à Gronelândia em 1406. Ainda há notícia do casamento do seu capitão na capela de Hvalsey em 1408. Aos poucos os Inuit foram descendo a costa e fundando pequenos povoados.

Disko Bay é o principal destino turístico e a área mais povoada da Gronelândia, com as três cidades de Ilulissat, Qeqertasuaq e Aasiat num total de uns 10 000 habitantes, 1/5 do total da ilha. 

Aasiaat, Disko Bay


População : ~ 3 500
Coordenadas : 68° 42′ N, 52° 52′ W,  ~200 km a norte do Círculo Polar Ártico
 

A primeira povoação foi fundada em 1759 por Niels Egede, um missionário e homem de negócios noruegês, como posto colonial para comércio de peles, baleia beluga, foca harpa e narwhal. A pesca tradicional ainda se exercia em kayaks e umiaks construídos no local.

Traineiras de pesca em frente da 'Casa do Homem do Mar'.

Entretanto, modernizada a frota desde a década de 1930, a aldeia passou a depender da pesca do bacalhau, que começara a ter grande procura. O crescimento económico continuou por mais de 20 anos, quando foi instalada na aldeia uma unidade de produção de energia para a fábrica das pescas e uma estação de comunicações. Desde então a pesca alargou-se ao camarão e caranguejo, processados no local; mas nos anos mais recentes as receitas turísticas ligadas às visitas de Cruzeiros tornaram-se outra receita importante que ameaça descaracterizar a vida tradicional, mas garante um nível de vida mais Europeu.

Situadas de forma esparsa sobre uma ilha, as casas coloridas de Aasiaat em conjunto com o porto de pesca compõem um cenário muito 'gronelandês'.

As casas sobre a encosta pedregosa são acessíveis por uma rede de escadas de madeira.

Aasiaat é o principal centro educativo do Norte da Gronelândia, com Escola Secundária e uma Escola Superior

GUX Aasiaat, escola superior

Avannaani Ilinniarnertuunngorniarfik = North Greenland High School


Gala dos finalistas, trajes a rigor.

Público à espera da Maratona 'Midnight Sun'




Aasiaat tem escolas, pavilhão desportivo, um Hospital, um Museu, restaurantes, um café. E até  algumas lojas !


Hotel Soemandshjemmet


O Soemandshjemmet (Casa do Marinheiro) tem vistas de mar, para o porto e a cidade. Os edifícios são de 1778 - 1826, foi construído para residência dos baleeiros. No Verão é possível avistar baleias das janelas dos quartos, e no Inverno apreciar a passagem de grandes icebergs.



Café 3

Situado junto ao porto, é um espaço de qualidade inesperada.

Since 1996


A loja de marcas Anui 

Calçado, roupas , cosméticos, acessórios desportivos e decoração, marcas de prestígio - qual será o poder de compra aqui?




Spermercados há o Pisiffik e o Pilersuisoq


Museu de Aasiaat


O pequeno Museu foi estabelecido em 1978 para guardar e mostrar artefactos inuit da região. Desde então, foca-se na História Inuit e em exposições temporárias.


O passado da ocupação humana do território está documentado em modelos, fotografias e textos.

'Egesdesminde', 1879

A colecção permanente inclui utensílios e apetrechos das actividades de caça e pesca, trajes tradicionais e artefactos caseiros.


O Salão foi decorado pelo pintor dinamarquês Per Kirkeby.

A parede pintada por Per Kirkeby.

Per Kirkeby, 'Aguarela de Godthåbsfjord', 2012


A cabana de turfa


Foi criada uma extensão do museu na antiga casa de turfa, uma cabana tosca como as que deram origem à povoação: baixa, rectangular, com paredes de pedra e coberta de turfa relvada.  


Robusta e bem isolada, ainda estava em uso à volta de 1950.

Actualmente, Aaasiaat é bastante animada com as chegadas diárias do ferry da Arctic Umiaq Line e grandes navios mercantes da  Royal Arctic Line.

Sarfaq Ittuk, o 'ferry' costeiro, que serve Aasiaat duas vezes por semana.

O aeroporto de Aasiaat permite ligações aéreas com Ilulissat, Nuuk e outras aldeias mais pequenas.


A esta latitude não se encontra uma qualidade de vida semelhante em nemhum outro lado.