sexta-feira, 13 de março de 2009

Thule, a última Thule, o Norte da interminável procura

Acabei há pouco de ler "The Ice Musem - In search of the lost land of Thule", de Joanna Kavenna, um livro magnífico que não me apetecia parar de ler sobre essa longa demanda da mais nórdica paragem do planeta. Aqui fica um resumo pessoal e um pouco do fascínio que tenho por Ilhas e pelo Ártico.


Ultima Thule! Utmost Isle!
Here in thy harbours for a while
We lower our sails; a while we rest
From the unending, endless quest


Henry Wadsworth Longfellow


A mítica de Thule (ou Tile) é a de um tesouro perdido, como Atlantis ou o Graal. O culpado foi mais uma vez um grego da Grécia Antiga, 4 séculos A.C. , que nasceu na colónia de Marselha ( Massalia) : Pytheas, um mercador, geógrafo e navegador, que foi o primeiro a atribuir à Lua a causa das marés, a medir o perímetro da costa britânica – era um especialista no cálculo de latitudes e longitudes. Não é costume falar-se dos gregos como grandes exploradores, mas este foi um precursor de Marco Polo, para Norte.

Na verdade, à míngua de chumbo para o fabrico de bronze, os gregos estavam interessados nas minas que sabiam existir na Cornualha. Pytheas era um navegador competente, que fazia registos de viajem. Por volta de 330 AC partiu de barco de Marselha , visitou a costa sul da península ibérica, passou o estreito de Gibraltar, visitou o Ieron akrōtērion (o promontório sagrado de Sagres), e seguiu para norte a costa de Portugal, passando depois em Bordéus, Nantes, chegando à Bretanha (usou o nome Pretannia pela primeira vez ) pela Cornualha, onde procurou estabelecer contacto com as minas de chumbo.
Descreveu com simpatia os habitantes “civilizados” e os métodos engenhosos de extracção. Terá visitado Stonehenge e depois continuou velejando até à Escócia e ainda foi mais longe, determinado a descobrir o que havia nessas zonas não cartografadas onde os mapas mostravam apenas monstros.

Visitou as Hébridas, Orkneys e Shetlands. Viu “peixes enormes , do tamanho de um barco, que nadavam lentamente à superfície soprando ruidosos jactos de água”. Seguiu seis dias para Norte até avistar uma ilha a que chamavam Thule.

A rota de Pytheas, segundo F.Nansen, "In Northern Mists":


Aqui começa a “realidade ou ficção?” de Pytheas.

Nas suas notas, descreveu a população como “bárbaros” teutónicos ou germánicos, que viviam de uma agricultura simples – viviam à base de mel, leite e frutos. Mostraram-lhe o sítio onde o sol se põe a descansar. Viu que no inverno o sol nem aparecia – a escuridão durava meses. Viu que no verão não havia noite. Viu um mar estranho, espesso, fundido com a terra e o céu (auroras boreais?) numa massa de gelo viscosa que oscilava com as ondas, onde não se podia caminhar nem navegar. Fugiu deste “mar solidificado” e regressou a Marselha. Relatou a viajem “até ao fim do mundo” numa obra que se perdeu, “Àcerca dos Oceanos”. Só se conhecem algumas citações por autores posteriores:

os bárbaros mostraram-nos o sítio onde o Sol pousa a descansar. Pois acontece que nestas partes as noites são muito curtas, de duas ou três horas, de modo que o sol se levanta pouco depois de pousar

- Citado por Geminus de Rodes

Na mitologia grega existia um povo – os Hiperbóreos, “para além do ventos do Norte” – feito de gente feliz, que não sofria das aflições normais dos humanos, sempre em alegres festanças porque nem a doença nem a morte os atingiam. Não admira que se julgasse serem estes os habitantes da Thule de Pytheas !
Através dos tempos, as especulações sobre a localização de Thule apelaram à imaginação de viajantes, sábios e poetas. Thule tornou-se um lugar mítico, uma ideia na História que evoca ao mesmo tempo bem estar e ânsia de aventura, movendo-se sempre mais para Norte à medida que os exploradores do ártico alcançavan maiores latitudes. Um paraíso que, como o arco-íris, recuava à medida que dele se aproximavam. Uma ilha, forçosamente.

Tinha começado a procura. Onde ficava Thule?

Logo de início houve opiniões divergentes. Segundo o historiador Heródoto (5 BC) nessas latitudes “não se vê nada”:

Há uma queda constante de penas brancas contra o rosto, o ar fica mais grosso e o chão completamente coberto delas.

Mas Pytheas era respeitado, as suas medições bastante rigorosas e o seu rigor de observação nunca tinha sido posto em causa.
Os romanos adensaram o mistério e a polémica. Virgílio rebaptizou-a como “Ultima Thule”, a remota Thule, a ensombrada última terra do Norte. Mas foi o romano Strabo em Geographica (30 DC), quem lançou mais achas para a fogueira: fez troça de Pytheas, um “charlatão”, que inventara a fábula de Thule. Pytheas localizara Thule 6 dias de viagem a norte das ilhas britânicas, o que era impossível, pois estas ilhas eram a terra habitada do Norte mais longínqua do mundo, onde os habitantes viviam na miséria por causa do frio. Só a Irlanda era ainda mais miserável – os filhos dormiam com as irmãs e comiam os pais...Quanto mais a norte, mais miseráveis, e pior que isto já não era possível, escrevia Strabo. Por isso, Thule só podia ser a mais nórdica das ilhas britânicas.





Plínio o Ancião, na Naturalis Historia, descreveu em 77 DC Thule como “a mais remota das terras de que há notícia”, com invernos sem sol e verões sem noite; localiza-a no Círculo polar Ártico. Baseado no relato perdido de Pytheas, afirma que a travessia para Thule começa na maior das Hébridas, o que teria levado o grego em 6 dias à Noruega, perto de Trondheim, um pouco abaixo do Círculo. Esta conclusão parece condizer com as coordenadas (baseadas em Marselha) que Pytheas indicava para Thule. As latitudes, pelo menos, são verosímeis – as longitudes é que não são de fiar.
O historiador Tácito descreve a viagem dos romanos à volta da Bretanha, provando que era uma ilha, e afirma que “chegaram a avistar Thule, mas não tinham ordens para lá ir, com o Inverno à porta.”
No séc 6 DC, o monge historiador Procópio identifica Thule com a costa norueguesa. De facto, na época de Pytheas, a Islândia nem tinha sido colonizada – os próprios islandeses rejeitam que Thule seja a sua ilha.
A questão de Thule continuou a deixar perplexos os antigos geógrafos ao tentarem cartografar mapas do extremos da Terra– ora representando um enorme rio inultrapassável, ora um vasto cinto de mar de Pólo a Pólo...




Com o passar dos anos, no Renascimento, as ilhas do Norte foram reclamadas e mapeadas: a Islândia, a Escandinávia, as ilhas Shetlands, as Orkney, as Faroé ou mesmo as Lofoten - mas nunca houve consenso nem precisão quanto a Thule: continuava um mistério, um Graal nórdico – uma ilha imersa em nevoeiro à entrada de um oceano gelado.
De Julio Cesar a Cristovão Colombo, de Goethe a Edgar Allan Poe, muitos se referiram a Thule, deixando-se seduzir pelo mistério. Talvez não passasse afinal de um devaneio poético...


O período vitoriano foi particularmente febril, na sua ânsia por descobrir novas terras e civilizações. Da Escócia e da Noruega partiam em série grupos de turistas aventureiros em direcção a Norte, à procura de Thules mais além. Houve também uma sociedade nazi que proclamou Thule, um equivalente nórdico da Atlântida, como berço da raça ariana, e de início inspirou o próprio Hitler. E no horror da 2ª grande guerra, Thule foi para os vitorianos uma espécie de Arcádia, um refúgio do mundo em convulsão. Descobriam com espanto as mais afastadas das Hébridas, a costa dos fiordes noruegueses, a Islândia dos Vikings e da natureza em bruto, as Faroé das casinhas de tecto relvado.
Das Shetlands ao arquipélago Svalbard (ou Spitzberg), das Faroé até mesmo à Gronelândia, a procura continuou até ao século XX ! A questão pareceu resolvida quando Robert Peary descobriu o extremo Norte da Gronelândia em 1900.

Sinto que os meus olhos finalmente repousam sobre a Última Thule do Ártico (Cape Morris Jessup)”.

Oodag, o bocado de terra firme mais a norte do planeta

Por 68 anos, Cape Morris Jessup ficou incontestado como o local em terra firme mais a norte do planeta. Mas em 1968 foi descoberto outro mais a Norte, e outro mais ainda 10 anos depois – uma pequena ilhota de gravilha de 15m por 8 m , submersa amaior parte do tempo, a que se deu o nome de Oodaag, um dos companheiros inuit de Peary.

O lago Kaali na ilha Saaremaa


Surgiu ainda um inesperado e credível candidato – a ilha Saaremaa da Estónia, onde há uma espantosa cratera de meteoro; o facto de Pytheas ter regressado pelo Báltico, onde vê o âmbar como “uma excreção do mar”, é invocado em favor desta localização. Talvez o “local onde o sol pousa a descansar” fosse a cratera onde o meteoro em fogo caiu, por volta de 500 A.C., posteriormente local sagrado em todo o Bático. E embora no fim do século o fascínio popular arrefecesse até à indiferença, ainda continua a haver quem se agarre à promessa de pureza primordial da legendária Thule.

A partir de Peary, “Ultima Thule” tornou-se sinónimo de local mais a norte do planeta, de preferência ilha, mais próximo da conotação romana “local para além do mundo conhecido”.
O explorador Knud Rasmussen fundou na Gronelândia uma base , junto à povoação Inuit de Avannaa, a que chamou “Thule”, em 1910. É essa a origem da denominação “povo de Thule”, uma população paleo-esquimó predecessora dos actuais inuits.
Em 1953 Avannaa deu lugar a uma base militar americana, construída durante a ocupação nazi da Dinamarca, que foi baptizada “Thule Air Base”.
Embora seja defensável a tese de que Pytheas tenha avistado ao longe as montanhas da Gronelândia, tudo leva hoje a crer que afinal se referia à costa norte da Noruega, entre Trondheim e as Lofoten, que confundiu com uma ilha.
Mas isso não tira o mérito de Pytheas, o primeiro grande explorador, que, no tempo de Alexandre o Grande, viajou até às fronteiras de um novo mundo. Merece um lugar ao lado de Colombo ou Marco Polo.





Pytheas de Massalia,
bolsa de Marselha












By a route obscure and lonely,
Haunted by ill angels only,
Where an Eidolon, named Night,
On a black throne reigns upright,
I have reached these lands but newly
From an ultimate dim Thule —
From a wild weird clime, that lieth, sublime,
Out of Space — out of Time.

Edgar Allan Poe

Links:

http://victorian.fortunecity.com/christy/32/kaali.html

http://www.bibliotecapleyades.net/sociopolitica/sociopol_thule07.htm

http://www.ub.uit.no/northernlights/eng/pytheas.htm

http://www.norway.gr/travel/Travel+stories/Pytheas.htm

http://www.economicexpert.com/a/Thule:myth.htm

http://www.arcticthule.com/history/history.htm

2 comentários:

Marcelo disse...

Gostaria da sua permissão para postar seu texto no meu site. Pode escrever para marcelolealll@yahoo.co.uk

Grato!

Mário R. Gonçalves disse...

Ok, pode usar o meu texto. P.F. refira as fontes e links, e dê-me o endereço do seu site...

Mário