segunda-feira, 29 de maio de 2017
Lady Inchiquin, de 1711 (Cremona), estreia na CdM
Estou a ser injusto certamente. O concerto em que Frank Peter Zimmermann interpretou o Op. 61 de Beethoven com a Orquestra da Casa da Música dirigida por Leopold Hager foi muito bom a vários títulos - a obra é genial, a orquestra teve uma excelente prestação e foi bem dirigida, o solista é um grande executante. Não me entusiasmou demasiado ? Pois não, por razões que já vou referir.
O que me entusiasmou, isso sim, foi o Lady Inchiquin, i.e., o Stradivarius que Zimmermann tocou com mestria. O som é mesmo mágico, de uma doçura incrível que no extremo agudo até comove, naqueles agudos pianíssimos... mas todo o registo é de timbre invulgarmente bonito. Foram esses momentos de sonoridade da madeira de ácer de Cremona que valeram o concerto, ou seja, o objecto mais que os intérpretes... É triste, não é ? dar mais valor a uma coisa - uma obra prima de madeira e tripa - que à paixão e entrega das pessoas, dos músicos ... não costuma ser assim, mas por uma vez, foi. Sem querer ofender ninguém.
Agora, a interpretação. A orquestra esteve equilibradíssima e tocou com muita expressão, mas não me agradaram as opções da direcção. O maestro Hager é convencional, obedece ao mainstream vienense de há muitas décadas, não quis saber do que tem acontecido de novo na direcção musical de obras do séc XVIII-XIX. Procurou fluência, suavidade nas transições, uma sonoridade sedosa e sempre bem equilibrada, o que resultou, para ser breve, em competente chateza. Uma leitura mais moderna e dinâmica, mais apoiada nos contrastes e detalhes e menos no equilíbrio, mais nos staccatos e menos na fluência, teria sido mais do meu agrado. Mas aceito que para gostos clássicos a interpretação foi bonita, limpa, imaculada mesmo.
Zimmermann, a mesma coisa. Não houve nada, nadinha, de pessoal, nenhum cambiante ou modulação original, nada fora do cânone conservador. Nenhuma surpresa ! Assim, é como ouvir a mesma obra (bem tocada, vá) pela centésima vez, sem trazer novidade ou marca pessoal. Sairam bonitas todas as notas, pronto.
Bem, a falar verdade não sairam bonitas: sairam belíssimas, porque foram produzidas num Stradivarius de 1711, um espanto que esteve na posse da inglesa Lady Inchiquin no séc XIX. Nem consigo imaginar o prodigioso que seria nas mãos de Fabio Biondi, Midori, Julia Fischer, Carmignola, von Mutter...
Zimmermann com Bernard Haitink em 2014:
Estou a queixar-me de farto, bem sei. Que sorte ter a oportunidade de assistir a um concerto tão perfeito. Aquele grãozinho de sublime que eu queria não é coisa que aconteça assim por dá cá aquela palha.
Parabéns, Zimmermann, OCdM, Leopold Hager.
Parabéns, signor Antonio Stradivari, Cremonensis, luthier.
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Antonio Stradivari 1711, VL Lady Inchiquin
" The wood, selected with the keenest discernment, unites to richness of figure all the conditions of sonority. For the back, as well as for the sides, he then altered the disposition of it, having the timber cut on the quarter (sur maille) instead of on the layers (sur couche). The arching of his instruments, without being too elevated, falls off in gentle and regular curves, which leaves it all the requisite flexibility. The sound-holes, cut with the hand of a master, became models for shape and size (modèles de dispositions) to all his successors. "
" Stradivari’s exceptional skills as a craftsman are emphasized in the execution of the f-holes, which are quite close and upright, with upper and lower holes that are almost perfectly circular. "
quinta-feira, 25 de maio de 2017
Oxford 4: no labirinto dos colégios e bibliotecas
Quinze dias eram bem precisos para calcorrear os percursos entre e dentro dos colégios de Oxford - e só falo dos que são acessíveis ao público. Há espaços tão mágicos e encantatórios que não admitem visita rápida, há que conseguir planear bem o tempo... Fachadas medievais, travejamentos, vitrais, claustros, altares esculpidos, nervuras góticas, quilómetros de prateleiras de livros antigos, trepadeiras e relvados, cúpolas e torres victorianas e relógios de sol, passeios entre muros vetustos, grades de ferro forjado e portais em arco, gárgulas aos milhares - parece que estamos numa cidade imaginária de Italo Calvino. Mas só - só ! - na zona história universitária e dos museus: o resto de Oxford é feioso, sujo, caótico e incómodo, não houve qualquer investimento ou cuidado em rodear a História de uma envolvente limpa, organizada e elegante.
Toda a gente conhece - nem que seja do cinema e de séries da TV - alguns lugares mais chamativos dos edifícios colegiais. Esta é a selecção do que vi e fotografei, por vezes sem permissão. Sítios por onde andaram Lewis Carroll, C.S. Lewis e Tolkien, Oscar Wilde e Shakespeare, T.S. Eliot e Graham Greene, Edwin Hubble e Aldous Huxley, T. E Lawrence e John le Carré, John Locke e Jonathan Swift, Christopher Wren e William of Ockham... já para não falar de cantores líricos, actores, políticos, etc.
O coração de Oxford:
Magdalen College e Queen's Lane
A ver só um colégio, é este. Fundado em 1458, teve alunos como Schrodinger (o físico quântico do 'gato') , Wilde e C.S. Lewis.
A torre de St. Magdalen é 'a' torre de Oxford, um marco incontornável.
Passando a entrada, um pequeno 'quad' com um torreão e fachada neo-góticos do arquitecto victoriano que mais obra deixou em Oxford, William Bodley :
Segue-se o famoso claustro, ele próprio mais um quadrangle, com invulgar decoração de estatuária a toda a volta por cima da galeria. Gryffindor, Hufflepuff, Ravenclaw, Slytherin - devem ter nascido aqui, destes leões, pássaros, cobras e lagartos, seres mitológicos e demoníacos.
A capela é dos primeiros anos da construção do Colégio, 1474-80. De nave única, a parede do altar está decorada com estatuária mais recente, de 1864-65, lembrando um "iconostasis" em pedra.
Consegui assistir a uma sessão de cânticos do Magdalen College Choir, uma sorte - de um lado crianças (agudos), do outro jovens à volta dos 20 a dar os graves.
Já com o sol muito baixo, saímos curvando por uma viela lateral - Queen's Lane - em direcção a um dos mais famosos recantos da cidade.
Seguindo em curva, estamos entre o Merton e o New College, sob a célebre Merton Bridge frente ao cruzamento mais lindo de Oxford.
A 'ponte' de Merton foi construída em 1913, obviamente inspirada pela célebre ponte de Veneza. A verdade é que foi um acrescento genial.
E desaguamos frente ao Sheldonian Theatre:
O Sheldonian de Christopher Wren.
A Bodleian Library e a Divinity School
Da torre da Igreja da Universidade, descobrem-se os pináculos e a malha colegial com os seus recintos, torres e capelas.
Tive a sorte de um fabuloso sol de primavera. À volta, passava a vida estudantil plena do mês de Maio.
A Divinity School é um edifício gótico (1427-1483) onde decorriam leituras de teologia e os exames mais formais. O trabalho em pedra para sustentação do tecto é de William Orchard, c.1480. Trata-se do mais antigo edifício construído em Oxford com o propósito de ensino universitário.
No andar de cima, a velha Bodleian:
Fundada em 1602 por iniciativa de William Bodley, recorrendo a múltiplas doações, foi aqui que nasceu o copyright : Bodley fez um acordo para que uma cópia de cada publicação viesse para a biblioteca; ainda hoje vigora, mas nestas galerias só estão livros antigos, da colecção original (cerca de 16 000 em 1620); o grande armazém é noutra cidade próxima, Swindon.
Lugar sagrado ?
Farncis Bacon:
"A Bodleian é uma arca para salvar a sabedoria do dilúvio"
A parte mais antiga, de 1488, foi construída directamente sobre o Divinity Hall, quando o Duque de Gloucester doou um grande número de manuscritos à Universidade. A Duke Humfrey's não é visitável, só se pode observar do lado de fora do ponto de controle. Vários Codex, exemplares da Bíblia de Gutemberg, manuscritos de Shakespeare...
Nenhum livro pode ser levado para fora da biblioteca.
Juramento do estudante:
" Do fidem me nullum librum vel instrumentum aliamve quam rem ad bibliothecam pertinentem, vel ibi custodiae causa depositam, aut e bibliotheca sublaturum esse, aut foedaturum deformaturum aliove quo modo laesurum; item neque ignem nec flammam in bibliothecam inlaturum vel in ea accensurum, neque fumo nicotiano aliove quovis ibi usurum; item promitto me omnes leges ad bibliothecam Bodleianam attinentes semper observaturum esse."
"Aqui me comprometo a não remover da Biblioteca, não marcar, apagar ou de alguma forma lesar nenhum volume, documento (...)". O mais engraçado é o acrescento moderno "neque fumo nicotiano".
Lá fora de novo, um chá na esplanada do Vaults & Garden, frente à Radcliffe. Mesmo com o dia soalheiro, às 6 já faz fresco e sabe bem a bebida quente.
A crer na série 'Lewis', aqui se serve (às vezes, a certas pessoas) arsénico no café :D
No século XIX, mal iluminada, era uma rua temível, com fama de assaltos e crimes. Por isso as janelas eram reforçadas com gradeamentos.
Agora é um paraíso de ciclistas.
segunda-feira, 22 de maio de 2017
Oxford, 3: nem faltaram os Romanos na pequena vila de Dorchester-on-Thames
A poucos minutos de Oxford, Dorchester-on-Thames é uma pequena vila inglesa agradável, com a inevitável Inn / hotel & pub, a inevitável igreja paroquial com jardins à volta, o relvado comunitário para jogos, a inevitável tea room. Está feito o cenário de um inglês feliz. Ao longo da estrada rural, umas poucas casas em gaiola de madeira com cobertura de colmo enquadram a torre da Abadia. Sim, Dorchester tem uma Abadia !
Tudo normal, não fosse a longa história de Dorchester, desde o neolítico à invasão romana, seguindo-se os saxões e normandos até à era victoriana. A aldeia é um lugar único no Reino Unido: só aqui se sucederam povoados na Idade do Bronze e do Ferro, na era romana e na era anglo-saxónica, que não foram apagados pelo tempo.
Taça em sino invertido encontrada no campo arqueológico
(c. 2400 AC, ~ Stonehenge).
A posição da aldeia junto ao navegável Thames e ao seu afluente Thame, que a contornam em três quadrantes, fazia de Dorchester um sitio estratégico quer pelas vias de comunicação quer pelas defesas naturais. Uma sebe de turfa (neolitico) ou uma fortificação defensiva fechava um recinto quase rectangular.
Os romanos fizeram aqui um vicus (administração provincial), que ligava por estrada calcetada a um campus militar mais a Norte. Que o nome do aldeamento romano fosse Dorcic, como alguns reclamam, é puramente especulativo, mas há muitas evidências de ocupação desde o reinado de Cláudio até ao de Antonino (séc. IV).
Durante as excavações foram encontrados cemitérios da era romano-britânica.
Em 634 o Papa enviou um bispo, Birinus, para converter os saxões da região. Construiu uma catedral saxónica e Dorchester ganhou importância, tornando-se capital do Wessex, que viria a ser o reino dominante em Inglaterra. Entre disputas de bispos e reis, acabou por ser destruída a primitiva igreja saxónica para no seu lugar surgir uma grande igreja monacal agostiniana a partir de 1140 - a Abbey Church of St. Peter and St. Paul, ou simplesmente a Abadia de Dorchester ; durante o domínio normando multidões chegavam em peregrinação a Birino de Dorchester, venerado como santo. No séc. XV a abadia no seu auge voltaria a ser muito ampliada e enriquecida de vitrais, até que o edifício monástico foi encerrado em 1536 e a igreja passou para a paróquia.
Entremos.
A entrada faz-se por um alpendre vestibular lateral em pedra do séc. XV.
A nave e o grande janelão medieval. É a parte mais antiga, do séc. XII.
O forte pilar central foi um acrescento para evitar que a janela desmorone.
A Janela de Josué ('Jesse Wndow'), exemplar único do séc. XIV (c.1340), em forma de árvore com esculturas e pequenos vitrais que ilustram a narrativa bíblica.
Uma muito rara pia baptismal normanda, c. 1170, esculpida em chumbo.
Os apóstolos sob uma arcada dão a volta à pia. A base em pedra e a tampa de madeira são victorianas.
Uma das capelas laterais é a Lady's Chapel, com um mural sobre a Anunciação:
Pintura na Lady's Chapel, do pré-rafaelita tardio, W.T. Beane, 1894.
A Cloister Gallery
Uma galeria lateral que dava para o claustro foi reconstruída e adaptada a museu, num projecto bem integrado de arquitectura em carvalho e calcário rosa dos Cotswolds.
No interior
Medalha de bronze com cabeça de Medusa, museu da Abadia.
(data e uso desconhecidos, provavelmente séc.III-IV).
Ainda há pouco foi notícia o sarcófago romano (séc. II - III) em mármore branco que servia há anos como vaso de jardim em Dorchester:
Ao centro, Cupido conforta alguém que sofre, enquanto à esquerda e à direita deuses se refastelam em fartura montados sobre golfinhos e junto de palmeiras... assim até eu queria ser deus.
Mais sobre as excavações e os achados:
https://oxfordarchaeology.com/community-case-studies/217-discovering-dorchester-on-thames-project
A torre da Abadia também tem o seu relógio de sol do milénio !
Acabo em modo laico, com este único esquilo, e bem furtivo, num muro da ponte sobre o river Thame:
Esteve sol, foi um dia bem passado.
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