domingo, 13 de março de 2022

Rio Dnieper, Ilha de Khortytsia, a Olbia grega, areias de Kinburn - viagem pelo coração da Ucrânia


Quem tirar o rio Dnieper à Ucrânia, tira-lhe a alma. A bacia do baixo Dnieper, a partir do ponto em que ele faz fronteira do país com a Bielorússia, equivale ao Reno ou ao Danúbio, é uma rede de água doce vital e uma fonte de energia hidráulica. Vou descer o rio percorrendo o centro da Ucrânia como era até Janeiro, e como espero volte a ser assim um dia.

A bacia do Dnieper é a 2ª maior da Europa, depois do Danúbio. Estende-se por mais de metade to território da Ucrânia, banhando as cidades de Chernyiv, Kiev, Zaporizhzhia (Zaporijjia) e Kherson, até se lançar no Mar Negro. 

A castanho claro, a bacia do Dnieper, que inclui grandes afluentes como o Desna e o Psel.

Colinas de Valdaï

O rio Dnieper nasce na Rússia, a oeste de Moscovo, nas colinas de Valdaï ; na Ucrânia percorre os últimos (mais de mil) quilómetros em planície, descendo em suave declive até ao estuário no Mar Negro. O único acidente de percurso eram os Rápidos de Dnipro, já conhecidos de Gregos, Romanos e Varegues (os escandinavos do sul da Suécia e Finlândia), mas foram submersos pela construção de uma barragem na era soviética.

A mais antiga referência escrita ao Dnieper é do século V A.C., do grego Heródoto no seu livro de História "Melpomene" . Nos séculos X-XI o Dnieper é referido em várias crónicas e em pedras rúnicas nórdicas, como a de Pilgårds (séc. X), onde é referida a navegação de um barco escandinavo pelo mais perigoso rápido do Dnieper - o Nenasytec - resultando na morte de um dos tripulantes.


Rus' de Kiev começou nas terras à volta do Dnieper e do Desna. As planícies fertilizadas pelos rios atraíram os Varegues (ou Varângios) do Báltico, permitindo fáceis rotas fluviais de comércio, apenas perturbadas pelos rápidos a jusante de Kiev, e o cultivo de cereais. No século XI a maioria eslava acabou por assimilar os escandinavos; só se encontrou uma pedra rúnica, descoberta na ilha de Berezan:


Começo de Norte, pelo rio Desna. Já não é navegável mas presta-se a desportos (kayak) e turismo.

Cherniyv (ou Chernihiv), junto ao Desna

Mosteiro da Trindade (séc. XVIII), visto da Torre, e ao longe o rio Desna.

Cherniyv é uma das cidades mais antigas do país, com muitos e ricos templos, a maioria no centro e afastados do rio. A ponte vermelha sobre o Desna permite avistar um deles:


Igreja de Mikhail e Fyodor, 1808. Mikhai e Fyodor foram torturados em 1246, durante a ocupação pela Horda tártaro-mongol. Mikhail, da dinastia nobre Rurik que fundou o Rus', foi Príncipe de Kiev.


O rio Desna oferece ainda uma praia fluvial - a Ucrânia tem-nas em abundância.

Cherniyv tem sido vítima de ataques aéreos demolidores, grande parte da cidade está em ruínas. 'Eles' não têm perdão.


Lyutizh/Lyutezh, antes de Kiev

Agora já no Dnieper, que aqui se alarga quase em lago; sucedem-se novas praias, de vastos horizontes.


Cherkasy, depois de Kiev

Outra praia bonita de se ver, embora as águas do Dnieper sejam bastante poluídas:


Uma largada de balões de ar quente costuma ter lugar anualmente à beira rio.


Kremenchuk é uma cidade feia, mas do rio Dnieper aproveitou as águas para fazer um parque com gazebo:


Pouco depois de Kremenchuk, o Dnieper recebe o Psel. É um rio de impressionante serpentear pela planície, atravesando em constantes meandros zonas de reserva, parques, taiga ...


Um dos rios mais bonitos do país, o Psel.


A ilha de Khortytsia, em Zaporizhzhia 

Esta ilha é um sítio extraordinário. Fica na rota nacional "Dos Varângios até aos Gregos", e merecia por si só um post dedicado, vou ter aqui de ser demasiado breve. 

Encontraram-se vestígios pré-históricos, sobretudo do neolítico. Desde os séculos VII-III AC. a ilha foi longamente habitada por tribos Citas, mas a primeira menção escrita foi no século X por Constantino VII, imperador macedónio de Bizâncio em Constantinopla. A ilha teria importãncia estratégica na guerra do Rus' contra a invasão dos Tártaros. Desde o século XVI seria ocupada pelos Cossacos, por ser valiosa a protecção que o rio a toda a volta conferia.

Geograficamente, é um rochedo achatado e parcialmente florestado, com 12,5 km por 2,5 km, cuja altura sobre a água atinge 30 m. Faz parte da área denominada "Rápidos do Dnieper", uma zona de relevo rochoso proeminente que foi submergida pela construção de uma barragem em 1930.

Era aqui, entre a ilha e a margem, que corriam os temíveis rápidos. Ainda se vêem rochedos a aflorar sobre as águas.

A ilha de Khortytsia está protegida como Parquer Nacional, mas pelo que li anda muito mal tratada pelo turismo desregulado.


A riqueza arqueológica vai desde vestígios da ocupação pelos Citas, em pedra, até a uma fortaleza cossaca. Há um santuário Cita reconstruído que data dos séc. V-IV A.C.; o conjunto, denominado "Estado Cita", está no ponto mais alto da ilha:



Surpreendente joalharia Cita.

O Forte cossaco é a maior atracção turística, com museu e animação.



Altar neolítico reconstruído, junto ao Forte

Eu prefiro a pérgola-miradouro sobre o Dnieper !


Uma varanda espantosa na berma do rochedo, onde como seria de esperar os recém-casados vêem tirar fotografias. 


Estamos a chegar a Dnipro.


Dnipro é (era) cidade industrial sem beleza, mas o passeio pedonal à beira-rio é o mais bonito do Dnieper.


Nikopol, já a caminho da foz, é uma cidade portuária e industrial feia, desagradável. Vale pelo rio.


Kherson, grande cidade portuária estratégica de acesso ao Mar Negro, tem sido cercada e feita em cacos pela invasão russa. Aqui começa o vasto delta do Dnieper. A água já é parciamente salina.


Uma surpresa nos espera na foz do rio Boh, ou Buh, afluente do Dnieper nos seus últimos metros: o sítio da antiga povoação grega de Olbia Pôntica. Grega !!


Olbia era uma cidade helénica do século VII A.C., fundada por colonos de Mileto. Era o principal 'emporium' grego no Mar Negro, para comércio com os Citas - cereais, peixe e escravos. Foi visitada e descrita por Heródoto no séc. V A.C. Floresceu até ser arrasada pelos Trácios, no 1º século AC.


A parte mais baixa da cidade, com os cais e as lojas, foi submersa pelas águas dio rio; restam os vestígios da parte residencial e da ágora, da acrópole e de um templo, no alto. 





O melhor do espólio foi para o Hermitage de S. Petersburgo; mas no museu local há uma pequena colecção de artefactos, outros estão em Odessa.


Kantharoi

Kantharos, III A.C., museu de Odessa,

Peso em chumbo para pesar cereais.

Bela e inesperada descoberta no Dnieper ! Comecei a falar de Varegues do Báltico e agora de Gregos de Mileto. Que variedade de povos aqui se cruzou - e ainda os Trácios e Citas, Turcos, Cossacos e Tártaros...

Ochakiv é o terminus, daqui já se vê tanto o rio na sua larga foz como, do outro lado, o mar.

A foz vista da margem norte.

Há poucas cidades com História tão turbulenta como Ochakiv. Batalhas, fortalezas, Gregos de Mileto, Eslavos, Turcos, Tártaros, Russos... Foi palco da Guerra da Crimeia (a que está fortemente ligada) e foi muitas vezes sitiada; mas depois da batalha de Kilburn, em que os russos a perderam (1885), a cidade decaiu cedendo o comércio e a riqueza à vizinha Odessa, cujo porto rapidamente cresceu. Actualmente, Ochakiv pouco mais é que ruína - ruína de cidade, ruína de fortalezas, ruína de porto - embora mantenha o controle da foz do Dnieper. 

A língua de areia: deum lado o rio, de outro lado o mar.


No total são 40 km.


O melhor são as praias, sobretudo na famosa língua de areia de Kinburn, onde decorreu uma batalha naval contra o forte que os turcos tinham construído no séc. XV, entretanto ocupado pelos russos; foi bombardeado e destruído, só restam umas pedras dispersas.. Agora as areias de Kinburn são Parque Nacional e lugar de veraneio.

O sol põe-se nas areias de Kinburn, no Mar Negro.

Voltará a haver um nascer feliz do Sol, depois de todo este desgraçado negrume. Só não sei quando. Slava Ukraini !

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