domingo, 24 de abril de 2022

Frits Thaulow - a Veneza líquida vista por um norueguês


Johan Fréderik Thaulow, dito Frits Thaulow (1847-1906), pintor norueguês, foi o grande impressionista dos países escandinavos, no fim do século XIX. Aprendeu arte na Academia de Copenhaga, e em 1892 foi para França, onde frequentou com sucesso o Salon e contactou com os impressionistas, em particular com Monet. Mas quis sair de Paris para pintar as aldeias, os rios e o litoral, onde criou as obras que constituem a maior parte do seu legado.

De início pintara cenas e memórias do seu país, mas a partir de 1892 dedicou-se à paisagem francesa. Era exímio num estilo próprio de pintar a água - canais, rios, margens, correntes, moínhos - , e paisagens ao luar ou nevadas. Tal como Monet, quase só executava aguarelas.

Esteve em Veneza por três vezes: em 1885, em 1897 na Bienal, e em 1899 desde a Primavera ao Outono, período em que pintou muitas da obras sobre a cidade; são as que mais aprecio, com uma luz e côr muito peculiares que, além de me recordarem as minhas visitas, são evocativas de uma cidade mais sonhada que real. Ninguém pinta os espelhos de água venezianos assim.




Veneza, 1894


Sob a ponte de Rialto

Escadaria de mármore, 1903

 



Fotografia de Thaulow, ca. 1900

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Radu Lupu, poeta do piano, supremo em Brahms.


Radu Lupu, pianista romeno entre os melhores de sempre da História da Música, era um personagem introvertido, de poucas palavras, modesto, quase severo. Nunca cultivou o estrelato, como Sokolov ou outros (e outras). E contudo, quando se sentava a tocar, o piano soava diferente, Brahms era outro Brahms, único, para escutar como pela primeira vez. 

Escrevia o N.Y. Times sobre um concerto em 1996:

"É difícil descrever exactamente o que acontece quando os dedos de Radu Lupu descem sobre o piano. Não há gestos espaventosos, nem proezas técnicas deslumbrantes, nem sequer noções interpretativas inovadoras. Não há uma grande personalidade a lançar a música contra os ouvintes. Acontece que o piano produz uma tonalidade narcoticamente bela; linhas solitárias ou a abertura de intervalos ganham uma aura luminosa. Há subtis sombras dinâmicas, uma lúcida voz interior, ritmos bem volteados e fraseados que cantam  — e nada mais para além disso a não ser, estranhamente, a música em si mesma.
                                                                                                            [tradução minha]

Uma das obras que mais cultivava era o Intermezzo op.117 de Brahms, muitas vezes oferecido como encore a terminar o concerto.


Foi com o op. 117 que encerrou o seu concerto de despedida.

Outra obra em que se excedia era a
(a partir de 7:34):

"Um La acima do Dó central soa diferente com Lupu. Brilha com uma luz interior."



quarta-feira, 13 de abril de 2022

Chernihiv (ou 'Cherniyv') - admirável cidade, voltará a sê-lo



Os habitantes da cidade de Chernihiv, no Norte da Ucrânia, eram em larga maioria russos. Ficaram certamente vacinados: as tropas russas destruíram vidas de todas as maneiras imaginárias, talvez a pior sendo o deixar feridas no ânimo existencial que nunca passarão. Não há ser humano que aguente ver a sua casa, a sua rua, o seu bairro, arrasado e reduzido a algumas paredes esburacadas, negras e fumegantes, e os seus vizinhos em pedaços ou em cinzas.

A cidade, que eu não conhecia, era linda de se ver e oferecia qualidade de vida: parques e jardins, uma Orquestra Filarmónica, alguns cinemas, museus, esplanadas, praia de rio, igrejas de muitas cúpulas, e uma riqueza imensa em arquitectura de madeira tradicional, com molduras rendilhados nas janelas, nos alpendres e nos beirais do telhado, coloridas de modo exuberante. Nunca foi destino turístico global, é uma cidade remota e 'ignorada' perto da fronteira com a Bielorússia; estivesse Chernihiv mais perto e acessível e não faltariam visitantes.

A História de Chernihiv teve dois períodos florescentes: o Rus' de Kiev (séculos XI e XII) e o período Cossaco (séc. XVII-XVIII); ambos os períodos deixaram à cidade herança arquitectónica valiosa. Já o período soviético só deixou mamarrachos, bustos de Lenine há muito derrubados, e nomes de ruas - Rua Lenine, Praça Vermelha, etc.

O centro é (vou usar o tempo presente !) constituído por três largas avenidas:  a Prospekt Myru, que é a mais vasta e imponente, e duas outras perpendiculares - a Shevchenka e a Hetmana - que se vão cruzar numa vasta praça, tão vasta que os edifício se perdem, dispersos - a Praça Krasna (= bonita). 

Vamos entrar pela Avenida Myru. Pouco antes da Praça, exibe este edifício nobre que agora é o Centro Filarmónico de concertos e festivais. 


Foi reconstruído não há muito, depois de ter sido danificado pelas bombas durante a 2ª Grande Guerra.


É o principal centro cultural da cidade.


A orquestra dirigida por Mykola Sukach

Ao longo da Avenida Myru, no parque central, há desde o início até à Praça um passeio pedonal, a Alameda dos Heróis.


Ao aproximar-se da Praça, vê-se no canto inferior direito o Centro Filarmónico, seguindo-se um passeio de cafés e esplanadas:
 

Praça Krasna

Demasiado vasta e vazia, já foi ajardinada.

Esquinas da Myru, à saída da Praça Krasna.

Aqui funcionaram sedes de jornais; agora é Tribunal.

À direita, o Teatro Nacional.

Este era o Hotel Desna, de 1952; agora é Museu de Farmácia e Tribunal de Finanças. Ao lado, o cinema Shchorsa.


O cinema Shchorsa, neoclássico russo de 1939,  foi atingido por um míssil, está em cacos. Servia ultimamente como Pousada de Juventude:



Seguindo ao longo do Shchorsa, entra-se na  Avenida Mahistrats'ka, com um jardim e fonte central; a terminar frente ao edifício pomposo do Banco Nacional, atingido também pelos mísseis russos.


Para o lado oposto da praça, no ajardinado central da Shevchenka, está a Igreja Pyatnytska, do séc XII, dedicada a S. Paraskeva. É uma construção em tijolo a lembrar o estilo gótico do Báltico; a arquitectura gótica da época Rus' está mais à vista no interior, o exterior foi remodelado ao estilo do barroco ucraniano (séc. XVII).


Já em 1943 ficou em estado deplorável sob as bombas russas contra a ocupação alemã. Durante anos esteve abandonada em ruínas, até ser reconstruída em 1962 com os tijolos que se puderam aproveitar. É muito acarinhada pelos habitantes.



Ainda na Av. Shevchenka mas mais longe (nº 63, para lá da Ponte Vermelha) fica a casa de Vasyl Tarnovsky, que depois de ter sido Museu de Antiguidades era agora uma Biblioteca de livros infanto-juvenis:

Casa neo-gótica de fins do séc. XIX.


Logo nos primeiros dias da 'visita' 'não-invasiva' russa, ficou assim:


O maior valor de património histórico em Chernihiv está no grande Parque à beira-rio, o Dytynets: é a casa da Chancelaria do Regimento Cossaco, da década de 1690.

Também chamada 'Casa do coronel Lyzohub', ou ainda 'casa Mazepa'.


É um dos melhores exemplares do Barroco Cossaco. Foi pensada como uma pequena fortaleza: estava construída sobre caves, rodeada de uma muralha, as paredes têm metro e meio de espessura, as janelas eram seteiras. Terá sido construída por ordem do Hetman (líder militar) Ivan Mazepa, general dos Cossacos ucranianos, homem rico e poderoso do início do século XVIII no centro da Europa.

Mazepa foi proscrito na Rússia desde a época imperial e soviética até hoje, mas é um herói nacional da Ucrânia por ter desafiado o poder czarista. Inspirou poemas a Byron, Pushkin, Hugo, e também música a Liszt, Tchaikovsky... será por isso que o exército russo se encarniçou agora contra Chernihiv ?



O Parque Dytynets

É um monte sobre a margem do rio Desna que foi uma citadela fortificada; Dytynets (='criança') é o nome ucraniano para Kremlin. No topo concentram-se vários templos incluindo a Catedral e uma sepultura em montículo do séc VIII-XI (época do Rus'), típico das culturas nórdicas, onde foram encontrados vestígios da cultura do Báltico como estatuetas de Thor, espadas e joalharia. 

Visão de artista do que seria a "Infância de Chernihiv": sobre a elevação fortificada vê-se o núcleo de igrejas, também rodeado de muralha, tal como é típico dos Kremlins.

Catedral da Transfiguração (Spaso-Perobrazhensky Sobor)

A mais antiga igreja da Ucrânia, é da época do Rus', cerca de 1030 ! Sobreviveu até hoje quase intacta apesar de incêndios, e de ter sido acrescida de duas ábsides e 5 cúpulas barrocas.

A arquitectura é em tijolo, que está caiado, e é um misto de basílica românica e de templo bizantino em cruz.

Partes do exterior foram deixadas sem pintura para que se veja a construção em tijolo.


A Catedral está acompanhada no Parque por duas outras edificações religiosas: o Colégio de Chernihiv e a Catedral Bogdanovitch. No conjunto, formam uma espécie de Kremlin no topo da colina do Parque.

O Colégio, fundado em 1700, foi a primeira instituição de Ensino Secundário em toda a Rússia. Foi um importante centro educacional, com fama de ser a "Atenas de Chernihiv". É um exemplo mais do Barroco ucraniano.


A Catedral Borisoglebsky foi construída no século XII como mausoléu para a dinastia reinante Davidovich, mas sofreu tantas sucessivas alterações que o que hoje vemos é um pastiche moderno a recobrir uma estrutura de tijolo de requintado trabalho e detalhe, com uma fachada em calcário. Os santos Boris e Gleb são os primeiros do Rus' de Kiev.


No interior há um Museu da Antiga Chernihiv.


A peça mais valiosa do museu são as Portas Sagradas de Chernihiv, em prata dourada, mandadas fazer pelo Hetman Mazepa (séc. XVII-XVIII).




Ruas de Chernihiv

Ser'ozhnikova, rua pedonal de frente para as igrejas do Parque.

Animação nas esplanadas da Myru.

Av. Myru , depois do Centro Filarmónico.

Esquina da Avenida Vitória (Peremohy), a segunda maior avenida da cidade.

Cidade e aldeia numa só:

Rua Popudrenka, com casas de madeira.

Rua Vatutina, uma viela residencial também com casas tradicionais.

Dois cafés.

Chernihiv não é (espero que já tenham chegado a essa conclusão) uma cidade interior provinciana ou parada no tempo. Admira-me, estando colada à Bielorússia numa região de acesso demorado, que seja tão rica de património, aberta, bem cuidada, moderna. Tem uma Orquestra, uma temporada de concertos, cinemas, museus, muitos espaços verdes, juventude, ruas animadas. Cafés não são muitos, mas dois ou três de jeito ainda se encontram.

Café Фотель (Fauteil, cadeirão)


Fica nas trazeiras do Centro Filarmónico. Espresso, 32 (₴ = 'Hryvnia').

Café Шарлотка (Sharlotka)

Café muito central, na Avenida Myru.



O rio Desna e as praias.


O rio Desna é a razão de Chernihiv aqui ter sido fundada. Um porto fluvial, praias e pontes - uma delas pedonal - são mas maneiras de o usufruir.

A Igreja de Michael e Fyodor, vista da Ponte Vermelha.


A terminar:

A 'Madeira Rendada de Chernihiv'
('derev'yane merezhyvo chernihivsʹke')

Falta mostrar as ruas residenciais suburbanas onde se encontram (encontravam?) muitas casas de madeira térreas de arquitectura tradicional com decoração Arte Nova. A colecção de janelas decoradas é infindável ! Foi criado um programa de protecção e promoção deste património, "Madeira Rendada de Chernihiv".

Casa Konashevych, rua Mstyslavs'ka 37, esquina com a Chernyshevs'koho

Todas estas casas são de início do século XX.

Rua Lesi Ukrainky, 15

Rua Vatutina, 14

Rua Suvorova, 40

Recentemente recuperada na rua Stanislavs'koho:



Rua Stanislavs'koho, 11a

E outra na Honcha:
Rua Honcha, 92


Entre estas ruas salientam-se a Kyivs'ka, a Sofii Rusovoi, a Suvorova, a Honcha e a bonita Chernyshevs'koho. São centenas de exemplares.

A variedade de entrançados de madeira nas casas de Chernihiv.

Na Rua Stanislavs'koho, a Casa de Joseph Drozdov (economista e escritor):


É casa-museu e sede da "Renda de Madeira Chernihiv".

Casa Spanovsky (comerciante Polaco), na Rua Kiyvs'ka 14b:





E muito ficou por referir.

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Tenho aqui mostrado a Ucrânia como país belíssimo, surprendente pelas suas cidades magníficas, como eram até 2022.

 Que resta agora de tudo isto? Sobretudo não restam muitas das pessoas que faziam a cidade viva e alegre. Mas tal como Chernihiv renasceu das bombas alemãs, há-de renascer dos mísseis do regime nazi russo. Dispenso-me de colocar aqui imagens de como está arrasada e dilacerada, pejada de entulho e feias carcassas de guerra. Com a mesma força com que resistiram, os habitantes entregar-se-ão a limpar e reconstruir, até porque só assim se reconstruirão a si próprios.

Mais: https://www.mywanderlust.pl/chernihiv-ukraine/

Orquestra de Chernihiv, dir. Mykola Sukach: