sexta-feira, 10 de junho de 2022

Dario e a lebre - a campanha Persa em terra dos Citas, segundo Heródoto


Esta História, nunca ninguém ensinou ou ensina nas escolas. Antiga, longínqua e irrelevante: dois grandes impérios, o Persa de Dario e o império Cita (ou Scyta, do grego Skythēs) confrontaram-se em torno do Mar Negro, onde pouco antes, no século VII AC, os Gregos tinham fundado as suas colónias pônticas, como Olbia que já mencionei anteriormente. Não imaginava que o território em torno do Mar Negro tivesse sido tão disputado e visitado na antiguidade, antes do Rus' de Kiev; a proto-história da Ucrânia tem muito que se lhe diga. 

A campanha dos Citas de Dario I foi uma grande expedição do exército da Pérsia Aqueménida em 513 AC, à região entre o Danúbio e o Don que circunda o Mar Negro, terras que correspondem hoje aos Balcãs, Ucrânia e sul da Rússia.

O Império Aqueménida foi o maior da Antiguidade antes dos Romanos.

Os Citas eram uma confederação de povos falantes da língua persa, que depois de várias migrações se foram instalar nas planícies férteis a nordeste do Cáspio; atacaram o Império Aqueménida e ameaçavam as rotas de comércio de ouro, cerais, couros e peles entre a Europa Oriental e a Ásia Menor - o que prejudicava tanto os Persas como os Gregos. Na maioria os Citas eram pastores nómadas, não há 'cidades' Citas (a maior povoação era Gelonus, perto de Bilsk, Ucrânia), mas estabeleceram uma poucas quintas com enormes explorações agrícolas, maiores que alguns países. Eram também excepcionais cavaleiros. [há um museu Cita em Zaporizhzhya] 


O Rei Dario subiu de Persépolis com os seus setecentos mil homens, segundo Heródoto, atravessou o Bósforo e o Danúbio numa ponte de barcas, e contava com que os Citas surgissem a fazer-lhe frente. Mas, sendo nómadas, os Citas os seus guerreiros facilmente se furtaram a confrontar o exército Persa, que se foi desgastando na sua perseguição; enquanto os Citas se esquivavam e zigzagueavam, iam também destruindo todos os recursos, queimando as colheitas e bloqueando os poços na sua retirada, de modo a deixar o exército Persa à míngua, sem sequer ter cidades para conquistar. Na verdade, também os Citas passavam mal - tinham perdido as suas melhores terras, e Dario acabou por capturar e incendiar-lhes a povoação fortificada de Gelonus (de que só restam umas marcas no terreno - fosso e muro), já nos finais do século VI.
O sítio arqueológico de Bilsk, a leste de Kiev, já nos limites da estepe do Cáspio. Gelonus ocupava o terreno intra-muros (mais escuro).

Chegado ao Volga, Dario preferiu parar, consolidar o território já conquistado e recuperar forças. Construiu oito fortes em linha junto ao rio como fronteira defensiva.   

Até aqui há consenso histórico; mas o relato de Heródoto só começa a ter 'piada' quando entra a fantasia. Convém dizer que Heródoto tinha o máximo cuidado com as fontes, só acreditava em fontes múltiplas concordantes e alertava sempre para a falibilidade dos testemunhos. Mas prosseguindo, conta ele: 

O exército persa está num estado calamitoso. "- Mostrem-se !", grita em desespero o Rei persa para o vazio, onde se movem sombras, espectros, pequenas unidades de cavaleiros que atacam à socapa, como guerrilhas, e logo desaparecem. Um exército compacto, poderoso, de nada serve se o inimigo não lhe dá importância, e nem sequer comparece. 

Mas finalmente - chegado o momento ? - os Citas perfilam-se perante o exército persa, com a sua famosa cavalaria. 


Tudo o que se sabe dos achados arqueológicos leva a crer que os guerreiros Citas e os cavalos estavam cobertos de armaduras de ouro e bronze, tal como as espadas, machados e arcos abundantemente esculpidos e ornamentados. Mesmo sendo em menor número, metia respeito.

Deve ter havido um longo acumular de tensão entre as duas frentes de guerra e os seus generais. De repente, uma lebre passa entre as hostes Citas. Ao darem conta, os guerreiros lançam-se um após outro a persegui-la. Desordem e clamores foram tais que Dario quis saber o que provocava tamanho tumulto nas fileiras do inimigo. Ao saber da lebre, comentou aos homens de confiança: "Esta gente tem por nós um enorme desprezo (...) vamo-nos mas é daqui se queremos regressar a casa sãos e salvos".

Uma lebre !! Há unanimidade ente os historiadores em que foram os Citas que estacaram a avançada dos Persas sobre a Europa. Caso contrário a História do Mundo teria seguido um curso diferente. A retirada inglória de Dario foi decidida pelo detalhe ínfimo da lebre, que assumiu proporções dramática - os Citas ignoraram e desprezaram o exército Persa, e esse desdém, essa humilhação, foi para o rei dos Persas um golpe mais violento que uma derrota em batalha. 

E, pela calada da noite, o exército Persa retirou. A ponte sobre o Danúbio ainda lá estava, aguardando.

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Baseado na narrativa "Viagens com Heródoto" de Ryszard Kapuściński. Livros assim não se pode falhar. Voltarei a ele.



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