terça-feira, 7 de março de 2023

Fiasco completo de uma ida a Lisboa / FCG


Foi bem feito para mim, mas nunca aprendo. Estava fartinho desta minha vilória parola e caótica do Porto onde nada me faz querer sair de casa a não ser o mar, e quis retomar uma tradição de andarilho há muito interrompida. Achei que John Nelson na Gulbenkian a dirigir a Missa Solemnis seria motivo bastante - é coisa que agora a Casa da Música está nos antípodas de apresentar, centrada como anda em ninharias modernaças, pós-românticas ou barrocas de terceira ordem. Além disso, podia sempre frequentar o Jardim e a cafetaria de Ribeiro Telles, ou até meter-me de táxi a ver o que nunca vi, por exemplo, o B-MAD Art-Deco do proscrito Berardo.

O fiasco começou pela substituição à última hora do maestro John Nelson, em quem eu confiava para encher a sala de boa musicologia, pelo quase neófito Matthew Halls. Em boa verdade, estive quase para cancelar, e antes o tivesse feito; mas estava tudo pago e planeado.

Para ir, avião nem pensar, sou alérgico, toca a reservar o Alfa e um hotel barato e asseado ali pelas avenidas Viscondes. O concerto seria a 2 de Março, e poucos dias antes fico a saber da greve. GRRR. Não estava avisado, lixou-me logo o Alfa, tive de remarcar para serviços mínimos, com saída na horrível gare do Oriente em vez da cómoda e pacata Santa Apolónia. 

A viagem correu lindamente, carruagem morninha, bar fechado, três horas foram passando. Sair na Gare do Oriente foi a descida aos infernos. Não há nada que funcione - elevadores, escadas rolantes, nada para descer com malas ao rés do chão. Correntes de ar gélidas às 6 da tarde por todo o espaço aberto, tudo fica longe, nem cafés de jeito há, abrigados. Chamado o Uber, julgávamos nós seria ao menos rápido, qual o quê: sucedem-se três mudanças por recusa do motorista, já somam 20 minutos e nós parados no Glaciar do Oriente; quando avisaram da Uber que tinha chegado, não vimos nada, e o homem não falava sequer inglês. percebemos vagamente que devia estar do outro lado... acabámos na fila dos táxis, eu a espirrar e com arrepios.

No Hotel, nem acreditava - 38.4 de febre, uma cachola de chumbo, garganta a picar. Mas porque é que acreditei que tinha direito a umas feriazitas ? Não tenho. Ficar em casa é a minha sorte, e grande sorte, casa é bom. Passei uma noite daquelas, a praguejar porque estou hiper e totalmente vacinado e de nada serviu para um bruto resfriado, ou Gripe A, ou lá o que foi; à força de benurons lá me levantei, somando cafés duplos, mais seca-narizes, mais rebuçados, e caminhei titubeante para a Gulbenkian. Ao menos que me levassem ao céu.

Ora o que aconteceu foi um purgatório. Não pelas tosses - até tive saudades das velhas tosses - nem sequer as minhas; nem pela orquestra, que tocou bem. A opção do maestro Matthew Halls e da direcção do côro de Inês Tavares Lopes foi fazer estardalhaço, mandar soprar forte em trombetas e esganiçar no monstruoso côro de quase 100. Nem a sala da Gulbenkian tem acústica que resista a tamanho chinfrim. Harnoncourt extasiava-se com esta obra litúrgica que é mais um hino, onde há momentos em que ele tinha de gerir quatro linhas melódicas ao mesmo tempo, um hiper-contraponto. Matthew Halls fez uma massa coral-orquestral de dinâmicas excessivas onde só se ouve uma linha. A Missa Solene de Beethoven, além de 'Solene', é muito meditativa, com momentos de intenso dramatismo mas também de recuo interior, de suavidade, de contenção. Foi tudo arrasado em fanfarra gloriosa, e no fim o público saltou, literalmente, ejectou-se no ar num frenesim de Bravos e uma aclamação desmesurada em vez de se recolher uns segundos no pedido implorado de "Pacem, Pacem". 

Já ouvi muitas Missas Solenes, mas nunca tão bem mal-dirigida. Tenho ainda assim de salientar os solistas, portentosos - a sério! - porque se faziam ouvir bem acima do resto. Era um quarteto de respeito, belas vozes a quem foi pedida uma prestação sonora forte e que responderam com esmero. Já o coro, miserere vobis... Foi bem melhor a Missa que Olari Elts levou à Casa da Música !

A assistência não tinha nada de cosmopolita nem de tossidora, mas tinham como eu idade avançada; desconfio que eram pais, irmãos, tios e enteados de meninos e meninas do coro. Só assim se entende o entusiasmo acrítico. Quer isto dizer, portanto, que a Gulbenkian também acabou para mim. Pim.

Ah, antes do concerto tínhamos dado uma volta pelo jardim. Desgraça! Está todo todo em obras. É-se acompanhado de longos tapumes, grades e fitas zebradas. As alterações por causa do CAM deviam estar prontas há anos, mas sendo isto Portugal atrasou tudo para meados de 2024, e isto é uma daquelas previsões... Cinco anos , para reformular um jardim. O único cantinho que se salva é a cafetaria na Marquês de Sá da Bandeira, um minúsculo conforto.

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Não falo sequer do tempo sofrido no quarto de Hotel, eu todo avariado acima do pescoço, toneladas de lenços e sonos curtos. Falta-me a ida ao B-MAD de Alcântara, que vou ilustrar com fotografias. Fica para o próximo post.

Adeus, portanto, Lisboa, Gulbenkian e Alfa. Já foi tempo.


2 comentários:

Fanático_Um disse...

Caro Mário,
Também assisti a este concerto e estou totalmente de acordo consigo. Foi só barulho, muito alto, sem quase mais nada. eu ainda sou mais crítico porque para mim, nem os solistas se destacaram. Como é possível isto numa obra tão icónica?? Foi talvez o pior concerto da Gulbenkian esta temporada (so far...). Já houve concertos muito bons esta temporada, mas este... para esquecer!
Também nesta semana vi a ópera Lucia di Lammermoor no São Carlos - outra desgraça, encenação sem qualquer interesse e o canto muito aquém do desejável. Mas é o que temos!
Nos dois espectáculos, o público aplaudiu efusivamente de pé!! Só tenho uma explicação para este comportamento - a qualidade dos espectáculos deste tipo de música em Portugal é tão má que o público mais conhecedor já não vai lá e, os que vão, não sabem apreciar e, por isso, aplaudem vigorosamente a mediocridade!
Enfim, é o que temos...

Mário R. Gonçalves disse...

Companheiros do infortúnio... olhe que Lucy Crowe cantou muito bem, e gostei do tenor cujo nome não me lembro.

Eu ainda era capaz de acreditar que a culpa foi do maestro, e o anunciado John Nelson teria feito muito melhor trabalho. Era ele que me levava a Lisboa. Devia ter desconfiado da substituição.

"a qualidade dos espectáculos deste tipo de música em Portugal é tão má", subescrevo, mesmo tirando "deste tipo". Todos. Haviam de ter sala às moscas. Mas na Gulbenkian, o nosso "High End", "nec plus ultra" ? Vergonha é uma palavra branda, afinal a vergonha impera em todas as áreas.

Já nem consegui programar nenhum concerto até Novembro, não há nada nada nada de jeito, ninguém convida nem maestros, nem orquestras, nem solistas de prestígio. Quando penso que vêm cá os Cold Play ou os Arcade Fire com bilhetes desde 600 euros - 120 contos ! - e estão esgotados... acho mesmo que é difícl querer viver num país assim.

Boa Primavera ! que está a chegar.