domingo, 28 de maio de 2023

Tornio, cidade fronteira no fundo do golfo da Bótnia


Acho que esta Tornio finlandesa vai ser uma surpresa. 


No fundo do Golfo da Bótnia, poucos quilómetros a sul do Círculo Polar, cidade gelada e branca a maior parte do ano, ninguém no sul da Europa conhece Tornio. E contudo está no Património da Humanidade da UNESCO com mais do que um monumento classificado e uma História relevante desde o século XV. E contudo é acessível por ar, por terra - por estrada ou de combóio - e por mar, com o seu porto no Golfo. Só é bem conhecida dos Suecos, pois faz fronteira com a sua geminada Haparanda repleta de 'Ikeas', uma cidade construída quando Tornio ficou sob governo russo, durante o período da ocupação em 1808. Em 1917, com a saída dos Russos, Tornio revitalizou-se com a indústria do aço e a grande fábrica de destilaria de cerveja.

Numa ilha da foz do rio Torne, é uma povoação modesta.

Tornio, Golfo da Bótnia

População: ~ 20 000 
Coordenadas: 65° 51' N, 24° 9' E ( ~100 km a sul do Círculo Polar)

Tornio não é muito antiga, não tem castelos nem mosteiros, mas viveu momentos históricos intensos. Foi fundada como cidade em 1621 por Gustavo II, numa ilha do estuário do rio do mesmo nome. Durante 168 anos foi a cidade mais setentrional do mundo e uma das mais ricas do país. O rio Torne é um dos mais importantes e bonitos da Finlândia, traçando fronteira a oeste com a Suécia, atravessando o Círculo Polar e indo desaguar do Golfo da Bótnia, um sítio geográfico muito peculiar. É também o mais longo e caudaloso rio 'selvagem' da Europa, de curso livre sem barragens nem regulação, rico em salmão; o gelo das suas águas é famoso e procurado por todo o mundo.



Em Tornio, o rio é atravessado por uma bela ponte ferroviária - a Tornionjoen silta de 1919, típica arquitectura industrial.

Tem uma secção rotativa para abertura a navios maiores, [Foto de Antti Kohonen]



Entre os edifícios modernos da cidade, duas igrejas únicas e marcantes se distinguem  : a Igreja de Stª Leonor de Tornio, no centro, e a Igreja de S. Miguel de Alatornio, no sul da cidade. Há ainda uma terceira , mais antiga, numa aldeia próxima do Golfo, Keminmaa. Não falta portanto património nesta latitude finlandesa.

A Igreja de Tornio é o edifício mais antigo e valioso da cidade. Dedicada a Stª Leonor ( Hedvig Eleonora), é de arquitectura nórdica em madeira do século XVII (1686), com torre sineira separada. Tem tecto de madeira com pinturas, e guardas do altar esculpidas em ferro.





Pinturas no cofre do tecto.


O velho moínho de Tornio


Poucos metros acima da igreja, na mesma rua, um moínho recuperado.


Dispersas pelas ruas centrais encontram-se casas de madeira do século XVIII-XIX. Uma das ruas mais antigas é a Keskikatu.

Na Keskikatu 30,  a casa Viippola serve agora como residência artística, e também oferece alojamento.


Outra casa bonita é a casa da família Säipä, de 1866:

Rua Lukiokatu, 10

Uma das casas classificada mais bem conservadas é a antiga Câmara de Tornio (Raatihuone):


Construída em 1875 no estilo neo-renascentista nórdico.


Mas voltemos às igrejas; outra ainda mais antiga, mais surpreendente, existe em Keminmaa, Kemi, 20 km para leste de Tornio; é em pedra, data do século XVI mas parece medieval, e vale pelas pinturas no tecto de madeira.

Igreja de S. Miguel de Keminmaa

A Igreja de Keminmaa está na margem direita do rio Kemi.





Não tão antiga mas mais relevante pelo seu papel histórico foi a

Igreja de S. Miguel de Alatornio

Da segunda metade do século XVIII, a Igreja de Alatornio foi classificada Património Mundial como parte integrante da cadeia de medições de Struve, ou Arco Geodésico de Struve, um projecto europeu para aperfeiçoar o conhecimento sobre a forma da Terra no início do século XIX.

A torre de Alatornio foi um dos locais de medição da cadeia Struve


A torre de Alatornio sobe a 40 metros acima do mar, numa extensa zona de planície. Tem por isso a visibildade que era necessária para as medições, cerca de 20 a 30 km de distância. Uma varanda octogonal dá a volta à torre, e foi nela que se instalaram os instrumentos. Dentro, uma pequena sala dá abrigo a quem está a trabalhar.


O Arco de Struve é uma cadeia de triangulações que se efectuaram desde Hammerfest na Noruega até Izmail, na fronteira Roménia-Ucrânia, junto ao Mar Negro. atravessando 10 países e mais de 2800 km. Tiveram lugar  entre 1816 e 1855 sob direcção do astrónomo alemão Friedrich Georg Struve, da Universidade de Tartu, um dos locais de observação

Observatório da Universidade de Tartu, Estonia.

As medições de Struve foram os primeiros resultados confiáveis (*) de um longo segmento de meridiano terrestre, e deram início a um grande progresso das Ciências da Terra e da sua Topografia.
O Arco, desde a Noruega, passando pela Suécia, Finlândia, Rússia, Estónia, Letónia, Lituânia, Bielorússia, Moldávia e Ucrânia.

Foi também um caso exemplar de colaboração de cientistas de vários países para uma causa comum. As medições foram executadas em 265 estações, que ficavam situadas em locais como um furo num rochedo, uma cruz de ferro, cairns (pedras empilhadas) ou obeliscos.


Tornio pode ter uma dimensão de pequena vila, mas surpreende a sua riqueza em Património e História.

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(*) Anteriormente tinha havido uma medição na Índia britânica de um arco de 2400 km, entre 1871 e 1802, na 'Grande Pesquisa Trigonométrica'.

domingo, 21 de maio de 2023

Música dos 'novos' CDs que estou a ouvir


'Mysterium', com Anna Akiko Meyers

Disco genial, não só pela música como pela interpretação. E sendo Bach quem é, supremo mestre, não há como o motete O Magnum Mysterium de Morten Lauridsen  para lhe fazer companhia, desde o século XX (1994) ! Akiko Meyers no violino.



Mahler, a 9ª , com Osmo Vänska na direcção

Um dos trechos de culto da música clássica, mítico quase, é o Adagio da 9ª sinfonia de Mahler, o sublime Sehr langsam und noch zurückhaltend, 'muito vagorosa e cuidadosamente'. Durante décadas foi consensual que ninguém melhor que Karajan o interpretou, numa gravação daquelas que se tem que levar para ilha deserta; nestes últimos anos algumas muito boas alternativas foram gravadas por David Zinman e sobretudo Simon Rattle, mas a surpresa veio das Américas com a Orquestra de Minnesota e o maestro finlandês Osmo Vänska. Nada mal. 



'Magic Mozart', com Lea Desandre
Sandrine Piau, Stanislas Barbeyrac, Florian Sempey..., Insula Orchestra

Lea Desandre é a nova mezzosoprano-ídolo do momento, com uma voz estratosférica, capaz de voos incríveis. Neste disco está bastante contida, mas é basicamente ela quem mais valoriza esta espécie de "best of" Mozart, que mistura árias mais famosas com outras pouco conhecidas: 'Voi chi sapete'', 'Nun, liebes Weibchen', e a superlativa 'Soave sia il vento' a terminar em êxtase, com Desandre, Piau e Florian Sempey em trio.



Brahms - Concertos para Piano, Sunwook Kim
Hallé Orchestra, Mark Elder

Mais uma boa gravação dos que considero obras primas da humanidade, esta vale pela sonoridade impecável. Uma "alquimia especial", diz The Guardian, uma gravação para ouvir a par com a de Stephen Hough e a de Nelson Freire, para falar só das digitais.


Finalmente, uma redescoberta:

'Solomon' , de Handel
com Carolin Sampson, Susan Gritton, Mark Padmore, Akademie für Alte Musik Berlin

Já conhecia as anteriores gravações dirigidas por McGegan e McCreesh, mas esta é mais completamente conseguida, a todos os níveis. Talvez seja o melhor Oratório de Handel, a par com o Messias.





domingo, 14 de maio de 2023

Descida ao Parque, à Zelkova e aos Negundos

 

Esta semana descemos até ao Parque da Cidade na terça-feira, estava vazio de gente mas com uma luz bonita que realçava a intensa verdura.

Começamos pela bela Zelkova Carpinifolia que é uma das favoritas de sempre, uma árvore pouco frequente e originária do Cáucaso.

Há uns anos parecia ter doença, mas agora está pujante e viçosa.

Seguiu-se o habitual passeio dos Plátanos:


Com vista para a lagoa:

Depois o muro 'mágico' :


E finalmente o cantinho esconso dos Acers Negundos (ou Bôrdos), outro favorito de muitos anos.


Demorei a identificá-los - têm folhas semelhantes às de Freixo ou às de Ulmeiro...



Óptimos ramos para trepar árvore acima !


Encontrei a lista de árvores existentes no Parque:


domingo, 7 de maio de 2023

No MET de New York, acompanhando a leitura de Patrick Bringley


Patrick Bringley foi guarda do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque entre 2008 e  2017, dez anos de convívio com algumas das melhores obras que a Arte humana produziu. 'Algumas', são centenas, mesmo que o MET não esteja à altura dos congéneres europeus. Bringley descreve o Museu como uma cidade-estado, e dentro dela vários pequenos impérios  - os 17 departamentos - que são regulados de forma mais ou menos independente.

Anteriormente tinha trabalhado sob pressão, sentado a uma secretária para o New Yorker. Sobre o que sentiu ao começar a nova profissão, escreve neste seu livro, que é ao mesmo tempo um livro de memórias e uma guia de arte do museu :

" Tinha as mãos livres e a cabeça erguida, e um dever estrito de não estar ocupado com nada. Só tinha de manter os olhos bem abertos. Era como se uma onda de liberdade se viesse espraiar sobre mim. Naquela quietude, o meu pensamento podia vaguear".

Alguns encontros causaram-lhe um pasmo inicial que foi marcante para o resto da vida: O Templo de Dendur do 1º século AC, nas Galerias Egípcias; o Retrato de um Homem, de Ticiano; Vétheuil en été, Monet...

Visita guiada:

Departamento de Arte Egípcia

Hatshepsut
O 5º Faraó da 18ª dinastia foi uma mulher (1507-1458 A.C.). "Hatshepsut" = Primeira entre as Nobres Senhoras.


" Mesmo sob lâmpadas de halogéneo, ela é resplandescente", escreve Bringley. "Os Egípcios investiram com opulência em objectos que deveriam ofuscar a vista como estranhamente, impensavelmente belos, portanto divinos e imortais."

Templo de Dendur


Um dos tesouros do Museu é este Templo, encontrado em Dendur, na Nubia, na margem ocidental do Nilo, a sul de Assouan. Foi oferecido quando a construção da barragem ameaçava submergir a plataforma onde ele assentava. 


O Temple de Dendur data de 10 A.C., já no Período Romano, sob César Augusto. 


As duas colunas que simbolizam o Sul (Alto Egipto) e Norte (Baixo Egipto).

Não é um faraó, é o Imperador Augusto a fazer uma oferta aos deuses Isis e Osiris, a quem o templo é dedicado.



Ticiano

Rittratto d'uomo, Ticiano, ca. 1515

(...) " tão belo, tão ternamente corado de vida que parece ele próprio vivo, uma memória viva, uma magia viva, arte viva, o que quiserem, vejo-o tão completo, brilhante, irredutível, eterno como desejo que uma alma humana seja."

Bruegel

Ceifeiros, Pieter Bruegel, 1565

Vermeer

(...) "uma situação de intimidade possui uma grandeza e uma sacralidade próprias".

Monet

Vétheuil en été, Monet

Parece banhado em luz, e contudo é só côr. "Monet espalhou a côr da luz, como criador benfazejo deste pequeno universo".

Pintura americana, abundante:

Cole Thomas, The Oxbow, 1836

Impressionantes são as ondas tempestuosas da costa do Maine, de Winslow Homer, especialista do mar:

Northeaster, 1895

A terminar, Bringley interroga-se : que obra gostaria mais de levar para casa ? E conclui pela Crucificação  de Fra Angelico:

Uma invulgar composição circular de personagens em torno da cruz, desde 'basbaques' aos santos que confortam Maria.


E explica ele:
"Gosto da arte que é antiga. Gosto da pintura a têmpera sobre pesados painéis de madeira e folha de ouro estalada com a base de gesso avermelhado a espreitar pelas rachas. (...) lembra-nos do óbvio: que somos mortais, que sofremos, que a bravura no sofrimento é bela, que a perda inspira amor e lamentação. " 


Mais: Patrick Bringley interview: A Met guard tells all

"All the Beauty in the World” de Patrick Bringley (Simon & Schuster)