domingo, 24 de setembro de 2023

Música: Cyrille Dubois no topo de uma pilha de CDs para a rentrée


Nunca tinha ouvido o tenor francês Cyrille Dubois, e foi uma surpresa, tal como as árias que preenchem o programa deste invulgar CD da Alpha. Desta remessa de discos é talvez o melhor, recomendo sem reservas. 'So Romantique ! ' é uma colheita de árias francesas quase perfeitas, desde Auber e Boieldieu a Delibes e Saint-Saëns, daquelas que começam quase anodinamente e terminam num êxtase vocal.

Um hino à música.

Espantosa interpretação de obras de génio é o que Jordi Savall conseguiu com as Sinfonias de Schubert, quem diria, eu até era capaz de duvidar que esta música se enquadrasse no reportório do Concert des Nations.




A gravação, de 2022, na Altavox, é no mínimo indispensável: ouvir a nova vida que Savall imprime ao romantismo do compositor, na precisão, no ritmo, nos metais e na dinâmica, um Schubert de cortar a repiração, é verdade. Mas não será para o gosto de todos, sobretudo pelos desequilíbrios de naipes dentro da orquestra.

Para continuar no romantismo, e vão três, as Quatro Últimas Canções de Strauss cantadas por Rachel Willis-Sørensen, com Andris Nelsons a dirigir a excelsa Gewandhaus de Leipzig. Já tivemos tantas inesquecíveis (Janet Baker, Gundula Janowitz, Renée Fleming ...) , mais uma voz desse mesmo nível, poderosa, fenomenal. 


Vibrato a mais ?

Recuamos agora ao barroco.

Isabelle Faust, Concertos para Violino de Bach


A gravação é de 2019 (HM) mas só agora pude ouvir. É uma interpretação muito vigorosa , intensa, como se escreve na Gramophone:
"... together she and this superb orchestra show exemplary contrapuntal clarity while also outlining the music’s architecture through glinting dynamic changes or compelling long-range crescendos and diminuendos."

Finalmente , Magic Mozart é uma selecção de árias de Mozart que só comprei por Lea Désandre, que interpreta magistralmente três dessas canções de Mozart.


E para não ser cem por cento bota-de elástico, também tenho ouvido com prazer o muito recente álbum Átta dos Sigur Rós. Continuam a fazer música nos mesmos moldes, vogando-em-sons-pelas-galáxias, com orquestrações grandiosas e vozes surreais, sem inovação musicológica mas com muita imaginação para criar ambientes fora deste mundo. Bom gosto, dentro do género. Está no youtube, também.


domingo, 17 de setembro de 2023

Museu Arqueologico Athanasakeion de Volos

 

Quando se pensa na Grécia, não é a cidade de Volos, na região de Magnésia (de Magnis, filho de Zeus),  a primeira que lembramos, pois é certamente uma cidade de menor relevância histórica e cultural que muitas outras. É cidade universitária, um porto importante, e tem uma frente marítima moderna e elegante a lembrar a riviera francesa, um bairro antigo de casas térreas pobres, uma catedral e ... um Museu ! É este a principal razão de ser desta chamada para Volos : já não visitarei o seu Museu.

Agios Kontantinos, de 1909 , igreja neo-bizantina ricamente decorada.
 

Volos é conhecida como Cidade dos Argonautas; terá sido do seu porto no Golfo de Eubeia que Jasão partiu no navio Argo, tripulado pelos Argonautas, em busca do Velo de Ouro. 

Uma escultura da nave Argus no passeio marítimo celebra a aventura de Jasão.

Mas da Grécia antiga nada resta, nem sequer da era Bizantina. Há templos modernos inspirados nos do passado, falsos portanto.

A Catedral ortodoxa de S.Nicolau é de 1934. Está na praça central, do mesmo nome.

Em 1955 dois terramotos acabaram com a pouca herança bizantina e otomana; resistiram alguns edifícios neoclássicos, como o do Museu. Ultimamente Volos sofreu também severos danos pelo fogo que cercou a cidade. A zona nobre, à beira-mar, não foi atingida - e é aí que se situa o Museu, inserido num Parque, o Anavros.

O Museu Arqueológico Athanasakeion foi fundado em 1909 num edifício em estilo neoclássico. Deve-se ao cidadão Athanasakis, de uma aldeia vizinha, a proeza financeira que garantiu a construção.

A colecção estende-se desde o período Neolítico até ao período Micénico e à Antiguidade tardia do século VII. Na vizinhança de Volos existem dois importantes sítios arqueológicos neolíticos: Sesklo o mais antigo da Europa, e Dimini (o maior da Europa), que se prolongaram até ao período Micénico.


O Golfo de Eubeia, no Mar Egeu, era um abrigo quase perfeito para os povos pré-históricos da região - as Culturas de Sesklo e de Dimini.
 
Vaso carenado fechado com incisões decorativas. Neolítico, Dimini, 4700 - 4600 AC

 
A peça mais marcante do Museu deve ser o modelo de carroça puxada a cavalos. Eram carros deste tipo que eram conduzidos pelos guerreiros da Guerra de Tróia, como o de Aquiles.
 

É uma peça em terracota de argila encontrada num túmulo perto de Larissa. Período Micénico, séc. XIII AC.
 
 
 
 
 
De Dimini vieram muitas estatuetas de gesso do final da 'Idade Homérica' da Grécia - 1100 a 750 A.C. , a era dos Argonautas e das guerras de Tróia.
 
Figura de um bovídeo en cerâmica de roda, Dimini, Idade de Bronze tardia (período Micénico) - séc XII AC

Figuras femininas em argila.

 
Uma estela votiva em mármore, com Apolo e o doador, séc. IV AC.

 

Outra riqueza do Museu são as Ânforas Panatenaicas em terracota, do período clássico tardio, em muito bom estado

 

 

 

Ânfora Panatenaica - 4 atletas em corrida , 336 - 335 AC

Ainda mais tardio mas também notável é este

Altar cilíndrico de mármore, convertido posteriormente em decoração de poço. Data do 1º século da nossa Era, mas quando se tornou inútil pelo fim da religião pagã foi perfurado para contorno de um poço - nota-se o desgaste das cordas sobre o bordo.

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Cá fora, o Parque Anavros, com esculturas modernas , na marginal aberta ao Golfo de Eubeia.


 


domingo, 10 de setembro de 2023

À espera dos Bárbaros, agora mais que nunca


O poema de Constantin Cavafy era uma metáfora, que o meu título acima retoma. Os Bárbaros tanto podem vir de Leste como de Sul, podem ser outras tribos ou mesmo vir de dentro da nossa tribo. Há esta sensação que tenho de que algo de mau está para nos atingir em breve, e há muitos candidatos a maus. Felizmente nenhum ainda é poderoso ao ponto de brutalmente destruir o nosso mundo de conforto, e as nossas múltiplas defesas ainda impõem respeito. Mas que há monstros no horizonte, ou uma nuvem de tártaros, ou uns arsenais à espera de ser usados - há, sim. O maior perigo é, como diz o poema, que se transformem num desejo nosso - venham, venham lá de vez e acabem com este medo permanente.

Há quem prefira a outra face da metáfora - inventamos medos de ameaças que não existem para esquecer os nossos falhanços e frustrações. Que pena não existam, essa até era uma boa solução.

Voltando à poesia: deixo a tradução de Marguerite Yourcenar do poema de Cavafis, e depois uma minha em que também consultei uma tradução inglesa.(*)

En attendant les barbares

Sena, mas francamente não gosto.


"Qu'attendons-nous, rassemblés sur l'agora?
     On dit que les Barbares seront là aujourd'hui.

Pourquoi cette léthargie, au Sénat?
Pourquoi les sénateurs restent-ils sans légiférer?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui.
   À quoi bon faire des lois à présent?
   Ce sont les Barbares qui bientôt les feront.

Pourquoi notre empereur s'est-il levé si tôt?
Pourquoi se tient-il devant la plus grande porte de la ville,
solennel, assis sur son trône, coiffé de sa couronne?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que notre empereur attend d'accueillir
   leur chef. Il a même préparé un parchemin
   à lui remettre, où sont conférés
   nombreux titres et nombreuses dignités.

Pourquoi nos deux consuls et nos préteurs sont-ils
sortis aujourd'hui, vêtus de leurs toges rouges et brodées?
Pourquoi ces bracelets sertis d'améthystes,
ces bagues où étincellent des émeraudes polies?
Pourquoi aujourd'hui ces cannes précieuses
finement ciselées d'or et d'argent?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que pareilles choses éblouissent les Barbares.

Pourquoi nos habiles rhéteurs ne viennent-ils pas comme à l'ordinaire
prononcer leurs discours et dire leurs mots?

   Parce que les Barbares seront là aujourd'hui
   et que l'éloquence et les harangues les ennuient.

Pourquoi ce trouble, cette subite
inquiétude? - Comme les visages sont graves!
Pourquoi places et rues si vite désertées?
Pourquoi chacun repart-il chez lui le visage soucieux?
 

   Parce que la nuit est tombée et que les Barbares ne sont pas venus
   et certains qui arrivent des frontières
   disent qu'il n'y a plus de Barbares.

Mais alors, qu'allons-nous devenir sans les Barbares?
Ces gens étaient en somme une solution."


                                                                 trad. Marguerite Yourcenar

 


À espera dos Bárbaros

De que estamos à espera, reunidos no fórum?
    Diz-se que os Bárbaros vão chegar hoje.

Porque nada se passa no senado?
Porque estão os  senadores sentados sem legislar?      

   Porque os Bárbaros vão a chegar hoje.66cc
   Para que se haviam de fazer leis agora ?
   Em breve serão os Bárbaros a fazê-las.

Porque se levantou tão cedo o nosso imperador ?
E porque está na Porta Grande da cidade, sentado solenemente no trono, usando a coroa ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e o Imperador espera receber o seu chefe.
   Preparou até um pergaminho para oferta
   onde lhe confere numerosos títulos, nomes imponentes.

Porque saíram hoje os nossos dois cônsules e pretores
vestidos das suas togas escarlate bordadas?
Porque usam braceletes com tantos ametistas
e anéis onde cintilam polidas esmeraldas ?
E porque levam preciosa bengalas
finamente ciseladas em prata e ouro ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e essas coisas deslumbram os Bárbaros.

Porque não vêm os nossos distintos oradores, como é hábito,
discursar e dizer o que têm para dizer ?

   Porque os Bárbaros vão chegar hoje
   e aborrecem-se com a retórica e o discurso público.

Porquê esta agitação, esta súbita inquietude ?
- como estão sérios os rostos das pessoas !
Porque se esvaziam tão depressa as ruas e praças,
e toda a gente regressa a casa, com ar preocupado ?

   Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
   E alguns dos nossos homens regressados da fronteira
   dizem que já não existem Bárbaros.

Mas então que vais de nós sem os Bárbaros?
Essa gente afinal era uma espécie de solução.

 

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Escreveu-se um livro, realizaram-se dois filmes baseados neste poema; mas fazem a metáfora bem mais pobre, panfletária, ora ant-fascista ora anti-colonial: os Bárbaros são concretamente tártaros, dentro de muros fala-se italiano ou alemão, junta-se um romancezito... muito mais que isso vale o poema. 

Estejamos prevenidos, eles já se preparam há muito.

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 (*) Há uma tradução de Jorge de Sena, mas francamente não gosto.


domingo, 3 de setembro de 2023

A Uppåkra dos Vikings, no Museu Histórico de Lund

 
Por volta de 100 DC, uma cidade foi fundada com já 4000 anos de pré-história nas planícies da Escânia, e perdurou por mais 1000 anos até ser arrasada em chamas; pouco ou nada sabemos dela.
 

Sitio arqueológico de Uppåkra
 
 
Uppåkra, no sul da Suécia, é o maior aldeamento da Idade do Ferro tardia dos países nórdicos. Só numa pequena área de escavações, foram encontrados mais de 28 000 artefactos; actualmente os trabalhos incidem numa grande sala de um local que seria sede do poder.
 

Os achados vão sendo expostos no Museu da Universidade de Lund.
 
Fundado em 1805, é o segundo mais rico museu arqueológico da Suécia, A colecção contém milhares de peças da Idade de Ferro achadas nas excavações em Uppåkra.
 
Museu Histórico da Universidade de Lund, ao lado da Biblioteca e da Catedral.
 
A antiga Bibilioteca. Lund é uma cidade de cultura excepcional.
 

 
Estive nesta bela cidade há 5 anos, mas nas férias universitárias o Museu está fechado. Azar. Procurei agora informação sobre a sua colecção arqueológica, aqui vai:

Embora o povoado já existisse deste a Idade de Bronze, o período arqueológico mais rico é no final do Império Romano, cerca de 250-500 DC. Datam deste período as sedes reais, os tesouros, as maiores construções - palácio real, templos, muralhas.

As peças mais belas da colecção:

Taça de vidro , 500 DC.
 
Encontrada numa área de culto, a taça veio provavelmente da região a Norte do Mar Negro, até onde os Vikings estabeleceram uma rota mercantil.

Cálice de prata e ouro, 500 DC, encontrado num local de rituais.

Em prata, com faixas de ouro gravado à volta. Encontrada na mesma casa, devia fazer parte de rituais. Figuras de animais e humanos desfilam ao longo das faixas; a origem é provávelmente local, ou próxima.

Bracteata (bractea)
 

Nas cinzas de uma casa queimada foram encontrados medalhões de ouro, de um tipo chamado bracteata. Eram medalhas de ouro muito finas , gravadas de um lado e com o negativo visível na outra face, onde os germânicos procuravam imitar os Romanos figurando os seus deuses e reis.
 
Neste caso será talvez Odin e um dos seus corvos ajudantes.

As bracteas foram muito difundidas no período das Migrações (400-550 DC) ; eram usdas ao pescoço, significando que o dono tinha sido guerreiro ao serviço de Roma.

Adereço trifólico decorado
 

Völund, o homem alado (séc. IX) 

Um dos achados mais famosos, representa um homem alado mítico que se refere no Völundskvädet, um dos poemas da Edda.  

A narrativa começa pelo rapto do mestre ferreiro Völund pelo rei Nidud. Cortam-lhe as rótulas para não poder fugir e obrigam-no a fazer jóias para o rei. Mas Völund tinha muitas artes e fabrica um par de asas com penas de pássaros. Na fuga, é atingido em voo na mão esquerda e o sangue verte sobre a asa.


Recuando no tempo, foram achadas estas estatuetas de divindades nórdicas:

A estatueta à direita é de Odin, que ficou como símbolo icónico de Uppåkra.

A Uppåkra pagã desapareceu em cinzas cerca do ano 990, e a população fugiu para a nova cidade cristã Viking de Lund.

Recentemente, os restos de uma edificação medieval em madeira conduziram à determinação da sua origem num templo Viking, que sofreu várias transformações desde o século VI até ao século X.

Planta do sítio do templo: 3 portas, 4 colunas grandes (troncos), 1 lareira (vermelha), 13 x 6 metros

Projecto de reconstrução

Modelo em escala reduzida 1:3

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Recordo com prazer as semanas passadas em Lund e Ystad, duas cidades onde voltaria de bom grado.