domingo, 25 de agosto de 2024

Discos da minha vida: 2 - Telemann , Reinhard Goebel, Musica Antiqua Köln


Esta gravação mítica foi eternizada na minha memória pela transmissão no Em Órbita, já na Antena 2, nos últimos anos do século XX; fazia parte da revelação da 'música antiga' (pré-romântica) rigorosamente interpretada por estudiosos da época que intentavam ser fiéis à escrita do compositor. Reinhard Goebel , fundador da Musica Antiqua Köln, foi um desses dirigentes que mais marcaram o final do século XX.


Concerto para flauta transversal, cordas e baixo continuo 
I. Moderato
 
IV. Vivace - o tema de abertura do Em Órbita
 
Concerto para Flauta de bisel, cordas e contínuo
IV - presto
 

Concerto para trompete,
1- Adagio
Uma festa de música. Acham que há hoje em dia alguma coisa que se lhe compare ?

O concerto de Telemann mais contagiante desta gravação é sem dúvida o concerto para dois Chalumeaux, um instrumento antepassado do clarinete, e que grosso modo corresponde ao registo grave do clarinete.

Concerto para 2 chalumeaux
4 - vivace                -----------------------------------------------------------
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sábado, 17 de agosto de 2024

O Tempo e a Vida no Soneto 60 de Shakespeare: traduttore, traditore



Sobre este soneto de Shakespeare, "Like as the waves make towards the pebbl'd shore", já se escreveram rios de tinta, interpretando e reinterpretando o que nele está escrito e o que não está, divagando livremente mas sempre com um incontido pasmo pela genialidade da obra - métrica, musicalidade, rimas, riqueza linguística, alcance das metáforas...

O que eu nunca consegui foi encontrar uma tradução decente. Fiz um esforço, Traditore, ma non troppo, aqui vai.


                     Como na praia as ondas avançam sobre os seixos, 
                     assim correm para o seu fim nossos minutos;
                     cada um toma o lugar d'outro já passado
                     num sucessivo esforço todos competindo.

                     A criança ao nascer num mar de luz emerge,
                     vai se arrastando pr'o coroar da maturidade,
                     luta contra eclipses que lhe roubam o fulgor, 
                     e as dádivas do Tempo são agora retornadas.

                    O Tempo trespassa o florir da idade jovem,
                    cava traços paralelos na bela fronte,
                    devora o que é precioso na Natureza pura,
                    e nada resiste ao ceifar da sua foice.

                    Talvez aos tempos meu verso não resista em vão
                    Cantando em teu louvor, malgrado a sua cruel mão.








sexta-feira, 9 de agosto de 2024

"a enormidade do desastre meteu-se-lhe pelos olhos dentro", foi assim que, a 4 de Agosto...


Alcácer Quibir foi a 4 de Agosto, há 446 anos.

As primeiras páginas da Aventura Maravilhosa de Aquilino Ribeiro são uma obra prima da língua portuguesa, é inacreditável a vivacidade e a riqueza de vocabulário e de verbos com que narra a batalha de Alcácer Quibir. Não só consegue fazer-nos estar lá a viver a refrega segundo a segundo, arfando, sofrendo ou exultando conforme o decurso, também nos entusiasma com uma escrita deslumbrante, por vezes vertiginosa, como não conheço em mais nenhum autor de língua portuguesa. Sendo que resulta totalmente intraduzível noutra língua - só se pode ler no texto original.

Antes de trasncrever aqui um excerto, algumas dicas sobre o contexto. Os portugueses, que já tinham possessão de Tânger, Agadir e Arzila, lançaram uma operação militar chefiada pelo Rei D.Sebastião - que sonhava ser coroado "imperador da Líbia" - para reforçar a presença no Noroeste de África, ameaçada pelos Otomanos que dominavam já Túnis e Argel. Para mais, num "golpe de estado" à moda islâmica, um sultão aliado dos turcos tinha usurpado o poder ao sobrinho, e o ex-sultão veio pedir ajuda em troca de inúmeras concessões.

Com a motivação de combater o expansionismo turco, D. Sebastião consguiu reunir um grande exército, talvez 23 000 homens. Incluía 2 mil voluntários de Castela, 3 mil mercenários experientes vindos da Alemanha e da Flandres (os 'tudescos' ), bem como 600 italianos. A elite dos portugueses era composta pelos "aventureiros", nobres portugueses veteranos nas guerras de África e do Oriente, que formavam a primeira linha de ataque. Uma ala esquerda de cavalaria pesada era comandada pelo rei D. Sebastião e a ala direita de cavalaria era comandada pelo Duque de Aveiro. Mas iriam combater, sob calor escaldante, um exército ainda maior, liderado pelo sultão usurpador Mulei Maluco, equipado com apoio otomano. Era Agosto, um sol terrível abatia-se sobre o exército cristão, esgotado da longa viagem, faminto e desprovido de água; já começava a batalha derrotado.

Do lado português, aventureiros, espanhóis, italianos, alemães, belgas e os mouros do sultão deposto: um exército inconsistente.

Alguns excertos do relato ficcional de Aquilino:

 " A desordem ganhava a picaria 1 à retaguarda. Entretanto os arcabuzeiros italianos eram britados sob o peso da cavalaria moura e o fogo dos seus mosquetes. Mas os aventureiros, protegidos pela infantaria de Tânger,  tornavam à carga contra os elches 2. E a sua bandeira, duas pirâmides de ouro em fundo verde, viu-se de novo voejar por cima do mar humano, ora trémula, ora ovante, conforme os sacolejões da avançada. Saiu-lhes porém de face e de flanco tal poder de inimigos que as suas cinco filas flectiram e foram rotas. Depois de rotas. desfeitas, e não quedou mais que uma meia dúzia de combatentes de pé a afrontar a mourama com a sua raiva e o desespero de quem não tem melhor recurso do que vender cara a vida.
   Quando por sua vez a cavalaria do duque de Aveiro se lançou ao ataque, o corpo de batalha dos cristãos dobrava em toda a linha. Muito provada do tiro à espera que dessem Santiago, mortos ou postos fora de combate os espingardeiros em que devia estribar-se, quebrantada de moral pelo que via, mesmo assim o seu arranco causou grande estrago ao inimigo. Mas faltou unanimidade ao rompante e força foi à vanguarda virar de rédea, vindo atropelar em seu espavorido refluxo espanhóis e romanos.(...)
 Em seu desmancho, os soldados, quase todos eles bisonhos, lançavam armas por terra e ofereciam pulsos aos grilhões. Caíra já Aldana; Stuckley; (...) Caíra o bispo de Coimbra, de estoque em punho; António de Sousa, filho do governador da Casa da Suplicação, quinze anos, imberbe, sem elmo, de rosto aos janízaros; o barão de Alvito, entrando os mouros com o fez dum turco nos dentes, como lobo; o ancião D. Garcia de Meneses que, derribado da montada, teve ainda alma de arrancar o alfange das mãos dum azuago e embaínhar-lho no ventre. Desaparecera Sebastião de Sá jogando-se ao inimigo com chibança à voz desastrada de ter:
   - O meu cavalo não sabe voltar !
   Caíra Simão de Meneses com um estandarte sarraceno enrolado no braço; Gonçalo Nunes Barreto, de espada ao alto a pingar sangue; D. João da Silveira, morgado da Sortelha; D. Rodrigo de. Melo, duma virotada, quando tirava a borracha da boca; Manuel Quaresma, vedor da Fazenda, e o filho João; D. Álvaro de Melo, dum tiro de bombarda; D. Lourenço da Silva, regedor da Justiça. dum tiro de escopeta em pleno peito; Pedro de Mesquita, bailio de Leça, que comandava a artilharia; e quatro, nada menos, dos cinco irmãos Meneses, da casa de Louriçal, bravos e unidos como os quatro irmãos Aymon 3.
   A calmaria era insuportável. Recalcada pelo céu de canícula contra o solo, uma núvem de pó e cinza, a cinza do feno e panasco que africanos e cristãos haviam queimado  à compita pela várzea para que não houvesse empeço à manobra, sufocava os combatentes. O fragor da luta e a gritaria dos mouros, sobretudo, eram de ensurdecer. Não se percebiam as vozes de comando. Só buzinadas ao ouvido. "
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   " Como ele vinha ! Elmo amolgado, a loriga em frangalhos, o corcel coberto de espuma, a fumegar ! Negro como esfregão! Sentia-se que a sede e a grande ardentia o martirizavam. Para quem quer que fosse, com o sol a pino, a armadura era assador.  "
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  " Um instante, graças à trégua efémera que ali se estabeleceu, rodeado de gente em que não deixaria de se quebrar o ímpeto da mourisma, espraiou a vista pela batalha. Foi breve como relâmpago e, todavia, a enormidade do desastre meteu-se-lhe pelos olhos dentro. Além, aquele montão negro, irregular como um parcel
 4, era a sua artilharia; à sua roda, a ressaca deixara toda a espécie de destroços: albornozes e arneses de aço, homens e cavalos mortos ou agonizantes; a quatro passos, era a bagagem, e sobre ela encarniçava-se um vespeiro zumbente de mouriscos. Rapina ou repartimento de despojos, pouco importava já, era o fim. "


 " D. Sebastião, avançando sempre, penetrou no campo, fora, fora, até a linde oposta. Graças às dobras do terreno, ao empecilhamento, próprio de exército desbaratado, e ainda à desordem, explicável em exército vencedor em maré de cupidez, foi-lhe possível iludir a caça que lhe davam. Tido e reconhecido porém pelo cavaleiro invulnerado, tanto bastou para mil albornozes se agitarem ao vento na sua peugada; nos garranos ligeiros e infatigáveis, os alarves 5 do alcaide de Alcácer Quibir aprestaram as bestas; ginetes acorreram à desfilada de todos os pontos. Acometeram-no a carga cerrada, e pela primeira vez, ante o tropel raivoso, o instinto da conservação apoderou-se dele. Voltando brida, disparou seguido pelos seus. Lançada na sua pista, a cavalaria moura tropejava rijo e fero, e os cavaleiros da primeira linha despediam gritos agudos e pragas. Mais ele largava, mais os sarracenos se enfureciam a picar. Que pedisse asas ao vento, o Uad-Elmjázen 6 lá estava para o reter. E já os mouros se abriam em leque a cercá-lo quando na pequena coorte se atrasaram João Lobo, Nuno Mascarenhas, Vasco da Silveira e, virando de rédea, esperaram os perseguidores."

                                                                    A Aventura Maravilhosa, Aquilino Ribeiro

Pouco depois, D Sebastião, muito ferido e já em fuga para Arzila, ainda teve de lançar mais uma carga ao enfrentar um "forte destacamento de lanceiros". Mas Aquilino não resiste a ficcionar o seu próprio mito, fazendo o rei alcançar Arzila para uma longa e sofrida penitência.

 " A terra vermelha, areal e paúl, ardia ao sol da tarde; nem árvore, nem ave; a sua calva hediondez tornava-lhe agora nojenta a cobiça que o tomara de conquistá-la. Para que lhe serviria aquele sequeiro de cardos? Abominação! "

O desastre de 4 de Agosto de 1578 teve ao menos o mérito de suscitar em 1936 um grande livro, de um grande escritor. 


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NOTAS
1 - picaria=cavalaria
2 - elche, muçulmano convertido
3 - os filhos de Aymon, romance medieval francês em verso (chanson de geste)
4 - escolho
5 - alarve = al-arab
6 - Uad-Elmjázen, afluente do rio Loukos ) (= Oued Al Makhazine, rio Mocazim)
7 - protecção para a cabeça, sob o elmo.


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domingo, 4 de agosto de 2024

A 'Allemande' da Suite francesa nº4 de Bach, em audição comparada

As suites francesas de Bach deviam ser ensinadas na escola, a sua estrutura, a base tonal, o contraponto, os conceitos de harmonia, melodia e ritmo, e sobretudo a habilidade criativa do compositor; Património da Humanidade é uma classificação bem aplicada.

Escolhi a Allemande da suite BWV 815 como poderia ter escolhido outras; acontece que por acaso (ou)vi no Mezzo Live David Fray interpretando em 'encore' esta peça e fiquei em êxtase, mesmo já a tendo ouvido algumas dezenas de vezes. 

A Allemande começa com arpeggios em crescente que gradualmente divergem harmonicamente. O ritmo e as pausas são parte essencial do estilo de cada interpretação: quem está ao piano define um modo, a interpretação é uma recriação. Começo por uma bem antiga, quando ainda não se tinha generalizado o estudo histórico para aproximar o que seria o estilo interpretativo da época.

Sviatoslav Richter, consegue intensidade com rapidez, em 2.20 min,

András Schiff é brilhante mas parece que ligou o turbo e corre pelas teclas vertiginoso, sem pausas: 2.13 !
Gosto muito de Murray Perahia, pausado e meditativo, já próximo do ideal para piano com o tempo de 2.50 min

Agora no cravo: Pierre Hantai, a perfeição é eterna... 3.23, tempo ideal.

O cravista Richard Egarr é lento mas majestoso, em 3.34 !




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Em extra, outro exemplo, a Gigue da Suite nº5 BWV 816 com András Schiff: